segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Escola sem partido, a lei da mordaça


:
 *Por Durval Angelo
O educador e filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883/1955), considerado um dos grandes pensadores do século XX, dizia a respeito do mister do professor: "sempre que ensinares, ensine a duvidares do que estiver ensinando". Acredito ser esta a missão do educador em sua ação docente: estimular a crítica, levar o aluno a relacionar as situações, a fazer perguntas do lido e do vivido e, principalmente, fazer o aluno a pensar por conta própria. O conhecimento nada mais é do que uma cadeia de perguntas e respostas. Bem antes, o filósofo Sócrates (469-399 a.C.) já concluía que "não posso ensinar nada a ninguém, só posso fazê-los pensar".
Como professor há quase quatro décadas nas redes pública e privada de ensino, acredito que a escola deve ser um ambiente de prática libertadora, onde todos podem se colocar, se contrapor, a partir da pluralidade de temas – com respeito às minorias e de combate a todo tipo de discriminação, seja de etnia, gênero, orientação sexual, religião, estilo de vida. Só que não é o que estabelece um Projeto de Lei intitulado de "Escola Sem Partido", prefiro chamar de "Lei da Mordaça", pois tenta usurpar o pensamento crítico do ambiente escolar.
A proposta tramita em várias casas legisladoras do País e tem como autores, em maioria esmagadora, líderes fundamentalistas. Na Câmara, há três projetos tramitando baseados no Escola sem Partido. O Projeto de Lei (PL) 7180/2014, do deputado Erivelton Santana (PSC/BA), o PL 867/2015, do Izalci Lucas (PSDB-DF) e o PL 1411/2015, de Rogério Marinho (PSDB/RN), este sendo o único não ligado a alguma igreja. No Senado, o pastor evangélico Magno Malta (PR-ES) é autor de texto semelhante, apresentado como PLS 193/2016.
Os projetos são baseados no Movimento Escola Sem Partido, criado em 2004 para combater a "doutrinação ideológica". O próprio nome deste movimento é enganador, pois nos coloca uma dicotomia entre uma escola sem partido ou uma escola com partido. Mas, não se enganem, não é isso que está em jogo. O Escola Sem Partido defende que professores não são educadores e que "formar o cidadão crítico" é sinônimo de "fazer a cabeça dos alunos". É um projeto de escola que remove o seu caráter educacional, defendendo que os professores apenas instruam para formar trabalhadores sem capacidade de reflexão crítica.
Na prática, temas como homossexualidade ou ideologia de gênero não poderão ser discutidos em salas de aula, pois poderão ser considerados conteúdos conflituosos com as convicções religiosas ou morais dos pais e responsáveis, o que é vedado pelos projetos. Assuntos sobre a conjuntura política e econômica do País também não poderão ser trabalhados nas escolas. Segundo o programa, o professor só deve abordar a matéria de forma isolada, sem tratar da realidade do aluno e do que está acontecendo no mundo, sem discutir o que acontece no noticiário ou na comunidade em torno da escola. Ele também proíbe a apresentação de conteúdo ideológico para os estudantes – nesse caso há uma evidente partidarização, pois somente conteúdos considerados de esquerda são citados, como se não houvesse uma ideologia de direita para manter a dominação e as injustiças. O projeto ainda prevê a fixação de cartazes nas salas de aula com uma lista de "Deveres dos Professores", como na época da Alemanha nazista, onde a educação se transformou em um instrumento de doutrinação e massificação da sociedade.
O Escola Sem Partido é tão arbitrário como absurdo e tem como embaixador o ator pornô, Alexandre Frota. A proposta é tema, inclusive, de uma nota técnica do Ministério Público Federal encaminhada ao Congresso Nacional, no dia 22 de julho, no qual aponta a inconstitucionalidade de um dos projetos – PL 867/2015. O documento apresenta que, sob o pretexto de defender princípios como a "neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado", assim como o "pluralismo de ideias no ambiente acadêmico", o Programa Escola sem Partido coloca o professor em constante vigilância, principalmente para evitar que afronte as convicções morais dos pais. "O projeto subverte a atual ordem constitucional por inúmeras razões: confunde a educação escolar com aquela fornecida pelos pais e, com isso, os espaços público e privado, impede o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, nega a liberdade de cátedra e a possibilidade ampla de aprendizagem e contraria o princípio da laicidade do Estado – todos esses direitos previstos na Constituição de 88", destaca a nota.
Acredito que a escola deve ter claro a missão de levar o aluno a pensar e refletir. Hoje, mais do que nunca, é preciso reencantar a educação, que se configura como a mais avançada tarefa emancipatória. Todos os povos na sua história, mostram que a educação só vai ter sentido se ela emancipar. Ela tem papel determinante na criação da sensibilidade social, tão necessária para reorientar a sociedade. Uma sociedade onde caibam todos, só é possível em um mundo no qual caibam muitos mundos.
Nesse sentindo, lembro-me da carta deixada por uma das vítimas da segunda guerra mundial, dirigindo uma mensagem aos educadores: "Prezado Professor, sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas por médicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a Educação. Meu pedido é: ajudem seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e saber aritmética, só serão importantes se fizerem nossas crianças mais humanas.".
Essa carta se faz ainda atual, principalmente se considerarmos a conjuntura de propagação de ódio e da intolerância em que vivemos. O papel da escola deve ser em superar o preconceito e dar espaço para a pluralidade do pensamento. É preciso ter claro que, como afirmou Galileu Galilei ( 1564/1642), a educação é limitada: "não se pode ensinar tudo a alguém, só pode ajudá-lo a encontrar por si mesmo". Mesmo assim, a escola não deve se furtar ao papel de preparar alunos para o exercício da cidadania. Que a nossa escola seja uma escola de busca de saberes que reencante o mundo, a vida, as pessoas.
Deputado estadual (PT-MG), líder do governo na ALMG

Nenhum comentário:

Postar um comentário