sexta-feira, 22 de maio de 2020

COVID-19: Negacionismo da ciência, com as mãos sujas de sangue.

O doutor em microbiologia, Atila Iamarino, descreve ações de negação da ciência, seja por interesses econômicos, políticos ou sociais, em outros momentos da história. E desnuda as ações dos negacionistas das evidências científicas na crise sanitária atual, mesmo a custo do sacrifício de vidas humanas. E permanece firme, sendo uma das vozes sensatas mais ouvidas do país, com a coragem em prenunciar, em março, uma tragédia com centenas de milhares de mortes se ações preventivas não fossem tomadas. Atacado pelos terraplanistas e necroeconomistas, publica o presente artigo com argumentos contundentes em defesa da vida.  

Os céticos da Covid-19

Dos males do cigarro à inflamação da garganta, ciência já foi questionada antes.

"É o tradicional negacionismo da ciência, desta vez feito com as mãos sujas de sangue."

Atila Iamarino*

A pandemia é difícil de engolir. Para alguns, o isolamento social é mais intragável. É difícil convencer alguém de algo quando seu salário depende de não entender aquilo, já dizia Upton Sinclair. Imagine então quando a saúde é colocada à frente da economia.
A Covid-19 chegou de supetão, mas com a quarentena reduzindo o avanço da pandemia, negadores da realidade ganharam tempo de se organizar. Surgem os primeiros céticos da Covid-19, da quarentena, do lockdown ou mesmo das mortes.
Poucos questionariam usar o antibiótico azitromicina para faringite. Já para o tratamento da Covid, não faltam opiniões, principalmente entre os que apresentam tratamentos não como um objetivo que é procurado, mas como uma alternativa certa à necessidade de quarentena. Onde a ciência ainda não é certa ou é certa mas contrária, substituem-na por opiniões que transformam fatos em pontos de vista abertos a debate. Consensos viram ideias identitárias.
Países de todo espectro político adotaram isolamento sério, da direita israelense ao partido comunista vietnamita. Mas nada disso importa para quem precisa invalidar essas medidas e mandar as pessoas para rua e pinta o isolamento da cor política que mais desagradar a audiência.
Dizem que um sapo na água esquentando devagar não percebe quando ela ferve e acaba cozido. A fábula corporativa sobre mudança gradual ignora o fato de que sapos registram bem a temperatura ambiente e vão tentar pular da panela quando ela ultrapassa o que toleram. Já humanos têm um órgão especializado em criar justificativas racionais para decisões emocionais e vão fazer o possível para convencer o próximo —e, se bobear, até o sapo— de que o planeta, digo, a panela não está aquecendo.
Quando a ciência propôs que garganta inflamada seria causada por bactérias, houve quem questionasse. E não foram cientistas, mas, sim, comerciantes e industriais que usavam políticos e imprensa para negar que as quarentenas que lhes davam tanto prejuízo nos protegeriam de doenças como a febre amarela.
No fim do mesmo século, Thomas Edison foi mais discreto para desacreditar a ciência desfavorável à corrente elétrica contínua de sua empresa. Contratou o engenheiro elétrico Harold Brown para se passar por um especialista interessado no bem-estar das pessoas que escrevia para jornais condenando a corrente alternada dos concorrentes.
Métodos parecidos viraram modelo de negócios no questionamento da relação entre cigarro e câncer por médicos e especialistas contratados pela publicidade de empresas de tabaco. Os mesmos especialistas contratados questionavam a relação entre poluição e chuva ácida ou entre o uso de combustíveis fósseis e o aquecimento global, como o livro “Merchants of Doubt” conta.
Recentemente, essa técnica foi transposta para a internet e deu origem aos 4 D’s da propaganda feita para soterrar a verdade onde a censura não é possível: 
Desqualificar os críticos, como este biólogo aqui, atacado por apresentar a realidade; 
Distorcer os fatos, como a efetividade óbvia da quarentena na Europa; 
Distrair do problema, com tratamentos que não funcionam ou  isolamento vertical —tão efetivo quanto escolher um canto da piscina para fazer xixi, como bem disseram no Twitter; e 
Desanimar a audiência com a insistência em cada ponto desse usando “especialistas”, médicos ou influenciadores do ódio que aceitam milhares de mortes (dos outros) como necessárias.
É o tradicional negacionismo da ciência, desta vez feito com as mãos sujas de sangue.
Publicado em 09.05.2020, na Folha de S. Paulo.
*Atila Iamarino
  • Biólogo bacharelado (2006), doutor em microbiologia (2012) pela Universidade de São Paulo e divulgador científico 
na internet. Fez pós-doutorado pela Universidade de São Paulo e pela Yale University. Fundador da maior rede de 
blogs de ciência em língua portuguesa, o ScienceBlogs Brasil. Atualmente faz comunicação de ciência no Nerdologia 
e no próprio canal no YouTube para mais de 2,5 milhões de pessoas.
https://twitter.com/oatila

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