Para recobrar o ânimo, lembre-se que esta terra meio atrapalhada foi
pioneira, entre países grandes, a transformar saúde em direito fundamental.
Um dia, no começo dos anos 1990, minha mãe atendeu o telefone e soube que o
irmão mais velho estava com o coração por um fio. O rosto da minha mãe congelou,
e ficou assim por um tempo, numa expressão dura de impotência e tristeza.
Meu tio não tinha convênio médico.
irmão mais velho estava com o coração por um fio. O rosto da minha mãe congelou,
e ficou assim por um tempo, numa expressão dura de impotência e tristeza.
Meu tio não tinha convênio médico.
Era uma situação tão difícil quanto previsível. No Jaraguá, bairro da periferia
de São Paulo onde meu tio vivia, as pessoas morriam cedo. E não era só lá.
Em Pirituba, onde meus avós e algumas tias moravam, a situação era a mesma.
Lembro bem das vizinhas que foram viúvas quase a vida inteira e das pessoas
que tinham dois nomes – o segundo era uma homenagem a um irmão morto
logo depois do parto. A morte estava por perto. Era só esperar um pouquinho
que ela chegaria depois de uma gripe ou de uma festa de domingo.
Essas pessoas – pedreiros, eletricistas, donos de bar, sapateiros – não tinham
renda o suficiente para bancar essa despesa nem um pedaço do Estado para
pedir ajuda. Plano de saúde era coisa de funcionário público ou de região com
muita fábrica, região desenvolvida, coisa do admirado ABC Paulista, onde vivia
outra parte da família. Aquele pedaço industrial de São Paulo, na minha cabeça
de criança, era intocado por velórios.
pedir ajuda. Plano de saúde era coisa de funcionário público ou de região com
muita fábrica, região desenvolvida, coisa do admirado ABC Paulista, onde vivia
outra parte da família. Aquele pedaço industrial de São Paulo, na minha cabeça
de criança, era intocado por velórios.
Para sorte da família do eixo Jaraguá-Pirituba, o Brasil criou o SUS (Sistema
Único de Saúde) em 1988. Como lembra o doutor Drauzio Varella, "nós nos
tornamos o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou
oferecer saúde para todos".
Único de Saúde) em 1988. Como lembra o doutor Drauzio Varella, "nós nos
tornamos o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou
oferecer saúde para todos".
Tivemos essa coragem nos anos 1980. Naqueles anos difíceis, uma série de
heróis anônimos, de diferentes correntes políticas, criou um consenso.
Não é uma questão de políticas do MDB ou da Arena, do PT, PSDB, PMDB
ou DEM. O Brasil chegou à conclusão de que saúde era direito de todo mundo
e de que a conta deveria ser rateada entre a população – tanto que colocou isso
na Constituição.
Futuros engenheiros
Foi uma das obras mais grandiosas da nossa história – maior do que Brasília,
maior do que Itaipu. Essas obras são importantes, claro. Mas a existência do
SUS permite que futuros engenheiros sobrevivam ao primeiro ano de vida.
Entre 1990 e 2015, o Brasil derrubou drasticamente a taxa de crianças que
morrem com poucos anos de vida. Os médicos da família chegam a milhões
de pessoas.
A vacinação, o transplante de órgãos e o combate à Aids se transformaram
em referências internacionais. Recentemente, foi uma médica do SUS quem
descobriu a relação entre zika vírus e microcefalia.
em referências internacionais. Recentemente, foi uma médica do SUS quem
descobriu a relação entre zika vírus e microcefalia.
O SUS também salvou algumas vidas familiares. Meu tio com o coração frágil,
graças ao sistema público, está vivo e bem até hoje – apesar da sua situação
ainda ser preocupante.
ainda ser preocupante.
O SUS é inspirado nos sistemas de saúde dos países da Europa Ocidental, como o
NHS (National Health System) inglês. Admirado e respeitado, foi até homenageado
na abertura da Olimpíada de 2012, em Londres.
Para criar um sistema assim, é preciso que o país, em algum momento da sua história,
Para criar um sistema assim, é preciso que o país, em algum momento da sua história,
tenha chegado a uma conclusão: saúde não é apenas responsabilidade individual.
É direito das pessoas e, portanto, obrigação do Estado.
Parece um jogo de conceitos, mas não é. Nos EUA, sempre foi muito difícil criar
Parece um jogo de conceitos, mas não é. Nos EUA, sempre foi muito difícil criar
um sistema público de saúde. Para muita gente, é uma interferência enorme do
governo na vida das pessoas e esse problema é mais bem resolvido por operadoras
privadas de saúde, com incentivos para competir e oferecer melhores serviços.
Isso tem consequências. As pessoas têm acesso a muitos medicamentos e
Isso tem consequências. As pessoas têm acesso a muitos medicamentos e
tratamentos modernos nos EUA. Ao mesmo tempo, têm contas gigantescas
para pagar e muitas famílias quebram – ou não tem acesso a serviços básicos.
Na Europa ocidental, o tratamento é publico e gratuito. Pode ser mais demorado,
nem sempre é de ponta, mas ninguém precisa se preocupar com contas
milionárias.
Claro, há uma enorme zona cinza entre esses dois pontos, e é muito raro encontrar
um país que seja apenas público ou apenas privado. Há variações sobre o tamanho
do Estado tanto em investimento quanto em regulação – afinal, o que você vai fazer
caso seu plano não te atenda? Não importa o modelo. Ele sempre pede escolhas, e
elas não são fáceis. Não tem exatamente certo ou errado. Tem o que funciona e o
que não funciona para cada país, de acordo com as escolhas que cada um faz em
determinado momento da sua história.
Deficiências
O SUS é um avanço gigantesco, mas é impossível ignorar os casos de corrupção,
Deficiências
O SUS é um avanço gigantesco, mas é impossível ignorar os casos de corrupção,
o descaso com hospitais e postos de saúde, além da demora de meses para agendar
consultas em muitos Estados e municípios. Na média, ainda temos menos médicos
a disposição das pessoas do que a média dos países mais desenvolvidos do mundo –
e ainda temos de ver Estados, como o Rio de Janeiro, em situação de calamidade.
Até a médica que descobriu o elo entre zika e microcefalia, na Paraíba, vive longe
do paraíso – ela precisa de muito mais dinheiro para tocar suas pesquisas.
Até a médica que descobriu o elo entre zika e microcefalia, na Paraíba, vive longe
do paraíso – ela precisa de muito mais dinheiro para tocar suas pesquisas.
O complexo sistema de financiamento do SUS, dividido entre União, Estados e
municípios, não ajuda. Muitos governadores e prefeitos não investem o mínimo
necessário para o sistema funcionar. Na prática, os gastos de todos os governos
com saúde não chegam a 4% do PIB. É pouco.
Se somarmos todos os gastos com saúde no Brasil, o setor privado é responsável
Se somarmos todos os gastos com saúde no Brasil, o setor privado é responsável
por 60% dele. Os outros 40% são de dinheiro público. Porém, o setor privado
atendeapenas 25% das pessoas. A maior parte dos brasileiros depende de um
dinheiro escasso, picotado e, muitas vezes, mal administrado.
atendeapenas 25% das pessoas. A maior parte dos brasileiros depende de um
dinheiro escasso, picotado e, muitas vezes, mal administrado.
Para piorar, o setor privado está longe da sua melhor forma. Mesmo os brasileiros
que podem pagar não estão seguros. As reclamações são gigantescas.
Dados recentes revelam que cerca de 100 mil pessoas fizeram queixas formais dos
serviços dos convênios em um ano.
Dados recentes revelam que cerca de 100 mil pessoas fizeram queixas formais dos
serviços dos convênios em um ano.
Além disso, em muitos casos o setor privado repassa a conta ao governo.
Os planos usam brechas jurídicas para mandar seus consumidores ao SUS,
economizando alguns milhões em repasses a médicos e hospitais.
Além da canibalização de recursos escassos, há uma malandragem desagradável.
economizando alguns milhões em repasses a médicos e hospitais.
Além da canibalização de recursos escassos, há uma malandragem desagradável.
A conta do SUS é difícil. Afinal, dinheiro público não é dinheiro gratuito – ele
vem dos nossos impostos e das nossas escolhas. Saúde é uma questão de vida
e morte – e mesmo o melhor plano não garante um tratamento caríssimo de
câncer. Não há um consenso de que só Estado ou só o mercado possam resolver
o problema. Saúde é um desafio gigantesco, concreto e imediato. Mas é uma
questão que vale a pena encarar.
Nesse Brasil polarizado, muitas vezes em torno de questões vazias, é sempre
bom lembrar dos tios que foram salvos pelo SUS e de quantos mais poderiam
ter sido salvos, se o sistema fosse melhor.
Temos de ter orgulho das coisas que dão certo e espírito crítico para resolver,
sem histeria, os nossos problemas. Um SUS poderoso não é bom apenas para
quem usa o sistema público – ele também obriga o setor privado a puxar sua
régua lá pra cima.
Publicado no site www.cartamaior.com.br