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quarta-feira, 21 de abril de 2021

Os inconfidentes corruptos do Vale do Jequitinhonha

 Os inconfidentes Domingos de Abreu Vieira e Padre Rolim participaram da Inconfidência Mineira para fugir do fisco,  por posse de riquezas, não abrindo mão da escravidão dos negros .

A Inconfidência também passou pelo Vale do Jequitinhonha. 
Quem diria? 
E foi a sua parte mais podre - se é que tem alguma que é sadia - que se destacou.

Domingos de Abreu Vieira e Padre Rolim são os tristes personagens da nossa história colonial. Eles viveram no Vale ,  no século XVIII, e exploraram as riquezas regionais.

Abreu Vieira na Vila do Água Suja, atual Berilo, no Médio Jequitinhonha, e em Minas Novas, ambos no nordeste de Minas. Padre Rolim, no Tejuco, atual Diamantina.

Três grupos de interesses
O movimento da Inconfidência Mineira tinha três grupos de homens com interesses diversos. O primeiro era considerado o dos ideólogos formado por Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manoel da Costa.
O segundo grupo era de ativistas que propagava as idéias entre o povo e nos mais diferentes lugares. São os que mais se expunham à perseguição da polícia de Portugal. Tiradentes era o mais exaltado e mais conhecido deste grupo.
Por trás dos ativistas e dos ideólogos, havia um terceiro grupo de homens, mais discretos, também interessados na ruptura com Portugal.
A pólvora tinha sido assegurada aos conspiradores por Domingos de Abreu Vieira. O velho contratante português era intimamente vinculado a muitos dos principais inconfidentes.
Abreu Vieira estava em dívida com a Fazenda Real: devia muito mais de dois milhões de réis, e é evidente que o velho negociante português envolveu-se na conspiração só por um motivo: porque ela proporcionava um meio de eliminar suas dívidas .

Elite inconfidente
Assim, é equivocada a versão que se tinha de que os 24 inconfidentes condenados por crime de lesa-majestade eram pessoas de posses muito modestas.
Os inconfidentes estavam distantes dos ideais de igualdade e liberdade defendidos pela Revolução Francesa. A prova disso é que 60% deles eram proprietários de escravos e não se mostravam dispostos a aderir às teorias abolicionistas.
O que se percebe é que todos eles buscavam burlar a autoridade da Coroa Portuguesa em benefício próprio e muitos entraram para o grupo dos inconfidentes em busca justamente de ajuda financeira.
Entre os idealistas estão os poetas Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga (autor de "Marília de Dirceu") e entre os pragmáticos que se aproveitaram do movimento para para ganhar mais poder e fortuna estão os coronéis Domingos de Abreu Vieira e Francisco Antônio de Oliveira Lopes, os padres Rolim e Carlos Corrêa.

Foto: Casarão colonial, na Rua do Porto, em Berilo, construído por Domingos de Abreu Vieira. Esta edificação foi restauradam em 2011, pelo IEPHA e Prefeitura Municipal.


Domingos de Abreu Vieira, de Berilo, Minas Novas e Ouro Preto
Domingos de Abreu Vieira, na época da elaboração dos planos de liberdade, além de contratador de dízimos era Tenente Coronel, auxiliar da Companhia de Dragãos de Minas Novas. Ocupou o posto de Capitão da Companhia do Distrito do Arraial de Água Limpa (atual Berilo, no mèdio Jequtinhona, nordeste de Minas) e de Regimento de Cavalaria.
Domingos de Abreu Vieira tinha casa em Ouro Preto, na Região Central, mas visitava com freqüência o seu Sobradão em Vila do Água Suja, atual Berilo, como também sua casa em Minas Novas, na Praça da Rodoviária, propriedade da família Badaró, onde funciona, hoje, a Rádio Bom Sucesso.

Ele exerceu o cargo de contratador dos dízimos, em Vila Rica, entre 1784 e 1789. Era padrinho da filha de Tiradentes, que também teria passado temporadas na sua casa de Berilo.

Ele foi condenado à forca junto com outros 10 acusados de conspirar contra o Reinado português, do qual era funcionário graduado. Ele jurou fidelidade à Rainha "Maria Louca" de Portugal e negou qualquer participação na Inconfidência Mineira. Como outros espertalhões da elite colonial foi preso e deportado. Somente Tiradentes assumiu defender os ideais da Independência do Brasil. Por isso, foi o único a ser enforcado.

Abreu Vieira teve os bens penhorados e enviado para Angola, tendo vivido em Luanda, na África Ocidental, e morrido no presídio de Nossa Senhora da Conceição de Muxima.

PADRE ROLIM, DE DIAMANTINA
José da Silva e Oliveira Rolim (Diamantina, 1747 - Diamantina, 1835), o Padre Rolim, foi um dos conspiradores da Inconfidência Mineira.

Filho do contratador de diamantes (Caixa na Real Extração Diamantina) da cidade, o sargento-mor José da Silva de Oliveira, era amasiado com Quitéria Rita, filha de Chica da Silva e do antigo contratador João Fernandes de Oliveira, e com ela teve os filhos Thadeo José da Silva, Domingos José Augusto, Maria Vicência da Silva e Oliveira e Maria da Silva dos Prazeres. Envolvido em negócios ilegais, foi o mais rico participante da Inconfidência.

Quando da mudança da Extração Diamantina, seus pais, em casa de quem morava, foram prejudicados financeiramente. Foi então que a família passou a se dedicar ao contrabando de pedras preciosas. Também traficavam escravos e praticavam a usura.
Foto: Construído em 1749, este Casarão da Rua Direita, em Diamantina, foi da família do Padre Rolim. Hoje funciona o Museu do Diamante.

Procurou a carreira eclesiástica para se ver livre de um processo criminal, como testemunhou Joaquim Silvério dos Reis. Ordenou-se ao 32 anos em Coimbra, sem gostar de estudar, tendo dificuldades para escrever e sendo péssimo em comunicação verbal.

O Padre Rolim era um homem inescrupuloso e corrupto e quando o Visconde de Barbacena se negou a revogar uma ordem de banimento contra ele, uniu-se à Inconfidência Mineira no final da década de 1780, da qual participou ativamente, tendo se comprometido a arranjar 200 cavaleiros armados para a revolução. À essa época, já tinha grande influência sobre a região do Serro, na região de Diamantina, no Alto Jequitinhonha, região Central de Minas, motivo de a Coroa Portuguesa temê-lo.

Após serem denunciados, foi julgado junto com seus companheiros da Inconfidência Mineira e passou quinze anos preso, primeiro na Fortaleza de São Bento da Saúde - até 1796 -, e depois no Mosteiro de São Bento da Saúde, em Lisboa. Já em 1805 estava de volta ao Brasil com a esposa e filhos.
Lutou, então, para reaver seus bens que haviam sido confiscados, mas só o conseguiu com a declaração da Independência do Brasil, quando foi também indenizado.
                                                                                                                                                                          
Morreu aos 88 anos, em 1835, tendo sido sepultado na Igreja Nossa Senhora do Carmo,  em Diamantina, após ter sido velado com paramentos da Maçonaria.

Leia mais sobre corrupção na Inconfidência Mineira, clicando aqui:

Elaborado por Álbano Silveira Machado, tendo como fontes de pesquisa a Wikipedia, mgquilombo  e o livro "A devassa da devassa", de Kenneth Maxuell.
Este texto foi publicado em abril de 2010; 21 de abril de 2015 e reproduzido, hoje, 21.04.2021,  na íntegra.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Quilimérios do Jequitinhonha: curta-metragem retrata história de comunidade isolada da sociedade

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Quilimérios: uma comunidade isolada entre montanhas 
de pedra, em Rubim, no  Baixo Jequitinhonha.
Uma pequena comunidade do Vale do Jequitinhonha tem o isolamento social 
como cultura. Mas não é em função da pandemia. 
Há mais de um século é assim!
No meio de uma natureza exuberante e em local quase inacessível, vivem os 
"Quilimérios", povo que foi tema de um curta metragem do diretor mineiro Emerson 
Penha, com produção do jornalista Zu Moreira.
Os quilimérios vivem isolados nas montanhas de pedra que se impõem em formas 
diferentes a quem decide visitar a região. 
Uma comunidade que se mantém no passado. 
O contato quase não existe com a cidadezinha mais próxima, chamada Rubim, 
na região nordeste de Minas, no Vale do Jequitinhonha.

Perceba a altura do local onde vivem os Quilimérios

O curta-metragem foi gravado em maio de 2019, antes da pandemia da COVID-19. 
O vídeo está disponível na internet.
Clique AQUI e assista.

“Quilimérios” – Horizonte Filmes (2020)

·         Direção de Emerson Penha.    Fotografia de Fábio Damasceno
·         Música de Túlio Mourão -        Produção de Zu Moreira
·         Montagem de Rafael Diniz (Fiel). Junho de 2020.

Pedras Seios de Rubim

Em 2011, o blog Made in Rubim, de Kawan Dutra, 
registrou a existência do povo quilimério 
Quilimério é um grupo descendente de quilombolas e tribos indígenas. 
Naturais da cidade de Pedra Azul, que sem estrutura alguma migraram 
para Rubim, onde residem em lugar íngreme e rochoso dentro da Pedra Parda, 
tendo à sua frente as Pedras Seios. Inicialmente conhecidos como Juca Preto, nome 
este que fazia referência ao mais velho habitante e também o pioneiro no povoamento 
da região. Com sua morte teve o nome do grupo alterado para Quilimério, que também 
fazia referência ao mais velho habitante naquele momento. Porém, este nome 
permaneceu mesmo após sua morte.

Dentro da Cordilheira Pedra Parda

A alimentação é obtida através do meio mais rústico possível, caçando animais e 
fazendo pequenos cultivos. A água é utilizada sem nenhum tratamento adequado, 
pois além de ser barrenta não é fervida ou filtrada. O armazenamento não 
é feito de forma correta.

Uma das principais características deste grupo é a timidez de seus integrantes e o 
isolamento em que se postam. O povo Quilimério casa-se apenas entre si.
Fotos: Zilma Souza Nascimento. Pesquisa: Rafaela Chiara.
Fonte: https://madeinrubim.wordpress.com/historia/quilimerios/
e aqui nesse Blog:
https://blogdobanu.blogspot.com/2011/04/os-quilimerios-um-povo-tradicional-de.html



sábado, 6 de junho de 2020

Jequitinhonha: De Belmonte, na Bahia, a Diamantina - uma via de conhecimento, arte, design, gente e identidade cultural

De Belmonte a Diamantina, 
do mar ao sertão.
Confira o texto, fotos e o video dos principais momentos da expedição da Casa Vogue ao Vale do Jequitinhonha, 
em 2018.
·        
·         TEXTO MARIANA CONTE | ESTILO ADRIANA FRATTINI | PRODUÇÃO RAFAEL ALVES | FOTOS RUY TEIXEIRA | PROGRAMAÇÃO VISUAL HARDY DESIGN
06 DEZ 2018 - 06H04 ATUALIZADO EM 02 SET 2019 - 17H46.

Durante dez dias, Casa Vogue percorreu a região do Vale do Jequitinhonha para explorar as expressões culturais da região que influenciam o design brasileiro. Rio acima, de Belmonte, na Bahia, a Diamantina, em Minas Gerais, encontramos beleza, inspiração e pessoas que lutam – e realizam. A seguir, os registros dessa emocionante expedição.
BELMONTE
Em terra de Zanine Caldas

“AS PESSOAS SÃO COMO OS RIOS, SE FORTALECEM QUANDO SE ENCONTRAM”. De autor desconhecido, a frase apareceu no meio da jornada desse primeiro Casa Vogue na Estrada, como que a evidenciar, em palavras, o que vivemos e presenciamos nos inúmeros encontros à beira do Rio Jequitinhonha: força, afeto e identidade.

Museu das Cadeiras de Belmonte chega a São Paulo durante o DW ...
Em frente ao recém-inaugurado Museu das Cadeiras Brasileiras, em Belmonte, BA, da esq. para a dir., as cadeiras: Esqueleto (2012), de Pedro Franco, da A Lot Of; Cobra Coral (2016), de Sérgio Matos; Menna (1978), de Sergio Rodrigues, na Dpot; Sem nome (anos 1950), de José Zanine Caldas; Assimétrica (2017), de Fernando e Humberto Campana para Tok&Stok; Torno (2017), de Gustavo Bittencourt; Guapa (2018), de Inês Schertel; Broto (2008), de Morito Ebine; e Girafa (2018), de Juliana Vasconcellos ( Ruy Teixeira)

A expedição começou num dos endereços mais bonitos que um lugar pode ter: a esquina deste rio com o Oceano Atlântico. Ali está Belmonte, cidadezinha pacata no sul da Bahia, com cerca de 20 mil habitantes, que se alimenta da foz do rio, do cacau, das belas paisagens e da arquitetura histórica. É também cidade natal do mestre José Zanine Caldas (1919-2001), arquiteto, designer e maquetista autodidata cuja memória permanece vivíssima graças ao filho, o designer Zanini de Zanine.
Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
A casa onde nasceu Zanine Caldas, que hoje abriga o Sindicato Rural de Belmonte, sediará o museu sobre a obra do arquiteto ( Ruy Teixeira).
Belmonte acaba de inaugurar o Museu das Cadeiras Brasileiras, uma iniciativa que nasceu do encontro de Zanininho, como é conhecido, com Daniel Katz, da Katz Construções, e que pretende registrar a cultura nacional e perpetuar o legado do design nacional. “Vai funcionar como um apêndice do museu Zanine Caldas”, explica Zanini, revelando a próxima empreitada: um espaço em homenagem ao pai, com estreia em 2019, ano do centenário do mestre. O local escolhido não poderia ser mais simbólico: a casa onde Zanine Caldas nasceu e viveu até os 17 anos – atual sede do Sindicato Rural de Belmonte. O projeto terá assinatura do arquiteto Marcio Kogan e o museu vai contar com um acervo de móveis, maquetes, croquis, fotos, vídeos e itens pessoais. “É a realização de um sonho, dividir uma obra de extrema importância e brasilidade nessa área cultural com o povo de Belmonte e os amantes de arquitetura, arte e design”, afirma Zanini.

Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
Da esq. para a dir., Lissa Carmona, CEO da Etel, o designer Zanini de Zanine e Etel Carmona, com os protótipos dos móveis de Zanine Caldas que serão reeditados pela Etel em 2019. ( Ruy Teixeira)

Além da atuação como maquetista de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, e de projetar com extremo respeito aos contornos da natureza, Zanine Caldas foi um notável designer. Pioneiro da indústria moveleira moderna, amante das madeiras nacionais, na década de 1970, ele se dedicou ao design artesanal e às formas brutas, essenciais. Todo esse repertório foi estudado e esmiuçado pela Etel, marca que valoriza o traço brasileiro e mantém em produção peças de grandes nomes, e que lançará, também no próximo ano, uma coleção com poltrona, cadeira, espreguiçadeira, mesa lateral, escrivaninha, estante, revisteiro e outras peças de Zanine Caldas. “Serão entre 12 e 15 móveis reeditados e realizados em intensa parceria com a família Caldas, com total supervisão do seu filho”, diz Lissa Carmona, CEO da Etel. Esse trabalho de reviver ícones do mobiliário nacional, preservando suas identidades e usando a tecnologia atual, é uma especialidade da empresa, que tem no portfólio criações de Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi, Sergio Rodrigues, Jorge Zalszupin, entre outros. “Para nós, é como um resgate da história, do legado desses profissionais. Queremos dar vida ao universo de Zanine Caldas e preservar sua herança”, conclui.
Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
A artesã Dagmar Muniz esculpe um de seus vasos de 2 metros ( Ruy Teixeira)
Completando nossa passagem por Belmonte, outra descoberta notável foi dona Dagmar. Aos 76 anos e com 1,60 m de altura, a artesã produz, num vai e vem e sobe e desce constantes, peças de cerâmica que incluem vasos de 2 m. “Deus me deu saber e me deu o poder de subir nos bancos para ir a dois metros de altura”, fala, enquanto demonstra sua arte e sua energia incansável. E tudo isso sem usar torno: são as próprias mãos e o auxílio de cartões de plástico e galhos que dão forma e autenticidade às suas obras.
Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
Manuelle Ferraz, cozinheira e idealizadora do restaurante A Baianeira ( Ruy Teixeira)
ALMENARA
A Baianeira

Seguindo em direção à nascente do Rio Jequitinhonha, paramos em Almenara, MG, cidade natal de Manuelle Ferraz (acima), cozinheira e idealizadora do restaurante A Baianeira, em São Paulo. Ela nos recebeu com sua família na casa onde passou boa parte da infância, e preparou uma refeição recheada das raízes e da alma do Vale do Jequitinhonha. No cardápio, abóbora com quiabo, maxixe e mamão verde com carne-de-sol, receitas típicas de um almoço de domingo da região. A energia de Manu, do seu fazer com simplicidade e da essência que mistura Minas e Bahia, transparece quando ela fala da comida, das suas influências e do poder das mulheres de sua vida. E todas essas forças somadas estão no sabor de sua culinária. Com Manu, passeamos pelo Mercado Municipal de Almenara, de onde ela importa boa parte dos ingredientes que usa no restaurante paulistano, fortalecendo e valorizando a rede de produtores da região.

Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
O artesão seu Paulo, de 83 anos, usa pedaços de madeira achados soltos pela natureza para construir brinquedos ( Ruy Teixeira)
ARAÇUAÍ
Madeira lúdica

No caminho para a comunidade rural de Córrego da Velha, no município de Araçuaí, MG, estradas de terra e um cenário com cactos descortinava o sertão mineiro. Casinhas comuns, dessas que desenhamos quando criança, margeavam nossa travessia. Apesar do clima árido da região, a chuva veio forte naqueles dias, a poeira baixou e a vegetação acendeu: um lindo contraste de cores.
Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
Brinquedos feitos pelo seu Paulo ( Ruy Teixeira)

À direita da estrada, uma árvore potente e um portãozinho feito de lascas de madeira dão as boas-vindas ao universo do seu Paulo (mais acima), um senhor de 83 anos que usa pedaços de madeira achados soltos pela natureza para construir brinquedos. Vacas e bezerrinhos, cavalos, meninos, meninas, mulheres e homens fazem parte do repertório do artesão – são referências presentes no seu dia a dia. A criatividade vai longe, encanta crianças e adultos, mas a energia para produzir já não é a mesma de alguns anos atrás. “A gente vai seguindo. Tem gente que fala que vou fechar os 90, mas 100 acho que não fecho não. É só Deus que sabe. Nós não sabe de nada” [sic], reflete.
Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
A tecelã dona Ana e a diretora criativa da Coven, Liliane Rebehy, no Curtume, com as bolsas da grife feitas a partir das mantas tecidas por dona Ana ( Ruy Teixeira)
JENIPAPO DE MINAS
Unidas pelo bordado

Por onde passávamos, a recepção combinava abraços apertados, uma felicidade guardada em sorrisos ora tímidos ora escancarados, e um cafezinho com biscoitos e queijo. Ao chegarmos na Associação Jenipapense de Assistência à Infância (Ajenai), na cidade de Jenipapo de Minas, não foi diferente. Elisângela Pedroso Lopes, coordenadora da associação, guiou-nos rumo a um dos encontros mais preciosos da expedição, na comunidade do Curtume. Lá, vivem mulheres fortes. Muito mais fortes e resistentes depois de terem se conhecido e formado o grupo das Bordadeiras do Curtume.

Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
As bordadeiras, com Ana Vaz ao centro, e seus estandartes, que estão à venda na loja Marcas Mineiras, em Tiradentes, MG, pelo instagram @tecelas_ bordadeiras e, a partir de fevereiro, nas lojas da Coven
( Ruy Teixeira)
Com a coordenação da consultora de projetos sociais Viviane Fortes e o apoio da Ajenai, essas mulheres foram estimuladas a fazer companhia umas às outras e a resgatarem sua autoestima e cultura. “O dia a dia delas é muito duro. Os maridos saem para procurar trabalho, normalmente no corte de cana ou em plantações de café, e ficam meses, às vezes anos, fora de casa. Elas vivem um abandono, adoecem, ficam deprimidas e, ainda assim, precisam dar conta de sustentar a família, trabalhando na roça e plantando o que comem”, relata Viviane.
Foi durante essas reuniões que manifestou-se o conhecimento do bordado. Quem sabia ensinou para quem não sabia e o filho de uma delas, Diogo, fez os desenhos, que são imagens que ele vê na comunidade: as mulheres, os bichos, as plantas. As bordadeiras preenchem e dão vida a esses contornos com a técnica do ponto cheio. O resultado é um bordado com muita identidade. “A gente conversa, ri, canta, brinca e se distrai. Bordar ajuda não só financeiramente, mas psicologicamente. É um prazer ver a nossa arte agradar outras pessoas”, orgulha-se Marli, umas das artesãs.

Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
As camisas da Coven assinadas pelas Bordadeiras do Curtume (Foto: Ruy Teixeira)
Uma vez engrenado o trabalho, veio a ideia de torná-lo fonte de renda. Para dar suporte, Viviane convidou a designer têxtil Ana Vaz, que auxiliou a estruturar o processo e, em conjunto com as bordadeiras, deu luz a uma coleção de estandartes com bordados de desenhos autorais e tecidos tingidos com cascas e plantas nativas, tudo feito por elas. “É como se a gente estivesse levantando uma bandeira.  A bandeira do afeto, do amor, porque mesmo com tantas dificuldades, é incrível a generosidade dessas mulheres”, diz Ana.

A rede de colaboração foi aumentando, e Ana contatou Liliane Rebehy, diretora criativa da Coven, que doou tecidos e fios para o projeto. Mais do que isso, Liliane foi conhecer de perto o Curtume. Da sua imersão, nasceu a coleção inverno/2019 da marca mineira, referência fashion em todo o Brasil. “A moda precisa ser movida por uma paixão. A Coven está fazendo 25 anos e eu estava me sentindo muito desmotivada. Quando voltei do Vale e comecei a mexer nas coisas que eu trouxe, relembrar o que vi e vivi, percebi que estava tudo ali”, conta Liliane. 

Lá, ela também conheceu outras duas figuras fundamentais, dona Ana e dona Cena, que trabalham com teares pequeninos e tecem lindas mantas com uma noção estética genuína. Essas tramas estão nas novas bolsas da grife, e os bordados aparecem em camisas que terão todo o lucro revertido para as bordadeiras. 
“Me entreguei ao desafio de criar a coleção com uma temática regionalista, para direcionar atenção para essas pessoas, mas sem deixá-la literal, caricata, acrescentando meu olhar e a identidade da Coven. É muito mais prazeroso e faz muito mais sentido quando você tem esse envolvimento com pessoas, quando essa inspiração não é só material ou estética, ela é afetiva, humana”, completa Liliane, com a preocupação de manter esse compromisso social após a temporada chegar ao fim. 
“Pretendo expor e vender as peças da comunidade tanto nas lojas em Belo Horizonte e São Paulo quanto no e-commerce, que está quase pronto”.

Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
Zé do Ponto, o famoso artesão de Chapada do Norte ( Foto: Ruy Teixeira)

CHAPADA DO NORTE
Design naif

A caminho de Turmalina, paramos na cidade de Chapada do Norte, MG, para encontrar o famoso Zé do Ponto (acima). Filho de tropeiro, aos 12 anos ele já produzia caixas de couro para ajudar no transporte de secos e molhados. Hoje, é famoso por seus itens de madeira, com tramas em couro e palha de milho. São bancos, cadeiras, baús, tamboretes e bolsas com marca registrada. “O trabalho dele tem puro estilo rural, campestre. É genuíno, como arte naïf. Ele produz de forma espontânea, mas com muito senso estético, peças que estão no imaginário coletivo”, resume Adriana Frattini, diretora de estilo da Casa Vogue, que se encantou pelo seu Zé do Ponto.

Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
Fábrica Divina Terra, em Turmalina, MG (Ruy Teixeira).
TURMALINA
Artesanato industrial

Chegando em Turmalina, MG, uma mudança de perspectiva: das microproduções para uma escala maior. Era a fábrica da Divina Terra, onde o fazer artesanal ainda prevalece na produção industrial de revestimentos, tornando únicas as mercadorias saídas dali – que são, em sua grande maioria, prensadas, cortadas e esmaltadas à mão.

Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
Cobogó Mão, assinado pelos irmãos Campana em parceria com a Divina Terra (Foto: Ruy Teixeira).
Foi essa prática manual e cuidadosa que atraiu o Instituto Campana, dos irmãos Fernando e Humberto, para desenvolver, em parceria com a Divina Terra, o cobogó Mão (acima), peça que celebra o design autoral brasileiro e chama atenção para o desastre ambiental ocorrido em Mariana, MG, em 2015. Aproximar o design de técnicas ancestrais de diferentes regiões do Brasil e, com isso causar uma transformação na sociedade, é a bandeira levantada pelo Instituto Campana.

Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
O banco Trio, de Juliana Vasconcellos, feito com mogno africano do Grupo Khaya Woods .
(Foto: Ruy Teixeira)
CAPELINHA
Mogno africano

Seguindo pelo Vale do Jequitinhonha, a paisagem começa a mudar quando plantações de café despontam no horizonte. O destino da vez era a Fazenda Primavera, no município de Capelinha, MG. Por lá, junto à produção cafeeira, árvores altas roubam a cena. São os mognos africanos, plantas de uma madeira nobre com excelentes propriedades físicas e mecânicas para a indústria moveleira, e uma opção ao mogno brasileiro, que teve seu corte proibido pelo Ibama devido ao desmatamento ilegal e à quase extinção da espécie. “É uma árvore de crescimento relativamente rápido em comparação com outras madeiras de lei”, conta Patricia Fonseca, diretora executiva da Associação Brasileira dos Produtores de Mogno Africano.

Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
Plantação de mogno africano na Fazenda Primavera e estátuas esculpidas nessa madeira por Ricardo das Artes, de Prados, MG. (Foto: Ruy Teixeira)
Segundo ela, ao unirem as plantações, os produtores perceberam que o café se beneficiava do sombreamento das árvores de mogno. A associação tem se encarregado de estimular testes com a matéria-prima e criou o Mahog Project, que incentiva o uso do material em peças de design, como o banco Trio, da arquiteta e designer mineira Juliana Vasconcellos.

Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
Uma das salas da Pousada Relíquias do Tempo, sediada em um casarão do século 19 no centro de Diamantina, que guarda preciosidades como fotografias do renomado retratista Chichico Alkmim, boneca de Durvalina Gomes Francisco e arraiolo de Maria Tadeu (sobre o sofá). (Foto: Ruy Teixeira)
DIAMANTINA
Design final

Próxima à nascente do Rio Jequitinhonha, que fica em Serro, Diamantina, MG, foi a parada final do primeiro Casa Vogue na Estrada. Pelas ruelas de pedra, íngremes e sinuosas, estão casarões históricos de arquitetura colonial, que enchem de charme a cidade. A beleza de suas construções e de seu povo foi amplamente admirada e registrada pelo fotógrafo Chichico Alkmim (1886-1978) entre as décadas de 1910 e 1950. Chichico tinha uma sensibilidade única para retratar pessoas. Mulheres, homens e crianças, negros e brancos, ganhavam vida e um registro na história através de suas lentes. Em busca destes retratos, chegamos à Pousada Relíquias do Tempo, com obras raras do fotógrafo e um patrimônio cultural da história diamantinense. Fomos apresentados a cada cantinho do local, que conserva pequenos “museus” sobre a cidade, por Carmen, nascida em um daqueles quartos, e Leonardo, seu marido.

Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
Clube Social, obra de Oscar Niemeyer no centro histórico de Diamantina, MG, hoje completamente abandonado (Foto: Ruy Teixeira).
Em meio aos prédios históricos, é possível achar obras modernas de Oscar Niemeyer, como o Hotel Tijuco, ainda em operação, e o Clube Social, que teve importante papel na cidade e, hoje, encontra-se totalmente abandonado. Os edifícios fazem parte da modernização do município, iniciada um pouco antes de um de seus cidadãos mais ilustres assumir o governo de Minas Gerais: Juscelino Kubistchek.

Casa Vogue na Estrada: os melhores momentos da nossa expedição pelo Vale do Jequitinhonha (Foto: Ruy Teixeira)
A pequena capela da Pousada Relíquias do Tempo (Foto: Ruy Teixeira).
Outra riqueza local é a música. Todos os anos, entre abril e outubro, Diamantina recebe as Vesperatas. Em dias específicos, a partir das 20 h, músicos diversos se apresentam por mais de duas horas das sacadas dos casarões seculares enquanto os maestros regem do meio da rua. Em 2016, o evento foi considerado Patrimônio Cultural de Minas Gerais. A música diamantinense, no entanto, já aparecia em crônica de Carlos Drummond de Andrade, em 1972: 
“Quem, conhecendo Diamantina, será capaz de não gostar de Diamantina? Mesmo não conhecendo: ouvindo falar. Pois, entre outras excelências, o povo de Diamantina é povo que canta, e isto significa riqueza de coração.” 
Impossível discordar do poeta!

Confira a publicação original e o bonito video da expedição Casa Vogue:
casavogue.globo.com/LazerCultura/Viagem/noticia/2018/12/os-melhores-momentos-da-nossa-expedicao-pelo-vale-do-jequitinhonha.html

Fonte: Revista Vogue, 06.12.2018

Outras informações do Blog:
O Vale do Jequitinhonha é retalhado em muitas partes e microrregiões pelos técnicos planejadores do Estado. Isso cria desinformações sobre o território da Bacia Hidrográfica do Rio Jequitinhonha. 
A Bacia do Rio Jequitinhonha forma o Vale do Jequitinhonha que ocupa um vasto território em Minas, parte da região central, nordeste e norte de Minas, e também no sul da Bahia. 
O rio Jequitinhonha nasce na Serra do Espinhaço, na região de Milho Verde, no município de Serro, região Central de Minas, percorre 1.090 km até chegar na sua foz no município de Belmonte, na Bahia. A bacia do rio Jequitinhonha compreende uma área de 70.315 km², sendo que 66.319 km² situam-se em Minas Gerais, enquanto 3.996 km² pertencem à Bahia representando 11,3% da área do estado mineiro e apenas 0,8% do baiano.
Confira o Mapa do IBGE:
Vale do Jequitinhonha - Blog do Banu: Mapa do Vale do ...

domingo, 24 de maio de 2020

Nanuque: Compadre Tote partiu. Foi contar causos no céu!

Tote, o contador de causos, 
vendedor das alegrias!
Por Gonzaga Medeiros*

Tote (Sóstenes Araújo Freire) faria 85 anos agora em agosto. Vinha tendo uns probleminhas naturais da idade, como perda de memória e dificuldade na fala. Por isso foi internado no hospital em Téofilo Otoni, onde ficou por uns 30 dias. Acabou saindo vítima da Covid-19. Faleceu, na manhã de sexta-feira, 22 de maio, sendo sepultado no mesmo dia, em Nanuque, no Vale do Mucuri, nordeste de Minas, onde residia.
Deixou a esposa Marli e os filhos Léa, Duda e Ludmila, além de netos e bisnetos.

O Brasil perdeu um dos seus melhores contadores de “causos” e declamadores populares.
Dicção perfeita, memória prodigiosa, voz cativante.
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Tote, Raimundo Luiz de Padre Paraíso e o poeta Gonzaga Medeiros.

Um exímio narrador, em prosa e verso, de histórias de humor, feitos de glória, fatos marcantes, tragédias, vitórias e derrotas de personagens que na sua voz se tornavam reais em “causos” de sua própria lavra e de poetas e escritores, principalmente nordestinos.

Foi um mestre na arte. De sua fonte bebemos todos nós, amigos e admiradores seus. Que eu mesmo o diga e mais ainda o digam Saulo Laranjeira, Rolando Boldrin, Lima Duarte, Elomar, Xangai, Pereira da Viola, centenas de amigos mais próximos e todas as plateias que o viram de perto no teatro, na TV e no rádio, nas praças, botecos e esquinas de Nanuque e inúmeras outras cidades de Minas e do Brasil.

Tote nasceu em Palmeira dos índios, Alagoas, tendo chegado a Nanuque-MG, na década de 50. Em Nanuque, além de empresário de sucesso no comércio de tratores agrícolas da AGRALE, foi vereador pelo PTB, na legislatura 59/62.
Seus posicionamentos políticos em defesa de interesses do povo, na tribuna da Câmara Municipal, e em todos os lugares, lhe renderam mais tarde, isso em 01.01.70, uma prisão pelo regime militar, acusado de “exercer atividades subversivas“. Foi encaminhado para uma cela da 4ª Região Militar do Exército em Juiz de Fora-MG, sendo aberto Inquérito Policial Militar – IPM. Ficou preso por 45 dias,
incomunicável por 30 deles, sem sofrer torturas físicas, embora a alma do homem de bem tenha certamente se debatido em meio à tortura moral.
A imagem pode conter: 1 pessoa, em pé e interiores
Compadre Tote e o cantor Tau Brasil.

Acabou inocentado por falta de provas de que exercesse as tais “atividades subversivas”. Nada devia. O que fazia mesmo era tramar, à luz do Sol e ao clarão da Lua, alegrias em prosa e verso, para os aplausos da plateia, que sempre pedia bis.

Voltou para casa e para os seus. Tempos depois tive a elevada honra de ser seu advogado perante a Comissão Brasileira de Anistiados Políticos, em Brasília-DF, em desfecho favorável, graças à verdade da história, a mesma que haverá de proteger quaisquer outros brasileiros contra quem a tirania dos brutos de consciência ainda possa querer macular.

Homem de bem, o grande mestre deixou sua marca inconfundível de semeador de cultura popular com raízes no mais fundo chão da alma brasileira. Foi vendedor de alegrias. De boca em boca, seus seguidores vão perpetuar seu feito e sua memória, para o bem da cultura nacional.


Tote com o poeta Gonzaga Medeiros.

TOTE NO SOM BRASIL

Tote, vulgo Sóstenes Araújo Freire, é um ilustre cidadão residente em
Nanuque-MG. Anteontem (16.08.15) ele completou 80 anos. É sem
dúvida um dos melhores declamadores populares e contadores de
causos do Brasil. Em 1990 (?) fui encarregado pela produção do “Som
Brasil” da TV Globo, para acompanhar o Tote numa participação no
programa, àquela época apresentado pelo ator Lima Duarte.

“Só vou se Gonzaga Medeiros for comigo” – decretou ele. E fomos.
Levei um vidrinho de uísque pra dar uma “regulada” alcoólica no
Tote, que era um jeito de ele ficar “no ponto”, no grau como se diz,
mas com todas as recomendações de praxe, da lavra da esposa dele,
a diligente Marly Salgado Freire, minha querida Marla Branda, autora
da encomenda.

O uísque tava mesmo era num vidro de mais ou menos meio litro,
acho eu. Minha função era acompanhar, com visão crítica e
sobriedade, o ensaio do mestre Tote no camarim, dando-lhe, de vez
em quando, um golinho do “veneno” e ir adequando a emoção do
“rapaz” na proporção inversa do tempo que lhe faltasse para entrar
em cena. Não era fácil missão, mas eu também não podia ser
chamado de estreante na arte. Aliás, eu mesmo me gabava por tal
função. Fosse o contrário, como ser eu um enviado especial da Rede
Globo?

Não sei por que diabos o próprio Lima Duarte já havia tomado
conhecimento da nossa Sistemática Artístico-Operacional de
Regulagem Alcoólico-Emocional Toteana (SAORAET). Passando por
mim num dos intervalos, Lima me sussurrou com ar de gravidade:
“vai levando com jeito o rapaz pra não passar do limite”. As palavras
do Lima, de cara fechada, me deixaram intrigado. Descobri que a
coisa era muito mais séria do que eu imaginava e passei a “travar” o
Tote. Eu estava tenso, pois parecia que até a plateia esperava com
ansiedade a apresentação do Sóstenes Freire. Era como se a plateia
já conhecesse a fama do homem. É que a fama do homem havia se
espalhado.

Pra baixar minha pressão, tomei as três últimas doses do escocês e
escondi o litro de uísque, vazio, atrás de um sofá do camarim. Era um
litro? Estava vazio? Fui à boca do palco para ver a movimentação e
me envolvi com todas as emoções de ver o Antônio Carlos Nóbrega
ensaiando, o Gilberto Gil batendo papo com Fagner em outro canto e
outras presenças do agrado de qualquer fã como eu.

Voltando ao camarim para conduzir nosso artista ao topo da glória,
me vi, pelo espelho, num espanto de corpo inteiro. Gente, cadê o
Tote? Tote! Nada de Tote! Gritei pra mim mesmo: Gente, me acode,
o Tote sumiu!

Um dos artistas presentes, acho que o baiano João Bá, percebendo
meu desespero, adiantou-se: “olha, Gonzaga, se for um senhor de
cabeça branca, baixo, com o olho assim meio butecado, ele saiu pela
porta do fundo e entrou naquele boteco ali da esquina”. O mundo
tava acabando e eu corri pra não desabar encima de mim.

Peguei o Tote com a boca na botija, aliás, no copo. Sobre o balcão,
dois copos de uísque e ele se apressando em justificar: “olha aqui,
cumpade Gonza, eu vi que tava faltando um grauzinho. Pedi duas
doses porque uma era pra você. Bebe”.
Naquela hora, xingar pra quê? Bebi e voltamos correndo. Todos já
ansiavam pelo nosso regresso. Em tempo de segundos, estava tudo
pronto e Lima Duarte, ansioso, já anunciando: “aqui agora, pra vocês,
esse monstro sagrado que é o Tote...”

Antes que Lima Duarte terminasse a apresentação, Tote adentrou o
palco a passos largos e apressados e esfuziante arrematou: “...Eu sou
Tote lá de Nanuque, no Vale do Mucuri, terra de mulher bunita e
cabra bom no fuzí, mas em redor de três légua, viu Seu Lima, tem
cada um fi duma égua que nega até um pequi”.
Essa apresentação, assim como saiu, não estava no script, mas ficou
valendo, até porque a plateia entendeu imediatamente com quem
estava lidando e caiu na gargalhada. Mas foi tanta gargalhada, tanta
gritaria e confusão, que até atrapalhou o recomeço da apresentação.

No mais, verdade é que plateia nenhuma de gravação do Som Brasil
nunca tinha visto nada igual, de tão bonito que foi. Em verdade, foi a
grande noite de consagração do Tote. Só teve um porém: os
aplausos, a gritaria e a bagunça na arquibancada do teatro chamaram
a atenção de todos.
Diz a lenda que era uma arquibancada maior e nova que estava
sendo inaugurada justamente para aquela noite. Certo foi que a
arquibancada balançou perigosamente e o fato teria sido motivo de
um desentendimento, na madrugada, entre o nobre apresentador
Lima Duarte com a produção do programa, que acabou não indo ao
ar. Aliás, acreditem: a partir daquele dia, nunca mais o “nosso” Som
Brasil foi ao ar.

Já houve quem dissesse que foi o “fogo” do Tote que incendiou o
programa. E não era pra menos. Eu é que não fui. Tenho minha
consciência tranquila. O Brasil perdeu oportunidade rara de conhecer
o monstro sagrado da declamação popular e da contação de causos,
mas eu não tive culpa nenhuma, nem Tote, apesar da leve
transgressão dele ao meu método de regulagem alcoólica, receitado
pela sua esposa Marla, a Branda. Tem gente que espalha que até
hoje Tote usa um grauzinho a mais quando vai acabando uma festa. E
eu continuo me achando um bom aluno. (14.08.15).

*Gonzaga Medeiros é poeta, apresentador de eventos, compositor, agitador e gestor cultural, e, nas horas vagas, advogado. Nasceu em Pampã, no Vale do Mucuri, que mudou o nome, por sua sugestão, para Fronteira dos Vales, por estar entre o Mucuri e o Jequitinhonha. Mudou-se para Almenara, no Baixo Jequitinhonha, que o adotou como nativo dali. Mora em BH. Apresentou, com exceção de dois, todos os 36  FESTIVALEs - Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha, o maior evento de cultura popular da América Latina. Publicou livros de poesia, participou de antologias poéticas e gravou CD, cantando ou declamando.

Veja dois videos com Tote contando causos;

www.facebook.com/Tote.e.Gonzaga.Medeiros

https://www.youtube.com/Compadre.Tote."Eu.e.Bibia"