Tote, o contador de causos,
vendedor das alegrias!
Por Gonzaga Medeiros*
Tote (Sóstenes Araújo Freire) faria 85 anos agora em agosto. Vinha tendo uns probleminhas naturais da idade, como perda de memória e dificuldade na fala. Por isso foi internado no hospital em Téofilo Otoni, onde ficou por uns 30 dias. Acabou saindo vítima da Covid-19. Faleceu, na manhã de sexta-feira, 22 de maio, sendo sepultado no mesmo dia, em Nanuque, no Vale do Mucuri, nordeste de Minas, onde residia.
Deixou a esposa Marli e os filhos Léa, Duda e Ludmila, além de netos e bisnetos.
O Brasil perdeu um dos seus melhores contadores de “causos” e declamadores populares.
Dicção perfeita, memória prodigiosa, voz cativante.
Tote, Raimundo Luiz de Padre Paraíso e o poeta Gonzaga Medeiros.
Um exímio narrador, em prosa e verso, de histórias de humor, feitos de glória, fatos marcantes, tragédias, vitórias e derrotas de personagens que na sua voz se tornavam reais em “causos” de sua própria lavra e de poetas e escritores, principalmente nordestinos.
Foi um mestre na arte. De sua fonte bebemos todos nós, amigos e admiradores seus. Que eu mesmo o diga e mais ainda o digam Saulo Laranjeira, Rolando Boldrin, Lima Duarte, Elomar, Xangai, Pereira da Viola, centenas de amigos mais próximos e todas as plateias que o viram de perto no teatro, na TV e no rádio, nas praças, botecos e esquinas de Nanuque e inúmeras outras cidades de Minas e do Brasil.
Tote nasceu em Palmeira dos índios, Alagoas, tendo chegado a Nanuque-MG, na década de 50. Em Nanuque, além de empresário de sucesso no comércio de tratores agrícolas da AGRALE, foi vereador pelo PTB, na legislatura 59/62.
Seus posicionamentos políticos em defesa de interesses do povo, na tribuna da Câmara Municipal, e em todos os lugares, lhe renderam mais tarde, isso em 01.01.70, uma prisão pelo regime militar, acusado de “exercer atividades subversivas“. Foi encaminhado para uma cela da 4ª Região Militar do Exército em Juiz de Fora-MG, sendo aberto Inquérito Policial Militar – IPM. Ficou preso por 45 dias,
incomunicável por 30 deles, sem sofrer torturas físicas, embora a alma do homem de bem tenha certamente se debatido em meio à tortura moral.
Compadre Tote e o cantor Tau Brasil.
Acabou inocentado por falta de provas de que exercesse as tais “atividades subversivas”. Nada devia. O que fazia mesmo era tramar, à luz do Sol e ao clarão da Lua, alegrias em prosa e verso, para os aplausos da plateia, que sempre pedia bis.
Voltou para casa e para os seus. Tempos depois tive a elevada honra de ser seu advogado perante a Comissão Brasileira de Anistiados Políticos, em Brasília-DF, em desfecho favorável, graças à verdade da história, a mesma que haverá de proteger quaisquer outros brasileiros contra quem a tirania dos brutos de consciência ainda possa querer macular.
Homem de bem, o grande mestre deixou sua marca inconfundível de semeador de cultura popular com raízes no mais fundo chão da alma brasileira. Foi vendedor de alegrias. De boca em boca, seus seguidores vão perpetuar seu feito e sua memória, para o bem da cultura nacional.
Tote com o poeta Gonzaga Medeiros.
TOTE NO SOM BRASIL
Tote, vulgo Sóstenes Araújo Freire, é um ilustre cidadão residente em
Nanuque-MG. Anteontem (16.08.15) ele completou 80 anos. É sem
dúvida um dos melhores declamadores populares e contadores de
causos do Brasil. Em 1990 (?) fui encarregado pela produção do “Som
Brasil” da TV Globo, para acompanhar o Tote numa participação no
programa, àquela época apresentado pelo ator Lima Duarte.
“Só vou se Gonzaga Medeiros for comigo” – decretou ele. E fomos.
Levei um vidrinho de uísque pra dar uma “regulada” alcoólica no
Tote, que era um jeito de ele ficar “no ponto”, no grau como se diz,
mas com todas as recomendações de praxe, da lavra da esposa dele,
a diligente Marly Salgado Freire, minha querida Marla Branda, autora
da encomenda.
O uísque tava mesmo era num vidro de mais ou menos meio litro,
acho eu. Minha função era acompanhar, com visão crítica e
sobriedade, o ensaio do mestre Tote no camarim, dando-lhe, de vez
em quando, um golinho do “veneno” e ir adequando a emoção do
“rapaz” na proporção inversa do tempo que lhe faltasse para entrar
em cena. Não era fácil missão, mas eu também não podia ser
chamado de estreante na arte. Aliás, eu mesmo me gabava por tal
função. Fosse o contrário, como ser eu um enviado especial da Rede
Globo?
Não sei por que diabos o próprio Lima Duarte já havia tomado
conhecimento da nossa Sistemática Artístico-Operacional de
Regulagem Alcoólico-Emocional Toteana (SAORAET). Passando por
mim num dos intervalos, Lima me sussurrou com ar de gravidade:
“vai levando com jeito o rapaz pra não passar do limite”. As palavras
do Lima, de cara fechada, me deixaram intrigado. Descobri que a
coisa era muito mais séria do que eu imaginava e passei a “travar” o
Tote. Eu estava tenso, pois parecia que até a plateia esperava com
ansiedade a apresentação do Sóstenes Freire. Era como se a plateia
já conhecesse a fama do homem. É que a fama do homem havia se
espalhado.
Pra baixar minha pressão, tomei as três últimas doses do escocês e
escondi o litro de uísque, vazio, atrás de um sofá do camarim. Era um
litro? Estava vazio? Fui à boca do palco para ver a movimentação e
me envolvi com todas as emoções de ver o Antônio Carlos Nóbrega
ensaiando, o Gilberto Gil batendo papo com Fagner em outro canto e
outras presenças do agrado de qualquer fã como eu.
Voltando ao camarim para conduzir nosso artista ao topo da glória,
me vi, pelo espelho, num espanto de corpo inteiro. Gente, cadê o
Tote? Tote! Nada de Tote! Gritei pra mim mesmo: Gente, me acode,
o Tote sumiu!
Um dos artistas presentes, acho que o baiano João Bá, percebendo
meu desespero, adiantou-se: “olha, Gonzaga, se for um senhor de
cabeça branca, baixo, com o olho assim meio butecado, ele saiu pela
porta do fundo e entrou naquele boteco ali da esquina”. O mundo
tava acabando e eu corri pra não desabar encima de mim.
Peguei o Tote com a boca na botija, aliás, no copo. Sobre o balcão,
dois copos de uísque e ele se apressando em justificar: “olha aqui,
cumpade Gonza, eu vi que tava faltando um grauzinho. Pedi duas
doses porque uma era pra você. Bebe”.
Naquela hora, xingar pra quê? Bebi e voltamos correndo. Todos já
ansiavam pelo nosso regresso. Em tempo de segundos, estava tudo
pronto e Lima Duarte, ansioso, já anunciando: “aqui agora, pra vocês,
esse monstro sagrado que é o Tote...”
Antes que Lima Duarte terminasse a apresentação, Tote adentrou o
palco a passos largos e apressados e esfuziante arrematou: “...Eu sou
Tote lá de Nanuque, no Vale do Mucuri, terra de mulher bunita e
cabra bom no fuzí, mas em redor de três légua, viu Seu Lima, tem
cada um fi duma égua que nega até um pequi”.
Essa apresentação, assim como saiu, não estava no script, mas ficou
valendo, até porque a plateia entendeu imediatamente com quem
estava lidando e caiu na gargalhada. Mas foi tanta gargalhada, tanta
gritaria e confusão, que até atrapalhou o recomeço da apresentação.
No mais, verdade é que plateia nenhuma de gravação do Som Brasil
nunca tinha visto nada igual, de tão bonito que foi. Em verdade, foi a
grande noite de consagração do Tote. Só teve um porém: os
aplausos, a gritaria e a bagunça na arquibancada do teatro chamaram
a atenção de todos.
Diz a lenda que era uma arquibancada maior e nova que estava
sendo inaugurada justamente para aquela noite. Certo foi que a
arquibancada balançou perigosamente e o fato teria sido motivo de
um desentendimento, na madrugada, entre o nobre apresentador
Lima Duarte com a produção do programa, que acabou não indo ao
ar. Aliás, acreditem: a partir daquele dia, nunca mais o “nosso” Som
Brasil foi ao ar.
Já houve quem dissesse que foi o “fogo” do Tote que incendiou o
programa. E não era pra menos. Eu é que não fui. Tenho minha
consciência tranquila. O Brasil perdeu oportunidade rara de conhecer
o monstro sagrado da declamação popular e da contação de causos,
mas eu não tive culpa nenhuma, nem Tote, apesar da leve
transgressão dele ao meu método de regulagem alcoólica, receitado
pela sua esposa Marla, a Branda. Tem gente que espalha que até
hoje Tote usa um grauzinho a mais quando vai acabando uma festa. E
eu continuo me achando um bom aluno. (14.08.15).
*Gonzaga Medeiros é poeta, apresentador de eventos, compositor, agitador e gestor cultural, e, nas horas vagas, advogado. Nasceu em Pampã, no Vale do Mucuri, que mudou o nome, por sua sugestão, para Fronteira dos Vales, por estar entre o Mucuri e o Jequitinhonha. Mudou-se para Almenara, no Baixo Jequitinhonha, que o adotou como nativo dali. Mora em BH. Apresentou, com exceção de dois, todos os 36 FESTIVALEs - Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha, o maior evento de cultura popular da América Latina. Publicou livros de poesia, participou de antologias poéticas e gravou CD, cantando ou declamando.
Veja dois videos com Tote contando causos;
www.facebook.com/Tote.e.Gonzaga.Medeiros
https://www.youtube.com/Compadre.Tote."Eu.e.Bibia"
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