segunda-feira, 18 de maio de 2020

Necroeconomia em tempos de pandemia e Bolsonarismo

 

Publicado na Carta Maior, em 21.04.2020
Christian Velloso Kuhn*
Lamentavelmente, não é de hoje que governos autoritários e impopulares imputam aos mais pobres maiores doses de sacrifício em períodos de crise ou ajuste. Na ditadura civil-militar brasileira de 1964-1985, o salário mínimo em termos reais (descontada a inflação) foi deprimido em 61% (redução de R$ 1.360,74 em março de 1964 para míseros R$ 537,42 em março de 1985, a valores de abril de 2020). Por conta da aplicação da Teoria do Bolo (crescer para depois distribuir), apregoada por Delfim Netto, ministro de vários governos militares, a concentração de renda subiu consideravelmente no regime civil-militar. Enquanto em 1964, a parcela do 1% mais rico da população retinha algo entre 15-20% de toda a renda do país, ao passo que, com o fim da ditadura, este montante elevou para 30%.

Nesses primeiros 15 meses do Governo Bolsonaro, se os números não chegam a tais patamares, todavia, tão pouco são animadores. De janeiro de 2019, quando assumiu, até março desse ano, o salário mínimo cresceu 4,3% acima da inflação, bem aquém dos primeiros 15 meses do Governo Dilma, quando esta variável aumentou 13,7%, de 3 a 4 vezes mais. Já a taxa de desemprego do trimestre de dezembro de 2019 a fevereiro de 2020 permanece estagnada em 11,6%, mesmo nível do último trimestre de 2018, muito em virtude do crescimento pífio de 1,1% do PIB no ano passado. A lenta retomada da economia é explicada pela aposta que o governo fez nas reformas estruturais como estímulo para a produção, tornando a Reforma da Previdência a bala de prata para recuperar a atividade econômica. A despeito da queda da taxa de juros SELIC ter incentivado o consumo e investimento, sem incremento na renda, a demanda não correspondeu a tal impulso.

Percebe-se, portanto, que o governo Bolsonaro vinha até antes da iminência da pandemia do coronavírus, exercendo uma política econômica muito contida e tímida, calcada basicamente nas reformas estruturais e programas de privatização, em que boa parte pouco avançou até o momento. A crise pandêmica interrompeu essa estratégia e exigiu do governo a adoção de medidas mais contundentes de estímulo à demanda e manutenção do emprego e da renda. Inerte, a equipe econômica demorou para agir, propondo um programa de renda básica emergencial, inicialmente de irrisórios R$ 200,00 mensais por três meses, que foram elevados para R$ 600,00, valores ainda incipientes mas mais próximos do nível do salário mínimo, atualmente em R$ 1.045,00, pouco abaixo de 60%. Adicionalmente, prometeu auxílio aos governos estaduais e municipais na ordem de R$ 88 bilhões, bem como crédito a empresas e outras medidas que juntas representam algo em torno de R$ 750 bilhões, cerca de 5% do PIB.

Um forte razão para a timidez da política econômica do governo para conter o impacto recessivo do isolamento social, imposto por estados e municípios, está enraizada na composição de sua equipe econômica, de ideologia liberal, preocupada muito mais com métricas fiscais, como resultado primário e dívida pública, do que com o bem-estar da população, relegando a segundo plano indicadores como salário e emprego. O fiscalismo tem sido o principal obstáculo para a reação da economia desde antes da pandemia.

O presidente Bolsonaro, por suas estapafúrdias atitudes e infelizes comentários, vem sustentando um discurso que, se no começo, desdenhava do impacto que o COVID-19 teria sobre a população, vulgarmente a denominando de “gripezinha” e “resfriadinho”, com o avanço do número de infectados (atualmente em mais de 30 mil), e mortos (quase 2 mil), concentrou-se no enfoque da necessidade de amenizar os efeitos recessivos provocados pela quarentena, arguindo falaciosamente que o desemprego também pode causar mortes (não necessariamente). Entretanto, ao invés de assumir a responsabilidade do Governo Federal em pôr em prática seu plano de ação de medidas de política monetária e fiscal, engrossou o coro de grandes empresários - a maioria financiou a sua campanha eleitoral - da urgência de rompimento do isolamento horizontal e da abertura da indústria e do comércio. Estes necroempresários chegaram a audácia de discursar nas redes sociais, chantageando com demissões em massa e fechamento de estabelecimentos, inclusive tratando como normal ou natural a morte de milhares de brasileiros, distorcendo fatos e dados, como o mito de que as vítimas se concentram na faixa etária acima de 60 anos.

Não bastasse o canalhismo com requintes de crueldade do presidente e de seus apoiadores necroempresários, economistas de alto escalão do governo deram legitimidade a esse discurso hipócrita e vil. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, palestrando para investidores do mercado financeiro, deu a entender que havia uma troca entre salvar vidas ou combater a recessão (o que teria causado consternação e constrangimento até mesmo para o seu avô, o liberal Roberto Campos, caso ainda estivesse vivo). Ainda pior, o sempre transloucado e esquizofrênico Abraham Weintraub, que mesmo sem dar conta sequer de sua pasta, a Educação, intrometeu-se defendendo o retorno das aulas, argumentando que não morreriam mais do que 40 mil pessoas, um número abaixo das mortes por acidentes de trânsito.

Esses paladinos da necroeconomia, que alimentam o falso dilema entre mais vidas e mais emprego e renda, saúde versus economia, representam uma desonra à categoria dos economistas e à classe empresarial. São legitimados pelo negacionismo promovido pelo bolsonarismo, rejeitando o uso da ciência para dar sustentação a políticas públicas, e preferindo propagar fake news e interpretações distorcidas de informações e dados a respeito do coronavírus e seu efeito pandêmico. A Economia não pode, nem deve, ser usada demagogicamente, muito menos pelo governo, para se contrapor a área da Saúde. Muito pelo contrário, a Economia tem que ser posta, primordialmente no atual contexto, a serviço da Saúde Pública. As medidas econômicas devem não somente se concentrar em dirimir os efeitos recessivos do isolamento, mas inclusive em estimular a produção de bens, equipamentos e serviços essenciais para a área da saúde, como máscaras, álcool em gel e respiradores, tendo o governo como aliado na disponibilidade de recursos orçamentários, priorizando a Saúde. Isso chega ao ponto de ser consenso mesmo entre economistas da direita (liberais) à esquerda (progressistas e desenvolvimentistas).

Infelizmente, o governo federal, muito porque o presidente possui severas limitações intelectuais, mentais e cognitivas, age na contramão dos demais líderes mundiais que conseguiram conter e amenizar o impacto do coronavírus em suas nações, sem dar sustentação a invencionices como o isolamento vertical ou a dicotomia economia versus saúde propalada pelos necroeconomistas. O desemprego não será a maior ameaça à vida dos brasileiros, até porque se o governo agir, pode mitigá-lo e controlar seus desdobramentos como fome e miséria. A Renda Básica Emergencial é o principal instrumento para isso. Até porque, se de fato o governo estivesse comprometido em combater o desemprego, teria atuado mais fortemente desde o início, ao invés de mantê-la alta e no mesmo patamar. Logo, a preocupação de Bolsonaro com o desemprego não passa de mera retórica hipócrita.

Por isso que a maior ameaça que assola o país hoje é o bolsonarismo, cujos representantes vilanescos pressionam pelo fim do isolamento social e subestimam o risco de provocar o trágico falecimento desnecessário e evitável de centenas de milhares de pessoas, sobretudo os mais pobres, pela pandemia do coronavírus. É sobre os ombros dos mais necessitados que recairá o maior peso das medidas para conter essa crise, contudo, se na ditadura foi reduzindo o poder de compra do salário mínimo, no governo Bolsonaro, será arriscando e sacrificando as suas próprias vidas. Nesse cenário funesto, defender a renúncia ou impeachment do presidente, que é o principal expoente que dá sustentação e vazão aos interesses escusos desse movimento, é também defender a saúde pública e a vida da população, alternativas que merecem ser consideradas pelos representantes dos poderes legislativo e judiciário, bem como por demais membros da sociedade.

*Christian Velloso Kuhn é professor e Economista, Doutor em Economia do Desenvolvimento na UFRGS, Instituto PROFECOM.

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