O cientista político Emir Sader escreve sobre as quarentenas na sociedade: "Em circunstâncias extremas como esta da pandemia, as desigualdades sociais vem à tona com mais força ainda. Há quarentenas e quarentenas. Há quarentena em locais cômodos, com renda garantida. E há quarentenas de gente amontoada, sem nem condições de cumprir com os requerimentos de higiene"
*Emir Sader
A irrupção da pandemia é possibilidade da eclosão de uma porção de clichês, que parece que dizem muito, mas na verdade escondem o essencial. “Nada será como antes”, “Estamos todos no mesmo barco”, “Ninguém se salva sozinho”, “E’ mais fácil ver o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, etc., etc.
Claro que muitas coisas mudarão, tanto no estilo de vida das pessoas, como na importância das políticas de saúde pública, assim como no olhar para os mais desvalidos, especialmente as populações de rua. Mas já veremos se os elementos de continuidade prevalecerão ou de mudança.
A crise trouxe para o centro da atenção de todos o Estado. Ninguém consegue pensar qualquer tipo de ação contra a pandemia sem um protagonismo central do Estado.
Os serviços públicos de saúde antes de tudo e o SUS como protagonista fundamental. O mais democrático sistema de saúde pública do mundo ganha as atenções de todos, que pedem que ele aja de forma determinante para defender-nos dos efeitos do vírus. Doações são feitas para o SUS, reconhecimentos nunca antes feitos são expressados publicamente.
A verdade é que a saúde foi sempre a maior preocupação dos brasileiros. Qualquer pesquisa, que costuma ser feitas nos períodos pré-eleitorais, indica que a maior preocupação dos brasileiros não é com segurança pública ou corrupção, como a mídia tenta induzir, mas com a saúde. Mas ela nunca ocupou o centro das campanhas eleitorais, nem a prioridade nos governos – salvo os do PT. Mas só quando as pessoas passaram a ter medo de pegar um vírus desconhecido e até morrer, que fizeram da saúde sua preocupação maior, quase absoluta.
Mas se a pandemia atinge a todos, nem todos a vivem da mesma maneira. A ideia de que “estamos no mesmo barco”, esconde o fundamental. No mar revolto, alguns vivem a circunstância dentro de um transatlântico, nem se dão conta dos riscos reais da pandemia. Outros a vivem desde precários botes, que a qualquer momento podem virar e deixar todos completamente indefesos.
Em circunstâncias extremas como esta da pandemia, as desigualdades sociais vem à tona com mais força ainda. Há quarentenas e quarentenas. Há quarentena em locais cômodos, com renda garantida. E há quarentenas de gente amontoada, sem nem condições de cumprir com os requerimentos de higiene.
Existe a piada do lorde inglês perguntando pro seu mordomo:
- Como está o tempo hoje?
- Teremos chuva, Sir.
- Não. Eu terei a minha chuva e você terá a tua.
- Como está o tempo hoje?
- Teremos chuva, Sir.
- Não. Eu terei a minha chuva e você terá a tua.
Acontece o mesmo agora. Cada um tem sua quarentena. Não estamos no mesmo barco. Nem sequer diante de uma pandemia, que em princípio atinge a todos, as desigualdades desaparecem. Ao contrário, elas evidenciam destinos distintos, conforme o lugar em que a pessoa esteja na sociedade.
A sociedade que viveremos depois do auge da pandemia, tampouco vai alterar as desigualdades. É certo que emergiu um grande sentimento comunitário de apoio aos mais desvalidos. É certo que os meios de comunicação descobriram a população e rua, com fisionomias, nomes e sobrenomes. Os idosos também podem contar com a atenção que nunca lhes é dispensada. Mas já veremos quanto disso sobreviverá à circunstância atual.
Os países sairão em frangalhos econômica e socialmente. Se poderá contar com o prestígio do setor público, o único que pode comandar a reconstrução das sociedades, assim como esse sentimento de compaixão.
Mas tudo depende de que governo assumirá a grande e difícil tarefa de reconstrução dos países. E, a partir daí, quem custeará essa reconstrução. A direita voltará com sua mantra do déficit público e do ajuste fiscal, pelo qual tratará de novo de avançar na privatização do patrimônio público, da redução dos salários dos servidores públicos e dos trabalhadores do setor privado.
Ou se tributará fortemente o capital financeiro e seus processos especulativos, assim como as grandes fortunas, as heranças, bem como atacar duramente as sonegações tributárias e coibir a fuga de capitais.
A disputa pelo excedente voltará com intensidade. Uns sairão descansados e com seu patrimônio intacto. Outros, sem emprego, com salários comprimidos, entre outras duras consequências da quarentena. Mostrando que atravessamos a tempestade em embarcações diferentes e chegaremos a uma situação pós-pandemia em situações distintas.
O futuro será distinto do que vivemos no passado e do que estamos vivendo. O futuro não será a projeção linear do passado ou da situação atual. Será um momento distinto, aberto para que possamos construir uma sociedade distinta, mais solidária, menos desigual, com mais segurança na saúde, na educação, no emprego, no salário, na própria vida.
*Emir Sader é filósofo, cientista político e professor da UERJ. É graduado em filosofia, mestre em filosofia política e doutor em ciência política pela USP. Foi professor da USP, UNICAMP e Universidade do Chile. É professor aposentado da USP e dirige o Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da UERJ, onde é professor de sociologia. Publicou diversos livros como O socialismo humanista de Che; Democracia e ditadura no Chile; Gramsci: poder, política e partido; Contraversões, com Frei Betto; A Nova Toupeira: Os Caminhos da Esquerda Latino-Americana, entre outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário