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quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Memória afetiva da formação musical no Vale do Jequitinhonha

 


A "Deusa Música" ganha um relato de vida intenso e presente na história de uma mulher do Vale do Jequitinhonha. Rosélia Ferreira relata como a música a formou como cidadã e pessoa.   

Fios de memória: “Como querer Caetanear o que há de bom.”

Rosélia Ferreira*

Posso dizer que a música é a maior herança que une minha família de origem, e que a família que constituí leva essa herança a sério, em veias e vozes. Pra minha grande alegria, diga-se de passagem.

Há muito transformei em prece – bem ouvida - um trecho de "Vila de amor e lobos", do cantor João Bosco: “peço aqui pra ela estar sempre no meu lar...música música sempre no meu lar”. E assim, quase que diariamente, nosso lar é saudado com a musicalidade dos meus dois filhos e, em muitas ocasiões, minha copa/cozinha se transforma em palco de vozes e violões, onde jovens amigos músicos-compositores-cantadores reverenciam, incontestes, a Deusa Música.

E não por acaso esses colóquios musicais se transformam, muitas vezes, em debate. Sendo quase todos remanescentes do Vale do Jequitinhonha, a música do Vale transforma-se, com alguma frequência, em tema central desses debates. Não apenas a música dos artistas do Jequitinhonha, mas aquela que ganhou corpo e projeção nos palcos do Festivale, o pioneiro e mais importante festival de cultura popular do Vale do Jequitinhonha, e que, em 2019, realizou sua 36ª edição, dividida entre Belmonte e Serro. Uma inovação digna de nota e reconhecimento, como o é o próprio Festivale, que pela primeira vez viajou até a porção baiana do Vale, na foz do Rio.



Pois bem, e um dos aspectos que incitam esse debate diz respeito ao estilo da maioria das músicas selecionadas e premiadas no Festivale, cujas características são, ainda hoje, muito próximas ao que se fazia nas primeiras edições, lá pelo final do anos  setenta e início dos 80. A opinião que muitos de nós têm é que o evento é pouco permeável a qualquer mudança ou inovação na chamada música do Vale do Jequitinhonha.

E confesso que, após um período ausente dos Festivales, senti, ao retornar em 2009, na edição de Grão Mogol, uma pontada de decepção ao ouvir as novas músicas premiadas, que me soaram meio velhas e sem muito brilho; destoavam do vigor juvenil e maduro do evento. Porém venho tentando entender esse desconforto, contraposto à enorme satisfação e prazer que o Festivale, em seu conjunto, me provoca ainda hoje. Vivenciar a força e resistência da cultura popular do Vale, em suas mais diversas manifestações, não é pouca coisa. Mas a música...bem...

E um sinal de entendimento veio dia desses, quando me peguei mostrando aos meus filhos Pedro e Caio, e a Eliezer Gonçalves - um músico muito querido que se hospedou conosco na última semana – a música “That’s what I want”, da banda The Square Set, da África do Sul. Um enorme sucesso de 1969, a música me fez voltar e me ver, aos cinco anos, sentada na porta de casa, ouvindo não apenas esta, mas toda uma geração de roqueiros como Beatles, Rolling Stones, Led Zepellin,  Janes Joplin, Jimi Hendrix e toda a turma do Iê iê iê, como Roberto e Erasmo Carlos, que faziam furor e revolucionavam os costumes, mesmo em cidades tão pequenas e periféricas como Coronel Murta, situada no Médio Jequitinhonha, a quase 700 km da capital.

Na época, a televisão não tinha chegado por lá e as Rádios AM eram os grandes canais midiáticos a levar o mundo pra nossa cidade. Porém naquele momento minha escuta vinha de altofalantes instalados no telhado do mercado municipal, onde o querido Dizim mantinha um mini estúdio de som e transmitia, diariamente, sua paixão pela nova música. Que prazer!!! E ao longo dos dias vinha de rádios como a Jornal do Brasil, Mundial e Cultura da Bahia; chegava com Chico Buarque, Maria Bethânia, Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Jobim, Secos e Molhados, Mutantes, Raul Seixas, Taiguara, Milton Nascimento, O Terço e inumeráveis artistas que despontavam naquele momento, junto com os da velha guarda, como Nelson Gonçalves, Pixinguinha e ainda Dalva de Oliveira e Maysa, para citar poucos.

 Nesse caldeirão de ritmos e sons vinham também os ícones da chamada música brega, como Altemar Dutra, Odair José, Valdick Soriano, Paulo Sérgio... que nos alto falantes dos circos e parques de diversão que chegavam e saíam da cidade, eram os campeões de pedidos para corações apaixonados. Impossível esquecer de Paulinho da Viola, Agepê, Roberto Ribeiro, Martinho da Vila, Clara Nunes, Alcione, Benito de Paula e toda uma legião de sambistas que invadiram o rádio no início dos 70, e que estimularam as rodas de samba para muito além dos morros e da Lapa carioca. Sei bem o quanto elas ainda me pegam de jeito! Pois bem, íamos crescendo com toda essa gama de influências musicais, (e este texto seria um capítulo de livro, fôssemos citar todos os artistas que ouvíamos) somadas ainda às nossas cantigas de roda, nossos cantos de domínio público, ensinados pelos mais velhos e cantados em festejos e, especialmente, pelas lavadeiras de roupas, nas suas labutas diárias à beira do Jequitinhonha.



 A grande diferença é que essas cantigas eram coisa nossa, do interior, coisa menor, da ponta do fim do mundo. Na minha criancice, jamais podia imaginá-las tocando nas rádios; eram cantigas, não ganhavam status de música, na sua acepção popular. Mas na segunda metade da década de 1970 vimos, com surpresa e espanto, se consolidar os movimentos de organização da cultura popular do Vale do Jequitinhonha.

Ali, nossos modos de existência, moldados às margens das políticas públicas, ou com políticas equivocadas e excludentes; sob a seca e na carência de tecnologias modernas tinham, finalmente, conquistado lugares de escuta e de reconhecimento. De algum modo não éramos mais os filhos da ponta do fim do mundo, passivos receptáculos de culturas desenvolvidas, mas ganhávamos status de produtores de cultura; poderíamos finalmente romper o monólogo e ofertar, trocar produtos e valores, doar a arte que criávamos e a singularidade dos atores que éramos. O vale da miséria estava sendo reinventado.

O que era periférico podia ser universal, ganhando outra centralidade nas nossas existências. Ver nosso artesanato em barro e algodão, nossa literatura, teatro e especialmente, nossa música, ganharem valor e importância trouxe um sentido de identidade e de força até então inimagináveis! A poesia orgânica dos poetas Gonzaga Medeiros, Tadeu Martins e Cláudio Bento - para citar alguns - nos agitando o coração em saraus que poderiam varar noites. E muitas vezes varavam.



Na música, Os Trovadores do Vale traziam, em disco, nossas cantigas, que poderiam agora transformar-se em música. Para além do disco, a Mestra Lira Marques despontava altiva, pra mim, no livro Me Ajude a Levantar, de Castilim (Carlos Figueiredo), um dos idealizadores do Festivale, junto com o poeta Tadeu Martins, com Aurélio Silby e George Abner. Pouco antes havia chegado o Jornal Geraes, o debate acerca de um Vale que não mais queria viver à sombra. Um manifesto libertário que também se opunha à ditadura militar. O Vale era Minas Gerais, era o Brasil, o Vale era o mundo, em vida verso e viola, depois também em verde, este menos monocromático que os extensos eucaliptais de um verde amargo.

Mas antes de tudo isso, uma eu menina de sete anos, com enorme espanto, ouviu numa manhã que na noite anterior, no Planalto Clube, em Araçuaí, um padre pulava carnaval. Foi difícil não sair para um canto, a caraminholar o turbilhão mental: - quer dizer então que o carnaval, a festa da carne e do pecado, a alegria, o prazer, não eram coisas do demônio?? Gostar, desejar e fazer isso não nos levaria fatalmente ao fogo do inferno, como diziam nossos pais e avós?? Então a festa também era de Deus?? Apenas prenúncios da ebulição cultural que viria depois.

O holandês franciscano Frei Chico abria em mim, alguns portais. Em Araçuaí e região, mostrava a esse povo singular que eles eram os portais. E o Festivale veio como uma corrente agregadora de tudo isso. E vimos surgir outros músicos e compositores, que cantavam e poetavam nossas dores e alegrias, nossas artes e fazeres, nossos pensares e sentires, mais ao pé do ouvido, de um lugar que na alma, aberta ao mundo lá de fora, parecia um cantinho, uma periferia. O Festivale nos mostrou que não era. Era sim, nosso cartão de visitas, até então ofuscado, marginal.

A música de Paulinho Pedra Azul, Rubinho do Vale, Saulo Laranjeira, Carlos Farias e muitos, muitos outros que nos fizeram cantar em coro a cada festival, show, roda e festejo, é testemunha da nossa emoção. “Canta conta cantador, conta a história que eu pedi, dizem que o Jequi tem onha, conta as onhas do Jequi”. E Rubinho cantava, e cantávamos com indizível alegria - e ainda cantamos. E esse nosso jeito de ser e fazer, e nossa música regional pode então ganhar as ondas do rádio, a tv, as metrópoles. Ainda que em espaços específicos, ela estava lá, nesse mundão de deus. E felizmente no quesito música, internamente não operamos por exclusão, ainda que a memória seja seleção. Mas como disse Maria Bethânia, “música é perfume” – ela mesma memória.

 E de lá para cá pudemos ofertar aos nossos filhos, os novos ouvintes, não apenas a música urbana das nossas metrópoles, o rock’nroll inglês ou a invasora música estadunidense. Tínhamos a oferecer ainda o vigor da música nordestina, dos hermanos latinoamericanos e, ora vivas! A música do Vale do Jequitinhonha.

A musa música ficou mais rica, rica de nós, conosco. E percebo ser no contexto dessa riqueza e vigor que desejam cantar os novos músicos do Vale; que querem fazer ecoar sua musicalidade. Sob minha ótica – e de muitos deles – insistir em restringir a música do Vale do Jequitinhonha ao formato único e presumivelmente acabado, moldado nos anos 70/80, é miopia. Para quem duvida, sugiro o CD Lavando a Alma, que Paulinho Pedra Azul lançou em 2008. Uma obra prima contra o conservadorismo de quem só consegue ouvir Bem te vi, que ele lançou no início da carreira. Continua linda, mas ele fez mais, inovou sem se perder, ao contrário.

Do mesmo modo, é possível que ninguém ouse questionar a música inigualável da escola Clube da Esquina, tão mineiramente original quanto universal, e que estendeu sua influência para o mundo. E seus artistas jamais negaram as influências do rock, do jazz e do blues, além das sonoridades típicas dos tambores e montanhas das Minas Gerais. E quem, amante da música, se carnavais”. Que assim seja!

Talvez nossa música deseje, ela também, e sem compromisso algum, antropofagizar, dizer que sonha que “um dia a fúria desse front virá lapidar o sonho até gerar o som como querer caetanear o que há de bom”. Quiçá, como disse nosso raríssimo Djavan! É possível que Suassuna censuraria e que os conservadores torçam o nariz, mas “yes, ‘that’s what I want”.

Rosélia Ferreira – outubro/2020.

Rosélia Ferreira de Sousa é bacharel em História pela FEVALE/UEMG e Mestre  em Sociedade, Saúde e Ambiente pela UFVJM. Trabalhou por 30 anos como servidora do SUS - Sistema Único de Saúde, na Vigilância Sanitária da Superintendência Regional de Diamantina (Vale do Jequitinhonha). Nativa de Itaporé, Coronel Murta, no Médio Jequitinhonha, Rosélia, a Neguinha, mora há mais de duas décadas em Diamantina. É uma grande apreciadora da música (regional, brasileira e mundial), dos movimentos culturais de Diamantina e do Vale do Jequitinhonha. Sua casa é um fervedouro de musicalidade. 

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Na pandemia, artesãs do Vale do Jequitinhonha vendem peças para grande rede varejista

Produtos comercializados reforçam o potencial criativo das comunidades mineirasFoto: Divulgação/Sede
FotoDivulgação/SEDE
Os produtos artesanais em cerâmica, desenvolvidos nas comunidades Coqueiro Campo e Campo Alegre, em Turmalina, no Vale do Jequitinhonha, ganharão as prateleiras de todo o país. Por meio de um empresário paulista, que conhece e admira os produtos desenvolvidos manualmente em Minas, as artesãs fecharam uma parceria e comercializaram, aproximadamente, nove mil peças para uma grande rede de varejo.
O grupo, formado por mulheres de 80 famílias, superou a crise econômica causada pelo novo coronavírus e bateu a marca de R$ 140 mil em vendas. “É muito gratificante ver o resultado do trabalho desenvolvido com as artesãs. Por causa da pandemia, não há nenhuma feira de artesanato ocorrendo no país, portanto não há como comercializar.  A conquista desta venda em grande proporção é a garantia de novas portas e outros mercados”, destaca o Superintendente de Desenvolvimento de Potencialidades Regionais, Frederico Amaral.
O esforço de logística para a entrega das mercadorias na capital paulista foi realizado pela Sede e pelo Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais (Idene), que descolocaram o caminhão do Programa do Artesanato Brasileiro, do Vale do Jequitinhonha até São Paulo. “Não temos palavras para agradecer o apoio que recebemos nesta venda. A logística de entrega foi fundamental. Estamos passando por momentos difíceis, com baixa nas vendas e a loja fechada temporariamente. O valor que recebemos irá ajudar muitas famílias”, ressalta a presidente da Associação dos Artesão de Coqueiro Campo, Terezinha Lopes dos Santos.
A coleção das peças vendidas para a rede de varejo passou por uma criação exclusiva. A inspiração foi baseada na cultura regional, respeitado o processo da tradição e a identidade cultural. Uma campanha publicitária será desenvolvida pela empresa para lançamento de vendas, valorizando o trabalho das comunidades.  
“Uma luz chegou no fim do túnel. Estávamos desanimadas com a atual situação enfrentada. A experiência com essa venda foi muito boa para nós. Trabalhamos muito para a entrega ser realizada. Estamos felizes com a valorização do artesanato mineiro”, conta animada a presidente da Associação dos Lavradores e Artesãos de Campo Alegre, Maria Aparecida Gomes.
A coordenação de logística e o acompanhamento da entrega dos produtos foi realizada pelo diretor de Artesanato da Sede, Thiago Tomaz. “Temos a certeza do reconhecimento de um produto de tradição. Ficamos felizes de ver que estamos ganhando espaço em lojas de departamento e mostrando a qualidade e a riqueza da cultura mineira”, disse.
Arte Salva
Para otimizar o deslocamento do caminhão que levou as peças artesanais de Minas até São Paulo, foram distribuídas nas regionais do Idene, representadas em 30 cidades das regiões Norte, Vale do Jequitinhonha e Vale do Mucuri, os produtos doados pela Bauduco dentro da campanha Arte Salva. Aproveitando o deslocamento até São Paulo, a entrega foi realizada também em cidades do Sul de Minas. Ao todo, três mil artesãos serão beneficiados. 
Fonte: SEDE - Secretaria de Desenvolvimento Econômico - SEDE/MG. Publicado: 21/07/2020 16:51, no site da SEDE.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Quilimérios do Jequitinhonha: curta-metragem retrata história de comunidade isolada da sociedade

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Quilimérios: uma comunidade isolada entre montanhas 
de pedra, em Rubim, no  Baixo Jequitinhonha.
Uma pequena comunidade do Vale do Jequitinhonha tem o isolamento social 
como cultura. Mas não é em função da pandemia. 
Há mais de um século é assim!
No meio de uma natureza exuberante e em local quase inacessível, vivem os 
"Quilimérios", povo que foi tema de um curta metragem do diretor mineiro Emerson 
Penha, com produção do jornalista Zu Moreira.
Os quilimérios vivem isolados nas montanhas de pedra que se impõem em formas 
diferentes a quem decide visitar a região. 
Uma comunidade que se mantém no passado. 
O contato quase não existe com a cidadezinha mais próxima, chamada Rubim, 
na região nordeste de Minas, no Vale do Jequitinhonha.

Perceba a altura do local onde vivem os Quilimérios

O curta-metragem foi gravado em maio de 2019, antes da pandemia da COVID-19. 
O vídeo está disponível na internet.
Clique AQUI e assista.

“Quilimérios” – Horizonte Filmes (2020)

·         Direção de Emerson Penha.    Fotografia de Fábio Damasceno
·         Música de Túlio Mourão -        Produção de Zu Moreira
·         Montagem de Rafael Diniz (Fiel). Junho de 2020.

Pedras Seios de Rubim

Em 2011, o blog Made in Rubim, de Kawan Dutra, 
registrou a existência do povo quilimério 
Quilimério é um grupo descendente de quilombolas e tribos indígenas. 
Naturais da cidade de Pedra Azul, que sem estrutura alguma migraram 
para Rubim, onde residem em lugar íngreme e rochoso dentro da Pedra Parda, 
tendo à sua frente as Pedras Seios. Inicialmente conhecidos como Juca Preto, nome 
este que fazia referência ao mais velho habitante e também o pioneiro no povoamento 
da região. Com sua morte teve o nome do grupo alterado para Quilimério, que também 
fazia referência ao mais velho habitante naquele momento. Porém, este nome 
permaneceu mesmo após sua morte.

Dentro da Cordilheira Pedra Parda

A alimentação é obtida através do meio mais rústico possível, caçando animais e 
fazendo pequenos cultivos. A água é utilizada sem nenhum tratamento adequado, 
pois além de ser barrenta não é fervida ou filtrada. O armazenamento não 
é feito de forma correta.

Uma das principais características deste grupo é a timidez de seus integrantes e o 
isolamento em que se postam. O povo Quilimério casa-se apenas entre si.
Fotos: Zilma Souza Nascimento. Pesquisa: Rafaela Chiara.
Fonte: https://madeinrubim.wordpress.com/historia/quilimerios/
e aqui nesse Blog:
https://blogdobanu.blogspot.com/2011/04/os-quilimerios-um-povo-tradicional-de.html



domingo, 24 de maio de 2020

Nanuque: Compadre Tote partiu. Foi contar causos no céu!

Tote, o contador de causos, 
vendedor das alegrias!
Por Gonzaga Medeiros*

Tote (Sóstenes Araújo Freire) faria 85 anos agora em agosto. Vinha tendo uns probleminhas naturais da idade, como perda de memória e dificuldade na fala. Por isso foi internado no hospital em Téofilo Otoni, onde ficou por uns 30 dias. Acabou saindo vítima da Covid-19. Faleceu, na manhã de sexta-feira, 22 de maio, sendo sepultado no mesmo dia, em Nanuque, no Vale do Mucuri, nordeste de Minas, onde residia.
Deixou a esposa Marli e os filhos Léa, Duda e Ludmila, além de netos e bisnetos.

O Brasil perdeu um dos seus melhores contadores de “causos” e declamadores populares.
Dicção perfeita, memória prodigiosa, voz cativante.
A imagem pode conter: 2 pessoas, incluindo Gonzaga Medeiros, pessoas sentadas e interiores
Tote, Raimundo Luiz de Padre Paraíso e o poeta Gonzaga Medeiros.

Um exímio narrador, em prosa e verso, de histórias de humor, feitos de glória, fatos marcantes, tragédias, vitórias e derrotas de personagens que na sua voz se tornavam reais em “causos” de sua própria lavra e de poetas e escritores, principalmente nordestinos.

Foi um mestre na arte. De sua fonte bebemos todos nós, amigos e admiradores seus. Que eu mesmo o diga e mais ainda o digam Saulo Laranjeira, Rolando Boldrin, Lima Duarte, Elomar, Xangai, Pereira da Viola, centenas de amigos mais próximos e todas as plateias que o viram de perto no teatro, na TV e no rádio, nas praças, botecos e esquinas de Nanuque e inúmeras outras cidades de Minas e do Brasil.

Tote nasceu em Palmeira dos índios, Alagoas, tendo chegado a Nanuque-MG, na década de 50. Em Nanuque, além de empresário de sucesso no comércio de tratores agrícolas da AGRALE, foi vereador pelo PTB, na legislatura 59/62.
Seus posicionamentos políticos em defesa de interesses do povo, na tribuna da Câmara Municipal, e em todos os lugares, lhe renderam mais tarde, isso em 01.01.70, uma prisão pelo regime militar, acusado de “exercer atividades subversivas“. Foi encaminhado para uma cela da 4ª Região Militar do Exército em Juiz de Fora-MG, sendo aberto Inquérito Policial Militar – IPM. Ficou preso por 45 dias,
incomunicável por 30 deles, sem sofrer torturas físicas, embora a alma do homem de bem tenha certamente se debatido em meio à tortura moral.
A imagem pode conter: 1 pessoa, em pé e interiores
Compadre Tote e o cantor Tau Brasil.

Acabou inocentado por falta de provas de que exercesse as tais “atividades subversivas”. Nada devia. O que fazia mesmo era tramar, à luz do Sol e ao clarão da Lua, alegrias em prosa e verso, para os aplausos da plateia, que sempre pedia bis.

Voltou para casa e para os seus. Tempos depois tive a elevada honra de ser seu advogado perante a Comissão Brasileira de Anistiados Políticos, em Brasília-DF, em desfecho favorável, graças à verdade da história, a mesma que haverá de proteger quaisquer outros brasileiros contra quem a tirania dos brutos de consciência ainda possa querer macular.

Homem de bem, o grande mestre deixou sua marca inconfundível de semeador de cultura popular com raízes no mais fundo chão da alma brasileira. Foi vendedor de alegrias. De boca em boca, seus seguidores vão perpetuar seu feito e sua memória, para o bem da cultura nacional.


Tote com o poeta Gonzaga Medeiros.

TOTE NO SOM BRASIL

Tote, vulgo Sóstenes Araújo Freire, é um ilustre cidadão residente em
Nanuque-MG. Anteontem (16.08.15) ele completou 80 anos. É sem
dúvida um dos melhores declamadores populares e contadores de
causos do Brasil. Em 1990 (?) fui encarregado pela produção do “Som
Brasil” da TV Globo, para acompanhar o Tote numa participação no
programa, àquela época apresentado pelo ator Lima Duarte.

“Só vou se Gonzaga Medeiros for comigo” – decretou ele. E fomos.
Levei um vidrinho de uísque pra dar uma “regulada” alcoólica no
Tote, que era um jeito de ele ficar “no ponto”, no grau como se diz,
mas com todas as recomendações de praxe, da lavra da esposa dele,
a diligente Marly Salgado Freire, minha querida Marla Branda, autora
da encomenda.

O uísque tava mesmo era num vidro de mais ou menos meio litro,
acho eu. Minha função era acompanhar, com visão crítica e
sobriedade, o ensaio do mestre Tote no camarim, dando-lhe, de vez
em quando, um golinho do “veneno” e ir adequando a emoção do
“rapaz” na proporção inversa do tempo que lhe faltasse para entrar
em cena. Não era fácil missão, mas eu também não podia ser
chamado de estreante na arte. Aliás, eu mesmo me gabava por tal
função. Fosse o contrário, como ser eu um enviado especial da Rede
Globo?

Não sei por que diabos o próprio Lima Duarte já havia tomado
conhecimento da nossa Sistemática Artístico-Operacional de
Regulagem Alcoólico-Emocional Toteana (SAORAET). Passando por
mim num dos intervalos, Lima me sussurrou com ar de gravidade:
“vai levando com jeito o rapaz pra não passar do limite”. As palavras
do Lima, de cara fechada, me deixaram intrigado. Descobri que a
coisa era muito mais séria do que eu imaginava e passei a “travar” o
Tote. Eu estava tenso, pois parecia que até a plateia esperava com
ansiedade a apresentação do Sóstenes Freire. Era como se a plateia
já conhecesse a fama do homem. É que a fama do homem havia se
espalhado.

Pra baixar minha pressão, tomei as três últimas doses do escocês e
escondi o litro de uísque, vazio, atrás de um sofá do camarim. Era um
litro? Estava vazio? Fui à boca do palco para ver a movimentação e
me envolvi com todas as emoções de ver o Antônio Carlos Nóbrega
ensaiando, o Gilberto Gil batendo papo com Fagner em outro canto e
outras presenças do agrado de qualquer fã como eu.

Voltando ao camarim para conduzir nosso artista ao topo da glória,
me vi, pelo espelho, num espanto de corpo inteiro. Gente, cadê o
Tote? Tote! Nada de Tote! Gritei pra mim mesmo: Gente, me acode,
o Tote sumiu!

Um dos artistas presentes, acho que o baiano João Bá, percebendo
meu desespero, adiantou-se: “olha, Gonzaga, se for um senhor de
cabeça branca, baixo, com o olho assim meio butecado, ele saiu pela
porta do fundo e entrou naquele boteco ali da esquina”. O mundo
tava acabando e eu corri pra não desabar encima de mim.

Peguei o Tote com a boca na botija, aliás, no copo. Sobre o balcão,
dois copos de uísque e ele se apressando em justificar: “olha aqui,
cumpade Gonza, eu vi que tava faltando um grauzinho. Pedi duas
doses porque uma era pra você. Bebe”.
Naquela hora, xingar pra quê? Bebi e voltamos correndo. Todos já
ansiavam pelo nosso regresso. Em tempo de segundos, estava tudo
pronto e Lima Duarte, ansioso, já anunciando: “aqui agora, pra vocês,
esse monstro sagrado que é o Tote...”

Antes que Lima Duarte terminasse a apresentação, Tote adentrou o
palco a passos largos e apressados e esfuziante arrematou: “...Eu sou
Tote lá de Nanuque, no Vale do Mucuri, terra de mulher bunita e
cabra bom no fuzí, mas em redor de três légua, viu Seu Lima, tem
cada um fi duma égua que nega até um pequi”.
Essa apresentação, assim como saiu, não estava no script, mas ficou
valendo, até porque a plateia entendeu imediatamente com quem
estava lidando e caiu na gargalhada. Mas foi tanta gargalhada, tanta
gritaria e confusão, que até atrapalhou o recomeço da apresentação.

No mais, verdade é que plateia nenhuma de gravação do Som Brasil
nunca tinha visto nada igual, de tão bonito que foi. Em verdade, foi a
grande noite de consagração do Tote. Só teve um porém: os
aplausos, a gritaria e a bagunça na arquibancada do teatro chamaram
a atenção de todos.
Diz a lenda que era uma arquibancada maior e nova que estava
sendo inaugurada justamente para aquela noite. Certo foi que a
arquibancada balançou perigosamente e o fato teria sido motivo de
um desentendimento, na madrugada, entre o nobre apresentador
Lima Duarte com a produção do programa, que acabou não indo ao
ar. Aliás, acreditem: a partir daquele dia, nunca mais o “nosso” Som
Brasil foi ao ar.

Já houve quem dissesse que foi o “fogo” do Tote que incendiou o
programa. E não era pra menos. Eu é que não fui. Tenho minha
consciência tranquila. O Brasil perdeu oportunidade rara de conhecer
o monstro sagrado da declamação popular e da contação de causos,
mas eu não tive culpa nenhuma, nem Tote, apesar da leve
transgressão dele ao meu método de regulagem alcoólica, receitado
pela sua esposa Marla, a Branda. Tem gente que espalha que até
hoje Tote usa um grauzinho a mais quando vai acabando uma festa. E
eu continuo me achando um bom aluno. (14.08.15).

*Gonzaga Medeiros é poeta, apresentador de eventos, compositor, agitador e gestor cultural, e, nas horas vagas, advogado. Nasceu em Pampã, no Vale do Mucuri, que mudou o nome, por sua sugestão, para Fronteira dos Vales, por estar entre o Mucuri e o Jequitinhonha. Mudou-se para Almenara, no Baixo Jequitinhonha, que o adotou como nativo dali. Mora em BH. Apresentou, com exceção de dois, todos os 36  FESTIVALEs - Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha, o maior evento de cultura popular da América Latina. Publicou livros de poesia, participou de antologias poéticas e gravou CD, cantando ou declamando.

Veja dois videos com Tote contando causos;

www.facebook.com/Tote.e.Gonzaga.Medeiros

https://www.youtube.com/Compadre.Tote."Eu.e.Bibia"