Mostrando postagens com marcador poesia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador poesia. Mostrar todas as postagens

domingo, 20 de junho de 2021

500 mil mortes "não vai passar"! Todos somos Chico Buarque!

500 mil mortes!

Não “vai passar”!!!

Kakai"

O Chico não merecia isso no dia do seu aniversário.

Todos os da minha geração, todos não, os nossos, sabem o que é o Chico nas nossas vidas. São vários “Chicos”. Ouso dizer que há algo de Fernando Pessoa naquela indefinição, ou será definição, dessa personalidade apaixonadamente complexa e simples. Um Fernando Pessoa que canta, em nosso português, os nossos amores, os nossos sonhos, as nossas dores, as nossas angústias e as nossas indignações. Que nos define. E nos torna ardentemente vivos. Eu já fui o Chico em diversos heterônimos. E sempre foi um charme ser o Chico. Por timidez, sim o Chico é tímido como eu, não devo contar as histórias. Até porque ele nem sequer as conhece e a frustração seria o derrame de um copo até então sem mágoas.

Ao ver o Chico hoje na manifestação contra o fascismo, eu tento o quase impossível: aumentar minha admiração de fã que tenta ter lucidez. Fã não tem que ter lucidez. Contudo, é muito instigante ver esse traço corajoso de quem está sempre se posicionando. Andando nas ruas. O seu andar hoje nas ruas, quando o Brasil chega a 500 mil mortos, é letra e música. Fala por si só. É, de novo, o Chico falando por nós. Outra vez. Sempre.

O seu ir às ruas é um grito desumano, uma maneira de ser escutado. E, nós sabemos, amanhã há de ser outro dia. E temos certeza de que eles não terão a fineza de desinventar a tristeza, mas nós iremos cobrar com juros toda a lágrima rolada. E voltaremos a perguntar o que que a vida vai fazer da gente. Na certeza de que para sempre é sempre por um triz, eu reafirmo que é inútil dormir que a dor não passa. E vamos às ruas, porque está provado, quem espera nunca alcança. Mesmo sabendo que não vale a lei que determina que a gente era obrigado a ser feliz. E, carinhosamente, reconhecendo que este já devia ser o tempo da delicadeza, no qual já não se diz nada e nada acontece, mas que se segue, encantado, ao lado dos nossos amores.

Por tudo isso, vamos nos jogar no embate contra o fascismo. Com nossos olhos embotados de cimento e de lágrima, vamos beijar nossas mulheres e nossos filhos como se fossem os últimos e únicos. E vamos, ao contrário da música, afobar-nos, pois é pra já, não é como o amor, que nunca tem pressa, que pode esperar. Nós estamos falando da liberdade, da vida, da nossa dignidade, enfim. Esta é uma hora de ver que tem mais samba no porto que na vela. E que não dá para esperar, como o Pedro pedreiro, o apito do trem, a festa, a sorte, a morte.

Mas é preciso sempre dizer para o Chico que ele é o nosso companheiro de todas as horas da vida. Como Caeiro, no guardador de rebanhos, que dizia que ser poeta sempre foi uma maneira de estar sozinho. Ou, como o Mia Couto, que contava que o tempo do amor era ainda cedo, que este não era o sossego que ele queria, um exílio de tudo, uma solidão de todos. Ou, como o velho Manoel de Barros, que só usava as palavras para compor o silêncio.

kakay_advogado_criminalista

Obrigado, Chico, que optou por não estar sozinho, como Caeiro, que, como Mia Couto, nunca optou pelo sossego, e que rompeu todos os silêncios com as palavras e com a sua presença.

Ainda é hora de resistência. Para nós, parece que o tempo sempre é ainda. Como conta o poeta Leão de Formosa:

“Ainda é o advérbio lindo da esperança, que a palavra trema dentro da frase infinda. Nos lábios da criança o sorriso é ainda. Ainda flor é a rosa. Ainda paz é o poema.”

Por isso, vamos perder a noção da hora, romper com o mundo e queimar os navios. Vamos confundir muito as nossas pernas e deixar o sangue errar de veia, perder-se. Com a certeza de que, mesmo na bagunça dos nossos corações, nós estaremos juntos sempre. Não será preciso nos fazer de tontos e nós teremos a mesma cara ao sair. A cara da liberdade, da igualdade, de um mundo onde o paletó enlaça o vestido ou o vestido veste o paletó, mas seguem juntos com respeito e esperança. Esse é o nosso sonho. Como diz a letra: pela paz derradeira que enfim vai nos redimir: Deus lhe pague, Chico.

*Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay, é advogado criminalista


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

"Minas, um sentimento". Poesia de estudante viraliza nas redes sociais


 Poesia de estudante de Escola Família Agrícola do norte de Minas sobre os "300 anos de Minas" bombou nas redes sociais 

Vanessa Madureira, de 17 anos, poetizou o sentimento de ser mineiro e o pertencimento do morador do norte de Minas.

A poesia impactou jovens, estudantes, professores, poetas e muitas pessoas sensíveis. Mais ainda: impressionou a percepção de sentimento da talentosa estudante, de 17 anos, de uma Escola pública, administrada por organizações de trabalhadores rurais, em uma comunidade rural do município de São Francisco, no norte de Minas, banhada pelo rio de mesmo nome, o Velho Chico.

Segundo a diretora da EFA Escola Família Agrícola de Tabocal , Nilva Vieira da Paz,"a ideia do poema surgiu numa formação de Monitores das Escolas Família Agrícola de Minas Gerais, que aconteceu  de 23 a 27 de novembro, promovida pela Associação Mineira das Escolas Família Agrícola - AMEFA, em que a nossa escola ficou responsável pela Mística. Reunimos todos os monitores para discutir o que iríamos apresentar. Como estávamos prestes a comemorar os "300 anos de Minas", pensamos em pedir à Vanessa para fazer um poema que retratasse Minas, São Francisco e a  EFA Tabocal. Isso aconteceu no final de uma tarde. No dia seguinte, logo pela manhã, ela nos encaminhou o poema pronto".

Momentos de compartilhamento da EFA Tabocal

A Vanessa tem muita facilidade para escrever. É uma menina que aprecia muito a leitura. Independente de qualquer coisa, ela lê de tudo. Muito inteligente, tranquila, como expressa no poema. Gosta muito de ajudar as pessoas. Na sala de aula, Vanessa faz questão de formar pequenos grupos de estudos onde ela pode dar assistência e ajudar seus colegas a entenderem melhor os conteúdos, sobretudo aqueles que têm maior dificuldades no aprendizado. Está sempre pronta para ajudar quem quer que seja.

Ela é tida como uma "biblioteca ambulante" que entende de tudo e ama escrever, expressar seus sentimentos, através da poesia. Assim como este poema, intitulado  "MINAS, UM SENTIMENTO", existem outros, também de sua autoria. 


"Essa é a nossa Vanessa Madureira que escolheu a EFA Tabocal para fazer o Curso Técnico em Agropecuária com a Pedagogia da Alternância, por se identificar com o campo, com as atividades rurais, onde vive com sua família. Menina simples, humilde, de um coração imenso e cheio de sonhos de uma vida intelectualmente realizada, para servir o maior número possível de pessoas", conclui a diretora Nilva.

Vanessa Madureira é filha de Conceir Damião Vieira e Vanusa Ferreira Madureira Vieira, residentes no povoado Travessão, no município de São Francisco, no norte de Minas Gerais. 

O Projeto Memórias de São Francisco registra que "Vanessa se projeta com luz própria: é uma escritora nata. Desde os onze anos ela se sentiu atraída pelas letras – escrever e ler – e desde então aventura-se pelo mundo mágico da literatura, escrevendo belíssimos poemas e crônicas. Passeia, de preferência, pelas crônicas e contos de Clarice Lispector e Machado de Assis, que admira. Ficou impressionada com a grande obra de Guimarães Rosa "Grande Sertão: Veredas" que, para compreender aquela linguagem criativa, leu o livro várias vezes.  E foram tantas, que decorou parte dele. E foi além no gosto pelos livros lendo obras de filósofos alemães.
Perguntei-lhe como se inspirava para escrever. Foi de uma simplicidade tamanha no seu explicar: “Escrevo porque necessito, por inspiração, pelo que tenho na cabeça, o momento”. Ela pretende escrever um romance de ficção, com inspiração na vida sertaneja, e crônicas para relatar o cotidiano.
O nome dela explodiu na rede (Face e WhatsApp) dias atrás quando a EFA postou um belíssimo vídeo, que tem como fundo o impressionante (pelo conteúdo e profundidade telúrica) que ela escreveu para homenagear os 300 anos de Minas Gerais. Foi um hino de louvor em que aparecem, com encanto, São Francisco, o rio; e São Francisco a cidade".



Veja video produzido pela Minas Gerais Turismo de Diamantina e alunos da Escola Família Agrícola de Tabocal, em São Francisco, com apoio da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo de Minas – SECULT.

https://www.instagram.com/tv/CITK7yhh3fF/?igshid=xos5qyphvsq8 

Leia e sinta o poema da Vanessa:

Minas, um sentimento

*Vanessa Madureira Vieira

Me pediram que, em poesia, eu falasse de um Estado,

 falar de sua cultura, sua tradição

e falar principalmente do sentimento

que é pertencer a essa região.

E poderia eu, em um repente, bem de repente,

expressar apressadamente o pertencer,

nunca querendo sair daqui,

 mas eu quero é lentamente.


E pertencendo, eu falo de Minas, o nosso Estado,

tão velho e cansado

 por isso, rico e lotado de cultura e tradição.

Se eu começasse a contar da ginga que a vó dança,

da folia que o velho avô cantou,

da saia de renda pra quadrilha que a tia costurou,

do milho que o seu pai plantou,

seria a poesia fresca e pura que nasce dentro de Minas,

 dentro de nós... nosso Estado.

Estado de alegria, o trabalho é todo dia

e o sofrimento do homem do campo acaba virando poesia,

pois quando seu Francisco deita cansado seu esforço é a valia.

 

Minas por ser Estado acaba sendo sentimento.

Ser mineiro é um segredo, não dá pra explicar,

tá no sotaque puxado, o jeito de conversar,

no tempero da comida, jeito bão de cozinhar,

é um trem no meio de tudo

e um negócio que a gente nunca sabe onde tá.


Volto a dizer, Minas é um sentimento, é um Pertencer,

não importa pra onde vai, vai desembestar querer correr,

voltar pro seu pai pra sua mãe pra terra velha que te viu crescer, 

terra velha que viu a história acontecer,

 viu o povo negro sofrer,

a senzala acorrentar não só o corpo,

 mas também a idéia de viver.

A história não nos deixa esquecer,

o ouro roubado, o sangue derramado,

pedras sobre pedra que construíram o Estado.

 

Minas tem de tudo,  pode até não ter mar,

mas não é um desafio

porque magnífico é o nosso Rei conhecido como Rio,

que tem nome  de Santo... 

Santa seja sua água.

O São Francisco é um mistério desde quando nasce

e corre menino,  quando deságua já é Velho Chico.

Aqui no Norte, banhada  pelo rio,

também  com nome de Santo também com nome de Rio

tem uma cidade.

E o povo ainda se lembra como se canta folia,

como o Boi  de Reis dança, como se gira uma quadrilha,

como em roda se recita uma poesia

e a cultura de plantar a terra

pra nunca ter barriga vazia.

 

Ainda nessa cidade,  banhada por um rio,

dentro desse Estado, que é um sentimento,

tem uma escola, onde se aprende um ensinamento

que é respeitar a terra e sua riqueza,

entender a beleza do respeito  à natureza.


A  EFA Tabocal sempre teve esse conceito,

como nosso Estado tão amado,

respeitar tudo que estiver ao nosso lado.

Não há  nada mais simples e singelo do que cultivar,

quando se planta a terra, se cultiva uma semente

ou um sentimento cultivando o verbo amar.

Tanto Estado quanto Cidade, quanto Escola,

mostra que a agricultura é a base de uma nação,

desde o pequeno plantio ou a grande produção,

se o homem do campo não planta  e enfrenta a luta contente,

não há pra onde correr, a cidade não vai pra frente.

 

Então, não é só uma poesia, é também uma gratidão

por todos que cultivando a terra que sustentam essa nação

e principalmente por aqueles que lutam pelo campo,

e ainda assim, têm forças pra lutar pela Educação.

*Vanessa Madureira Vieira tem 17 anos. É estudante do 2º ano de Técnico Agropecuária da Escola Família Agrícola- EFA de Tabocal, no município de São Francisco, no norte de Minas, à beira do rio São Francisco. Vanessa é moradora do povoado do Travessão, próximo à EFA, escola administrada por organizações de agricultores familiares.

Conheça mais sobre Vanessa Madureira:

  1. https://www.youtube.com/watch?v=-d5OjHnzUwohá 17 horas ... O SAL DA LÁGRIMA, POR VANESSA MADUREIRA VIEIRA POEMA: VANESSA MADUREIRA VIEIRA RECITAÇÃO: VANESSA MADUREIRA ...
  2. https://www.youtube.com/watch?v=3rlH70BptUshá 5 horas ... ENTREVISTA COM VANESSA MADUREIRA VIEIRA, AUTORA DO POEMA "O SAL DA LÁGRIMA" - 04/12/2020Entrevistador: Eduardo Leal de ...

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Poema denuncia o genocídio no Brasil


Poema “Matadouro Brasil”, sobre um genocídio tropical

Poeta Pedro Tierra compôs os versos para a Cerimônia de Encantamento na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, no dia 28 de junho de 2020.Foto:divulgação
Neste domingo, o gramado em frente ao Congresso Nacional em Brasília,
amanheceu com mil cruzes simbolizando as mais de 57 mil vítimas da 
COVID-19 no Brasil. 
O ato é parte de inúmeras manifestações contra o governo genocida de 
Jair Bolsonaro. No local, também foi realizada a Cerimônia do Encantamento,
Ato Ecumênico que contou com a presença de representantes das religiões 
Católica, Anglicana, Evangélicas, Espíritas, de Matriz Africana e indígenas 
da etnia Xavante. 
Na ocasião, o poeta Pedro Tierra realizou a leitura de um poeta de sua 
autoria composto para o momento: 

Matadouro Brasil

Humano não é o impulso
de partilhar a sorte de alguém,
cujo rosto nunca vimos,
mas por algum sinal do sangue
na parede ou no destino
reconhecemos irmão?

Quem de nós ignora
que morremos um pouco
no corpo de quem tomba 
ao nosso lado, alvo de um balaço,
ou sufoca a caminho do hospital? 
Afinal, o que foi feito do berço
de águas e verdes e afetos
que imaginávamos cultivar?

O que foi feito dos sons
do surdo e do tamborim,
da sanfona, triângulo e zabumba,
da viola sertaneja
que nos acalentaram
e desenharam o mapa
dos nossos corações?

Devastado pela dor e pelo ódio,
já não o reconhecemos como o lugar
que moldamos para nascer e amar
na geografia afetiva da alma.
A palavra do poeta seja sopro
sobre a brasa adormecida
de nossa indignação.

E possa acender as chamas
da ira diante do intolerável.
Não temer a ira!
A sagrada explosão da ira
diante do injusto
é que nos faz humanos!

Pergunto aos palácios de vidro
erigidos pelas mãos
dos pedreiros candangos: 
que país será construído
sobre os ossos dos povos
condenados ao matadouro?

Guarani, Kaiowá, Yanomami,
Krenak, Cinta-larga, Tikuna,
Karajá, Suruí, Caiapó, Rikbatsa,
Tapirapé, Kaxinawá, Parakanã, Kamaiurá…
Os Xavante,
sobreviveram ao facão,
ao garimpo e aos massacres.
Às roupas contaminadas com sarampo,
à ferocidade do latifúndio,
devorando veredas e buritizais.

Sobreviverão alcançados
pela maldição do vírus
e pelo silêncio cúmplice dos genocidas?

Ouço na Esplanada
sob o violento azul do inverno
de nossas desesperanças
um difuso clamor.

Que minha voz ecoe o pranto
das mães Yanomami
em busca dos corpos
de seus filhos enterrados. 

A morte aqui tem nome e lugar:
favelas, mocambos, aldeias, quebradas. 
O inverno já nos alcança
enquanto ainda buscamos flores
da primavera pública que se perdeu…
para coroar a tumba dos encantados
nessa semeadura de cruzes.

Hoje, cinquenta e seis mil mortos,
sufocados pela peste,
batem à porta do genocida.
Quem responderá pelas vidas
que a indiferença
transformou em cruzes? 

O holocausto é real.
Os nomes são reais.
A dor é real. O luto é real.
Quem responderá por eles?

Sobre nós o sol
e o olho do drone.
O olho do drone não chora,
não conhece o sal das lágrimas.
Registra a morte, apenas.

Uma geométrica colmeia de assombros
cavada no barro vermelho
do coração do país. 
O olho do drone registra o plantio
para entregar um dia aos segadores
a sinistra colheita da morte.

O país dos abraços
aprende na dor
das distâncias medidas,
um novo idioma de gestos:
Eu te amo,
mas não te toco.
Eu te amo
e porque te amo
não te toco.

Contra o escárnio,
que a palavra do poeta
seja sopro e se faça vento
sobre a brasa adormecida
de nossa indignação.


Publicado na página do MST,no dia 28.06.2020

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Nosso Chico Buarque do Brasil faz 76 anos

Um guia para entrar no universo fantástico de Chico Buarque ...
Frei Betto escreve sobre Chico Buarque que fez, neste 19 de junho, 76 anos. Um texto poético como o próprio Chico. Fala do homem sensível, inteligente, cidadão, poeta, escritor, ativista político, personagem histórico. Conclui, depois de tentar decifrar o Chico de todos os brasileiros: "Se do barro o Criador fez alguém com tanto amor, foi Chico."
Retrato do Artista Quando Adulto
Frei Betto*
Poesia em forma de pessoa, Chico Buarque encarna os requisitos da obra poética: emoção, economia de palavras, agudo senso estético. Dentro dele faz muito barulho. Mas quem o conhece sabe que ele é quase silêncio, disfarçado de tímido, como quem observa o mundo espantado com o milagre da vida.
Entre amigos, o vozeirão grave atropela as sílabas, como se temesse a gagueira inexistente, e Chico fala de tudo e de todos, sem poupar irreverência. Entre estranhos, os olhos verdes brilham enigmáticos, luzeiros inefáveis, a boca tapa a fervura d’alma, o sorriso, entre maroto e contido, exibe as teclas de piano entre o sim e o não.
Diante do olhar canibal dos fãs, Chico quase olha para trás, convencido de que não é com ele. Dane-se a cabeça idolatrada, mas ele se sabe de barro e sopro, exilado dessa imagem que a admiração alheia, avara, projeta na imaginação fantasiosa de quem, um dia, numa frase musical, viu-se arrebatado e identificado, no amor ou na dor, no sentimento indelével que o poeta captou, fraseou e cantou.
Francisco Buarque de Hollanda teve o privilégio de fazer 20 anos nos anos de 1960. Seresteiro precoce, cercado de livros e cordas na rua Buri, em São Paulo, trocou a régua e o compasso, da Faculdade de Arquitetura, pela toada intimista da Bossa Nova, trazida ao lar pelo cunhado João Gilberto. Todavia, neste carioca branco de alma negra, o morro impregnou-se mais forte que a praia. Desconfio de que, no fundo, Chico lamenta não ter nascido na Estação Primeira de Mangueira, com todo o talento que Deus pôs nos pés e na magia dos brasileiros que fazem do futebol a arte de dançar em torno de uma bola.
Em 1964, a ditadura ameaçou os padres dominicanos de expulsão do Brasil. Prejudicados pela conjuntura política, apelamos aos amigos. No teatro Paramount, em São Paulo, promovemos o espetáculo beneficente Avanço, no qual Chico Buarque, cantor de plateias estudantis, fez sua estreia para o grande público. Havia também uns baianos muito novos, o irmão de Bethânia do Carcará, um ex-bancário chamado Caetano, todo timidez, e um amigo dele, ex-funcionário da Gessy-Lever, um tal de Gilberto Gil…
Passeata dos Cem Mil, há 50 anos, foi ápice dos protestos contra a ...
Passeata dos 100 mil, em 26 de junho de 1968, foi a maior manifestação popular contra a Ditadura Militar. Na foto, os então jovens Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, entre muitos artistas e intelectuais.
Nasciam ali os trovadores que iriam desencantar a ditadura, embora forçados ao exílio e submetidos à censura. Deram-se as mãos na Passeata dos 100 Mil, em torno da igreja da Candelária, no Rio e, mais tarde, Roda Viva, de Chico, comprovou que teatro é espelho. Mirem-se nas mulheres de Atenas. Rostos macabros não gostaram de se ver refletidos. Quebraram o espelho, assim como os algozes de Antonio Maria acreditavam que jornalistas escrevem com as mãos…
Chico foi para a Europa, no autoexílio inevitável. Fez espetáculos em favor dos exilados e deu às suas letras um tom mais profético que romântico. Aqui é o seu lugar e, de retorno ao Brasil, ousou quebrar o cálice e fazer ouvir a sua voz, convencido de que amanhã será outro dia. Com Vinicius, foi para São Bernardo do Campo apoiar os metalúrgicos que, liderados por Luiz Inácio Lula da Silva, teimavam em sonhar um Brasil diferente.
Filho de famílias que há 100 anos conspiram em favor da democracia, Chico não é um militante, desses que exibem carteirinha de partido e atestado de tendência ideológica. Nem “militonto”, que pula de palco em palco acreditando que, com o seu violão, vai salvar a pátria e acabar com a fome no Brasil. Mas é um cidadão da utopia, impregnado da virtude da indignação. Esteta, tem a medida das coisas. Nessa arenga nacional, conhece exatamente o seu canto e, quando faz noite, sua voz suave, de timbre acentuado e agudo, quase feminino, traduz paixões e feridas, rupturas e arroubos. Porque canta o que sentimos sem encontrarmos palavras, expressão agônica de nossos espíritos atordoados ou enamorados. E tece em letras os estorvos que impedem a vida de ser a arte de sonhar acordado.
Chico é ele e suas mulheres – Silvia, Helena e Luiza, e as netas e os netos.  Ele é feito de detalhes – o que, aliás, importa em nossas vidas. Sua casa é um espaço democrático, onde candidatos, desde que progressistas, expõem suas ideias e acolhem críticas e sugestões dos artistas. Na Gávea, vi seu pai fazer 76 anos e cantar Sassaricando em latim.
Para Chico, o tempo não passou na janela. Ele se fez geração. Na arte e no palco, transmuta-se em Carolina, numa dessas mulheres que só dizem sim, seresteiro, poeta e cantador, olhos nos olhos, ele se chama Mané e dobra a Carioca, sobe a Frei Caneca e se manda pra Tijuca na contramão. Nunca esteve à toa na vida e, cantando coisas de amor, alia-se à esperança dessa gente sofrida que quer despedir-se da dor.
Larápio rastaquera, pai paulista, avô pernambucano, bisavô mineiro e tataravô baiano, ele gostaria de ser o mais exímio jogador de sinuca. Falso cantor, Chico é apenas um artista brasileiro.
Saibam que poetas, como os cegos, podem ver na escuridão. Nessas tortuosas trilhas, sofre de pânico cênico, admira Fidel Castro e, viciado em futebol, jamais se “americanizou”. Quando no Rio, cidade submersa, os escafandristas e sábios decifrarem o eco de suas cantigas, amores serão sempre amáveis e cantores, duráveis. Porque a alma brasileira vai reter Chico para sempre.
Se do barro o Criador fez alguém com tanto amor, foi Chico.
*Frei Betto é escritor, assessor de movimentos populares. Autor de mais de 60 livros, com artigos, poesias, culinária, política, religião, comunicação, biografia. 
Leia mais sobre Chico Buarque:

O bolsonarismo genocida não roubará nossos sonhos

Para Além do Cérebro: As charges como resistência atual e memória ...

Pasmo existencial

Por Antônio Carlos de Almeida Castro*
Eu me nego a ser pautado por este bando de arrematados idiotas, corruptos e incompetentes.                                               A sociedade está tomando força e se posicionando. É necessário que todos estes apoios sejam repetidos e reforçados com ações individuais e coletivas.
“O que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo” Clarisse Lispector
Quantas vezes somos surpreendidos, no dia a dia, pelo inusitado do que tem acontecido na política no Brasil? 
Às vezes me lembro de Pessoa, na pessoa de Caeiro, “sei ter o pasmo essencial, que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras...”. Realmente “sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo”. 
Este governo genocida não nos dá tempo de nos dedicarmos ao assunto que deveria ser o centro de todas as nossas atenções: a pandemia, o vírus, as mortes, o drama da crise sanitária. 
No dia em que o Brasil completa, oficialmente, quase 50 mil mortos e 1 milhão de infectados todas as atenções estão voltadas para a corrupção da família Bolsonaro, para o Queiroz, para a prática da “rachadinha”, para a indicação de um analfabeto funcional para representar o país, como prêmio de consolação pela sua desumana ignorância, no Banco Mundial. 
Cansei de ter vergonha alheia. Quero minha capacidade de me indignar por questões sérias de volta! Não posso mais ter que me idiotizar para compreender o que ocorre com os destinos de um país que não tem um Ministro da Saúde no meio de uma pandemia mundial, que não tem sequer um plano para contabilizar os mortos. Eu não quero ter que explicar, para as pessoas que não vivem no Brasil, que nós temos um Presidente que incentiva seus seguidores a invadirem hospitais a pretexto de verificar se os médicos estão mentindo e que a doença não é tão grave.  E o pior, explicar porque algumas pessoas seguem esta voz insana, uma voz à procura de um cérebro, e invadem hospitais. 
Um país estranho no qual foi feito o impeachment de uma Presidente sem que ela tivesse cometido o crime de responsabilidade e, agora, o Congresso se nega a discutir o impeachment quando o atual Presidente comete crimes de responsabilidade aos borbotões, quase diariamente. 
Um país que está deixando de ser, sequer, o país do futuro, pois a mediocridade está matando todos os sonhos. Só tem futuro quem sonha, quem acredita. Eu confio mais nos que são capazes de sonhar, mas como viver sob o jugo da completa obscuridade? 
Victor Hugo disse no imortal Os Miseráveis: “Julgar-se-ia bem mais corretamente um homem por aquilo que ele sonha do que por aquilo que ele pensa”. Andei o Brasil nos últimos anos a discutir o excesso de punitivismo, fui a todos os espaços possíveis usando aquilo que a advocacia me deu: voz. 
Em todos os lugares em que estive alertei que deveríamos ter a humildade de, às vezes, nos mirar na natureza. A escuridão não cai de uma só vez. Não somos surpreendidos ao meio dia com uma noite fechada, que cai em segundos em pleno lago Paranoá. A natureza é sábia, o entardecer vai afastando a luz, vai apagando o dia e a noite começa a se impor, devagarinho, até que chegue à plenitude da força da escuridão. E nós vamos nos acostumando a falta de luz. 
Assim é o regime obscurantista. Vai aos poucos nos tirando a capacidade de resistir, de indignar, de protestar, de reagir. Até que, vencidos pela mediocridade deste projeto fascista, nós percamos a voz, o ar. E sem ar e sem voz não conseguimos resistir. Nos tornamos cidadãos como que afetados pelos efeitos do coronavírus sem estarmos infectados pelo vírus, mas infectados pelo verme do bolsonarismo. Um estado de letargia, sem inteligência, sem capacidade sequer de protestar. 
Mais uma vez socorro-me de Victor Hugo: “Chega a hora em que não basta apenas protestar: após a filosofia, a ação é indispensável”.  E, insisto, é necessário voltar a acreditar que temos que enfrentar esta mediocridade que nos deprime. O país precisa voltar a acreditar que existe vida fora desta mediocridade. 
Eu me nego a ser pautado por este bando de arrematados idiotas, corruptos e incompetentes. A sociedade está tomando força e se posicionando. São vários os grupos e manifestos. É necessário que todos estes apoios sejam repetidos e reforçados com ações individuais. 
Em tempo de isolamento vamos cada um, também isoladamente, dizer basta, chega, encheu o saco!
Matar o sonho é matar-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso” (Fernando Pessoa).
Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, é advogado criminalista.
Publicado originalmente no www.brasil247.com, em 19.06.2020.

sábado, 4 de abril de 2020

Em tempos de pandemia, "A implosão da mentira"

A imagem pode conter: 1 pessoa, texto

O poema "A implosão da mentira" de Affonso Romano de Sant'Anna foi publicado em diversos jornais, em 1980, na efervescência da sociedade brasileira que derrotava a ditadura militar (1964 - 1985), mas assistia a mídia comercial, lideranças políticas e empresariais servis contribuírem com a narrativa de defesa dos desvios e atrocidades dos militares. 
Apesar do tempo decorrido, face aos acontecimentos políticos que vimos assistindo nesses últimos tempos, o poema permanece atualíssimo.
Internautas usaram alguns trechos e fizeram várias adaptações do seu conteúdo para criticar o momento em que vivemos.
O poema foi publicado também em várias antologias como "A Poesia Possível", "A implosão da mentira e outros poemas". Junto com o poema "Que país é este?" é um dos mais apreciados pelos leitores do poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

Em tempos de ira e pandemia, "A implosão da mentira", a poesia. 
Poema longo, incisivo, visceral, arrebatador e desmistificador. 


A implosão da mentira
Affonso Romano de Sant'Anna*

Fragmento 1
Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. 
Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.
Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases falam. 
E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.

Fragmento 2
Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.
Mentem. Mentem caricatural-
mente.
Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.
Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente. 
Mentem
ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre. 
Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre. 
E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.
E assim cada qual
mente industrial?mente,
mente partidária?mente,
mente incivil?mente,
mente tropical?mente,
mente incontinente?mente,
mente hereditária?mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/mente
constroem um país
de mentira
—diária/mente.

Fragmento 3
Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar
em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez, não é Galileu
quem mente.
mas o tribunal que o julga
herege/mente.
Mentem como se Colombo partindo
do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente.
Mentem desde Cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso, iludindo a corrente em curso, 
transformando a história do país
num acidente de percurso.

Fragmento 4
Tanta mentira assim industriada
me faz partir para o deserto
penitente/mente, ou me exilar
com Mozart musical/mente em harpas
e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.
Penso nos animais que nunca mentem.
mesmo se têm um caçador à sua frente.
Penso nos pássaros
cuja verdade do canto nos toca
matinalmente.
Penso nas flores
cuja verdade das cores escorre no mel
silvestremente.
Penso no sol que morre diariamente
jorrando luz, embora
tenha a noite pela frente.

Fragmento 5
Página branca onde escrevo. Único espaço
de verdade que me resta. Onde transcrevo
o arroubo, a esperança, e onde tarde
ou cedo deposito meu espanto e medo.
Para tanta mentira só mesmo um poema
explosivo-conotativo
onde o advérbio e o adjetivo não mentem
ao substantivo
e a rima rebenta a frase
numa explosão da verdade.
E a mentira repulsiva
se não explode pra fora
pra dentro explode
implosiva.

Affonso Romano de Sant'Anna - Poemas (sem erros) | A Magia da Poesia*Affonso Romano de Sant'Anna é mineiro, de Belo Horizonte. Mora a 50 anos no Rio. É poeta, cronista, crítico e professor de literatura. É também jornalista. Formado em letras pela UFMG, onde também fez o doutorado sobre obra de Carlos Drummond de Andrade. Publicou diversos livros como "O Desemprego do Poeta", "Que país é este?", "Catedral de Colônia e outros poemas", "O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia", "A mulher madura", "A implosão da mentira e outros poemas", entre outros. Professor de literatura da PUC-Rio e UFRJ. Como professor convidado dá aulas de literatura e cultura brasileira em universidades da França, Alemanha e Estados Unidos.