Se o modelo de partilha na exploração do pré-sal tiver êxito abre-se um precedente de enorme impacto simbólico na vida política nacional.
por Saul Leblon
Na crítica conservadora ao modelo adotado para a exploração do pré-sal, avulta o esférico plano secundário a que ficou relegado o debate que deveria ser o principal: a redistribuição social da renda petroleira.
Em linha com o ambiente regressivo do capitalismo em nosso tempo, o conservadorismo nativo abraça a agenda dos mercados e queima as caravelas de qualquer retorno à finalidade social do processo econômico.
Discute-se a ‘desconfiança’ dos mercados, a ‘incerteza’ das petroleiras, a ‘insatisfação’ da república dos acionistas, o ‘intervencionismo’ do governo Dilma. Ponto.
Do círculo vicioso descendente não escapa nem quem se avoca uma fina sintonia com as ruas.
Entrevistada do programa Roda Viva na 2ª feira, ainda no calor do leilão, coube à ex-senadora Marina Silva condensar a desconcertante fragmentação entre meios e fins.
Marina declarou-se avessa à participação da China no leilão do pré-sal. “Vi com preocupação a China fazer parte do leilão”. Por que, senadora? “Porque nesse caso não é uma empresa, é o Estado”.
Fosse Esso ou a Chevron, de densos princípios democráticos e ambientais, estaria de bom tamanho para a criadora do não-partido Rede?
Talvez não tenha sido essa a intenção da frase, mas oferecer-se ao desfrute da fuzilaria midiática contra a ‘natureza intervencionista’ do modelo brasileiro de partilha.
De novo aqui, dane-se a questão principal subjacente ao debate ‘técnico’ .
Tergiversa-se para camuflar aquilo que verdadeiramente importa à sorte da economia e a o destino da sociedade.
A exemplo de Marina, também Campos, Aécio, Serra e os veículos nos quais se ancoram, giram em falso.
Ora se diz que a partilha é ineficiente e deve ser substituída por regras mais flexíveis aos mercados, “que levem a uma maior concorrência nos leilões”, reclama o sempre antenado Eduardo Campos ; ora se diz que é a mesma coisa do modelo tucano, uma privatização envergonhada.
A verdade é que o modelo adotado pelo Brasil, sem ser o ideal, busca acomodar três imperativos que formam quase um trilema: urgência, soberania e escassez de capital.
Uma sociedade em desenvolvimento, mergulhada em assimetrias sociais e econômicas do calibre das enfrentadas pelo Brasil precisa, no prazo mais curto possível, ativar a gigantesca poupança que a natureza lhe reservou no fundo do oceano, cujo valor se conta em múltiplos de bilhões de barris e trilhões de reais.
Por razões implícitas, a massa de recursos capaz de mover a chave do cofre é indisponível.
O modelo de partilha emerge assim como aquele que afronta o apetite exclusivista da matilha, ainda que sem excluí-la de sentar-se à mesa.
O capital estrangeiro é convidado, desde que se atenha ao prato e a sua porção.
O comando do negócio tampouco lhe cabe, nem terá o direito de ficar com a parte do leão.
O governo assegura que com esse arranjo cerca de 80% da renda de Libra ficará com o Estado brasileiro.
Contabilizada da seguinte forma: R$ 15 bilhões de bônus de assinatura; R$ 270 bilhões de royalties; R$ 736 bilhões de excedente em óleo (a partilha, propriamente dita); 34% de imposto sobre o lucro das empresas, ademais de 40% da fatia das empresas, corresponde à parcela da Petrobrás.
Em cadeia nacional na noite de 2ª feira, a Presidenta Dilma Rousseff detalhou o cardápio que o discurso conservador se recusa a por na mesa, talvez porque o prato que tem a oferecer seja raso e ralo.
Disse a Presidenta:
“Por força da lei que aprovamos no Congresso Nacional, todo o dinheiro dos royalties e metade do excedente em óleo que integra o Fundo Social, no valor de R$ 736 bilhões, serão investidos, exclusivamente, 75% em educação e 25% em saúde (…) o restante dos rendimentos do Fundo Social, no valor de R$ 368 bilhões, será aplicado, obrigatoriamente, no combate à pobreza e em projetos de desenvolvimento da cultura, do esporte, da ciência e tecnologia, do meio ambiente, e da mitigação e adaptação às mudanças climáticas…”
Se tudo correr exatamente assim, o ciclo do pré-sal deixará, ademais, uma lição política de inestimável valor ao povo brasileiro.
Para que fosse feita uma efetiva distribuição social da renda petroleira, as grandes decisões sobre a exploração, a produção e a pesquisa do pré-sal foram centralizadas nas mãos do planejamento público e democrático.
Do contrário haveria concentração da renda petrolífera e não distribuição.
O conservadorismo sabe o quanto lhe custará esse discernimento.
Não sem razão, uma dos alvos da fuzilaria mercadista foi a participação chinesa no certame (que junto com a Petrobrás passará a formar um núcleo estatal com 60% de poder no consórcio).
Outro foco da insatisfação conservadora concentra-se na Petróleo Pré-Sal SA (PPSA).
À empresa gestora do pré-sal –uma espécie de representante dos interesses da sociedade no ciclo do pré-sal— caberá assegurar o cumprimento das normas que vão garantir a destinação social emancipadora dessa riqueza.
Cabe-lhe assegurar os encadeamentos industrializantes do processo e a defesa do interesse soberano da nação no ritmo da exploração.
A PPSA é a negação da ideologia dos mercados autorregulados, que subsiste na base da crítica ao intervencionismo do modelo adotado pelo governo.
Tudo será feito para que fracasse.
Se o modelo de partilha tiver êxito, supervisionado pela PPSA, que tem 50% dos votos e poder de veto no comitê gestor do consórcio, abre-se um precedente de enorme impacto simbólico na vida política nacional.
Mantida e explorada sob regime de planejamento estatal, sob o cerco do conservadorismo, uma riqueza finita foi capaz de destinar recursos bilionários às políticas públicas de saúde e educação, a ponto de se constituir na redenção da cidadania brasileira no século XXI.
Impedir que esse futuro se consolide implica, entre outras coisas, em desqualificar , desacreditar e apagar as fronteiras políticas e institucionais que separam as opções em disputa nesse pontapé do pré-sal.
Será uma luta sem trégua.
Não são apenas modelos de engenharia de petróleo.
O nome do jogo talvez seja o Brasil que queremos para os nossos filhos. Para os filhos dos nossos filhos. E os netos que um dia eles terão.
Saul Lebon é colunista. Este artigo foi publicado no www.cartamaior.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário