O poema "A implosão da mentira" de Affonso Romano de Sant'Anna foi publicado em diversos jornais, em 1980, na efervescência da sociedade brasileira que derrotava a ditadura militar (1964 - 1985), mas assistia a mídia comercial, lideranças políticas e empresariais servis contribuírem com a narrativa de defesa dos desvios e atrocidades dos militares.
Apesar do tempo decorrido, face aos acontecimentos políticos que vimos assistindo nesses últimos tempos, o poema permanece atualíssimo.
Internautas usaram alguns trechos e fizeram várias adaptações do seu conteúdo para criticar o momento em que vivemos.
O poema foi publicado também em várias antologias como "A Poesia Possível", "A implosão da mentira e outros poemas". Junto com o poema "Que país é este?" é um dos mais apreciados pelos leitores do poeta Affonso Romano de Sant'Anna.
Em tempos de ira e pandemia, "A implosão da mentira", a poesia.
Poema longo, incisivo, visceral, arrebatador e desmistificador.
Poema longo, incisivo, visceral, arrebatador e desmistificador.
A implosão da mentira
Affonso Romano de Sant'Anna*
Fragmento 1
Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem.
Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.
Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases falam.
E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.
Fragmento 2
Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.
Mentem. Mentem caricatural-
mente.
Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.
Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente.
Mentem
ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre.
Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre.
E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.
E assim cada qual
mente industrial?mente,
mente partidária?mente,
mente incivil?mente,
mente tropical?mente,
mente incontinente?mente,
mente hereditária?mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/mente
constroem um país
de mentira
—diária/mente.
Fragmento 3
Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar
em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez, não é Galileu
quem mente.
mas o tribunal que o julga
herege/mente.
Mentem como se Colombo partindo
do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente.
Mentem desde Cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso, iludindo a corrente em curso,
transformando a história do país
num acidente de percurso.
Fragmento 4
Tanta mentira assim industriada
me faz partir para o deserto
penitente/mente, ou me exilar
com Mozart musical/mente em harpas
e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.
Penso nos animais que nunca mentem.
mesmo se têm um caçador à sua frente.
Penso nos pássaros
cuja verdade do canto nos toca
matinalmente.
Penso nas flores
cuja verdade das cores escorre no mel
silvestremente.
Penso no sol que morre diariamente
jorrando luz, embora
tenha a noite pela frente.
Fragmento 5
Página branca onde escrevo. Único espaço
de verdade que me resta. Onde transcrevo
o arroubo, a esperança, e onde tarde
ou cedo deposito meu espanto e medo.
Para tanta mentira só mesmo um poema
explosivo-conotativo
onde o advérbio e o adjetivo não mentem
ao substantivo
e a rima rebenta a frase
numa explosão da verdade.
E a mentira repulsiva
se não explode pra fora
pra dentro explode
implosiva.
*Affonso Romano de Sant'Anna é mineiro, de Belo Horizonte. Mora a 50 anos no Rio. É poeta, cronista, crítico e professor de literatura. É também jornalista. Formado em letras pela UFMG, onde também fez o doutorado sobre obra de Carlos Drummond de Andrade. Publicou diversos livros como "O Desemprego do Poeta", "Que país é este?", "Catedral de Colônia e outros poemas", "O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia", "A mulher madura", "A implosão da mentira e outros poemas", entre outros. Professor de literatura da PUC-Rio e UFRJ. Como professor convidado dá aulas de literatura e cultura brasileira em universidades da França, Alemanha e Estados Unidos.
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