Publicado no GGN, de Luiz Nassif SEG, 10/10/2016 - 07:39
Na medida em que o debate político nunca é inteiramente racional e é impossível que o seja, sempre é recomendável que se reafirmem pressupostos como salvaguardas, mesmo sabendo que eles, no mais das vezes, são ignorados deliberadamente pelos críticos. Então, aqui, estão alguns pressupostos: o impeachment foi golpe; a derrota do PT nas urnas não anula o fato de que foi golpe; o golpe foi articulado por setores do Judiciário, da mídia, do empresariado e do meio político; a Lava Jato perdeu seu conteúdo republicano ao tornar-se unilateral e tendenciosa, punindo uns e não investigando outros; a Lava Jata promoveu ações politicamente orientadas e persecutórias, visando destruir politicamente o PT; o juiz Moro quer impedir a candidatura de Lula em 2018 etc., etc., etc.
Nada disso, no entanto, isenta o PT de suas responsabilidades e de seus erros gravíssimos. A soma dos reveses que o PT sofreu nesses dois últimos anos indicam que o partido se retira do cenário da história brasileira na condição de partido significativo e influente debaixo de muita “lambada”(pancada) merecida, no dizer de Olívio Dutra. Claro que sempre é temerário fazer previsões em política, pois estas, e levando-se em conta que a política é uma das atividades humanas mais imprevisíveis, deveriam ser reservadas aos deuses. Mas então que se fale do presente: as urnas deixaram o PT, em ternos de números de prefeituras, vereadores e votos, na franja inferior dos partidos médios. Ou seja, o PT está mais para partido pequeno do que para partido médio.
O PT chegou ao apogeu ao comandar o Brasil por 13 anos e ao controlar enormes estruturas de poder. Esta condição se deveu a uma combinação de singularidades de rara ocorrência histórica. Destaquem-se apenas algumas: o partido nasce num momento de ascensão de lutas sociais, trabalhistas e democráticas; o partido é comandado por um líder carismático e conta com um estado-maior dirigente constituído por líderes experientes forjados na luta contra a ditadura; o partido se desenvolve como o organismo moral da sociedade ao vocalizar a moralidade pública e a exigência de uma nova política; o partido se torna instrumento de estímulo a lutas por cidadania; o partido se apresenta como uma direção ético-política (Gramsci) ao propor uma sociedade orientada pelos fins da justiça, da igualdade e dos direitos. Com esse arcabouço e com este conteúdo, o PT, legitimamente, ostentava a primazia de ser a esperança de transformação do Brasil e de superação de suas iniquidades históricas.
O mecanismo do declínio
Quase tudo isto já desmoronou e o pouco que resta – a liderança carismática – tem, pela adversidade do momento e pelos seus próprios erros, escassa margem de manobra para tentar salvar alguma coisa. O que é estranho no caso do PT é que o declínio tenha sido tão rápido. A tipologia do declínio dos líderes, dos corpos políticos e dos Estados que chegam ao apogeu é estudada desde a filosofia política dos antigos, passando por Maquiavel, Montesquieu, os Federalistas etc. Todo o perigo se instala no momento da chegada ao apogeu. O apelo à corrupção é enorme. Os controles morais se afrouxam, a leniência e a permissividade vicejam. Somente os líderes e corpos políticos prudentes e virtuosos sobrevivem a essas tentações e descontroles.
O PT já havia se corrompido em 2005, no episódio do Mensalão. No momento em que se descobre a corrupção – aqui não só no sentido pecuniário de apropriação de recursos públicos para o partido e para dirigentes e detentores de mandados, mas também no sentido dos princípios, do modo de vida, das alianças e dos valores – a única saída é a refundação, com um saneamento punitivo exemplar, com decepações e expurgos, retomando os princípios virtuosos que continham a energia da ascensão. Se isto não é feito, a corrupção, no sentido amplo do termo, se torna uma gangrena levando o corpo ao declínio inexorável. Foi isto que aconteceu com o PT. O PT sofreu o golpe não pelas suas virtudes, mas pelos seus erros. Os corpos virtuosos que chegam ao poder precisam manter-se na virtude para perdurarem. Como e por que o PT se corrompeu rapidamente requer pesquisa e estudos aprofundados.
Nem mesmo o afastamento do poder e o terrível massacre nas urnas foram suficientes para que viesse do PT algum sinal ou manifestação de vontade de regeneração, o que indica que o partido é irrecuperável no curto e médio prazos e que alternativas precisam ser buscadas por aqueles que têm práticas políticas pautadas pela conduta moral e pela honestidade de propósitos. O fato é que o PT está entregue, hoje, a operadores de esquemas de poder e de mandatos, pessoas forjadas nas burocracias, sem a lapidação dos combates.
O partido perdeu também capacidade de elaboração intelectual, já que vinha tratando a intelectualidade como massa de manobra de socorro eleitoral. O particularismo de mandatos e grupos de interesses se sobrepôs a qualquer direção ético-política legitimada na consciência social. Além de odiado, o partido é visto como um agrupamento de criminosos, como uma máfia, e permite, sem reação, que assim seja tratado pelos seus inimigos. Como disse Olívio Dutra, “querer se defender dizendo que ‘tem mais ladrão lá do que aqui’ não tem fundamento”. Um partido que envereda por este caminho se desmoraliza e perde a força moral da sua própria defesa. O que lhe resta é autovitimização, a autocondescendência, a autocomplacência, o que denota a ausência da coragem da autocrítica.
O pecado da soberba e a falta de prudência
O PT chegou ao poder picado pela mosca venenosa da soberba. A “herança maldita”, o “nunca antes neste país” e as auto comparações com Jesus Cristo fizeram de Lula um dos principais vocalizadores dessa soberba. A soberba expressa um poder sem humildade. Um poder sem humildade é um poder sem virtude. A soberba comporta o sentimento de superioridade em relação às demais pessoas e se transforma em conduta arrogante, que foi tão visível em ministros, altos funcionários, secretários, parlamentares e dirigentes petistas. Foram poucos os que mantiveram a humildade e a simplicidade de um Pepe Mujica. Os “homens superiores” se sentem ungidos pelos deuses, pelo destino ou pela História. No caso das esquerdas, a pretensão é de que a unção tenha sido conferida pela História. Ambicionam fugir de qualquer outro julgamento a não ser o da História. Somente no momento das derrocadas sentem as lâminas gélidas da lei ou da própria História a lacerar suas almas vaidosas.
Os soberbos não se detêm diante de nada e propendem ao crime, pois, por se sentirem superiores, se conferem o direito de violar as leis, a natureza e os limites. Julgam-se possuidores de um saber superior e, geralmente, proferem grandes palavras, quase sempre vazias e pretenciosas. Pretendem validá-las sem a mediação da realidade humana, sempre incursa em tragédias e portadora de um sentido trágico. A sua pequenez moral fica desnuda quando a Fortuna (sorte) muda o rumo dos ventos, transforma a natureza dos tempos, aliando-se aos seus inimigos. Nestes momentos nas diferentes atividades, nos exércitos, na política e na vida pessoal, os soberbos costumam se mostrar covardes.
Os soberbos são o oposto do prudente. Aqueles, por se julgarem superiores, não cogitam as possíveis consequências de seus altos. Estes, sabedores dos limites de tudo o que é humano, carregam a humildade no coração e nas atitudes, sabem que a atividade humana é perigosa, imperfeita e sujeita aos imprevistos e acasos e, por isto, perscrutam as consequências de suas ações e adotam as medidas necessárias para evitar o mal maior, produzir o bem possível, já que o bem perfeito não existe. Os prudentes são humildes nas expectativas e responsáveis nas ações.
A tragédia maior do Brasil é que a soberba e a corrupção do PT entregaram o país, não a forças mais virtuosas, mas a forças ainda mais corruptas, hipócritas e cínicas que querem destruir o pouco de bem estar social conquistado. O que resultou de tudo isto é um profundo desencanto com a política, que nunca foi muito encantada nessas terras, uma angústia terrível daqueles que dedicaram anos em lutas e batalhas por transformações e uma terrível frustração de expectativa dos mais jovens. Angústia e desencanto, no entanto, podem gerar forças e potências muito mais salutares do que esperanças ilusórias.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política.
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