quarta-feira, 13 de maio de 2020

Escravatura continua. Na pandemia, negros têm 85% mais chances de morrer

Na pandemia, ecos da falsa abolição.

Há 132 anos, os negros eram “libertados” — sem terra, direitos ou cidadania. Como esta farsa conduz da senzala à favela; do pelourinho ao “enquadro”; e dos navios negreiros às periferias, onde pretos têm 85% mais riscos de morrer da COVID-19
Precisamente em maio, às vésperas de três meses de pandemia e a 132 anos da fatídica “abolição da escravatura” no Brasil, torna-se mais evidente o desastre em curso desencadeado pelo novo coronavírus. Considerando as informações de “raça” e cor é possível ver qual parcela da sociedade mais está morrendo – ou tem mais chances de morrer – devido à pandemia. Os negros e negras somam 43,1% dos hospitalizados, mas representam mais da metade de todos óbitos, 50,1%, contra 47,7% de pessoas brancas de acordo com os dados do Boletim nº 15 da Secretaria de Vigilância do Ministério da Saúde. Do total, 65% das vítimas apresentaram algum tipo de comorbidade associada, tendo destaque as doenças cardiovasculares (3.425 dos óbitos), diabetes (2.660 óbitos), doença renal (621 óbitos), doença neurológica (550 óbitos) e pneumopatia (544 óbitos). 
E daí? Respondeu Bolsonaro ao ser indagado sobre o aumento do número de casos do novo coronavírus no Brasil. As mortes ultrapassaram 12 mil casos e o número de infectados soma mais de 170 mil. Destes, pouco mais de 67 mil foram recuperados, mas infelizmente não estão imunes a um novo contágio. Os especialistas dizem que este número está longe de representar a realidade de infectados no país, considerando a baixíssima testagem da população.
Numa pesquisa feita pelo Observatório covid-19 e Prefeitura de São Paulo até 17 de abril, somado a porcentagem de pretos (62%) e pardos (23%), a população negra na capital tem 85% mais chance de morrer pelo vírus do que qualquer outro grupo social.  Estes dados são reveladores das desigualdades raciais e de classe vigentes na sociedade, e que levam a exterminar e marginalizar pretos e pretas neste país. Sejam quais forem as crises, econômicas, políticas, ambientais ou sanitárias, pretos/as, quilombolas e indígenas são permanentemente um grupo de risco. 
A brutal desigualdade existente nas condições de vida, de moradia ou de alimentação entre pretos e brancos, recolocam o significado do 13 de maio de 1888 em foco. O decreto ardiloso que oficializou o fim da escravatura no Brasil destinou negros e negras à pobreza, ao desemprego, às doenças, ao sistema prisional, à exclusão social e toda sorte de precariedades. Para os africanos e seus descendentes, a pandemia se iniciou com os primeiros navios negreiros que aportaram na África, foi intensa com a escravidão e segue matando depois de anunciado seu fim. Mas se uma doença atinge só os negros/as ela pode ser ignorada ou minimizada – afinal eles morrem de tanta coisa, não é mesmo? Assim funciona o pensamento racista, como demonstrou o fundador da XP Investimentos, Guilherme Benchimol, que afirmou em 4/5, em tom comemorativo: “o Brasil está indo bem no controle do covid-19”, pois, “o pico nas classes médias e altas já passou”; o problema é que “o país tem muita favela”.
Há pouco mais de 100 anos, a “gripe espanhola” matou, entre janeiro de 1918 a dezembro de 1920, cerca de 35 mil pessoas em nosso país. Inclusive o presidente eleito, Rodrigues Alves, morreu vítima da pandemia, episódio que reforçaria a ideia de ser esta uma doença “democrática”. Contudo, os estudos sobre o impacto da gripe mostram que a imensa maioria dos infectados e mortos eram pessoas negras, da classe trabalhadora, contagiados nas fábricas, nos portos, nas ruas (classificados como “indigentes”), nos cortiços, favelas ou no cárcere, onde morriam de forma isolada e desassistida.
A interação entre desigualdade social, subnutrição e precárias condições sanitárias resulta em um terreno fértil para o espalhamento do coronavírus e mortal para quem aí vive. O organismo humano, sob estes condicionantes, apresenta uma imunidade de baixíssima resistência e pouca capacidade para sobreviver às debilitações provocadas pelo vírus.
As pandemias sintetizam as contradições de classe, raça e gênero, uma vez que acentuam desigualdades. As mulheres, negras principalmente, estão na linha de frente do trabalho de enfermagem e de cuidados. Exauridas pela dupla e tripla jornada de trabalho, são as que mais buscam o serviço público de saúde, embora o número de óbitos seja superior entre os homens, em decorrência do diferente estilo de vida promovido pela sociedade capitalista patriarcal, que os expõe a maior vulnerabilidade. Acrescenta-se aí o aumento em 9% no número de denúncias de violência doméstica no Brasil, segundo dados federais. Até março o acréscimo chegou a 50% no Rio de Janeiro e de 30% em São Paulo.
O momento atual acende a luz de alerta. O avanço da pandemia sobre os setores mais empobrecidos e com condições de vida mais precárias pode ser catastrófico. Estes segmentos da população vivem em bairros periféricos, nas ruas, favelas, cortiços e abrigos que vivem milhares de trabalhadores e trabalhadoras negras que precisam lutar diariamente para sobreviver com os trabalhos informais, prestação de serviços ou outras formas.
Especialistas chamam a atenção para a probabilidade do aumento do número de óbitos em domicílios, albergues e em via pública. Geralmente, vítimas do racismo institucional, muitas são aquelas pessoas que possuem os sintomas, mas diante da impossibilidade de fazer o teste da covid-19, são orientadas a deixar os hospitais. Há mesmo aquelas que nem buscam o serviço médico. Nessas circunstâncias, são muitos os óbitos sem causa confirmada para a covid-19. 
Na cidade de São Paulo, por exemplo, conforme o censo da população em situação de rua, havia 24.344 pessoas vivendo nestas condições, na capital, até 2019 (número que é bem maior segundo pesquisadores e ativistas). Desse total, 69,3% são pessoas pretas e pardas e a maior porcentagem é do sexo masculino – 85% contra 15% de mulheres e 386 pessoas transexuais, transgêneros e travestis. Cumpre ressaltar que essa população não tem acesso à água nem a kits de higiene pessoal, e menos ainda a alimentação regular, nem à possibilidade de quarentena. Esta é a realidade sintetizada pela foto acima, feita por Pedro Conforte em uma rua na Praia de Icaraí, em Niterói no Rio de Janeiro.
É importante destacar que a pandemia da covid-19 tem implicações distintas para a classe trabalhadora, negra, pobre e para as mulheres, ou seja, ela é demarcada pelo recorte de raça, classe e gênero. Essa desigualdade social atinge graus extremos de perversidade quando impõe sobre os (as) infectados (as) a culpa por esta condição. Como é o caso da população que se aglomera há vários dias nas filas dos bancos à espera do acesso ao tal auxílio emergencial para aliviar a fome e outras necessidades. 
A classe trabalhadora, que lutou muito para que o SUS existisse e pela sua defesa como sistema público universal, precisa urgentemente se levantar contra o genocídio social promovido por um governo neofascista, que aprofunda a crise no país frente à pandemia e aproveita de forma covarde deste momento difícil e de luto de muitas famílias, para impor medidas contrárias ao interesse e soberania do povo brasileiro.
Como bem têm demonstrado as ações de solidariedade construídas entre trabalhadores e trabalhadoras para minimizar os efeitos desta crise, são exercícios de unidade e de auto-organização política. É do fortalecimento destes vínculos orgânicos, entre os mais diversos setores da classe trabalhadora, que deve surgir a força necessária para superar o coronavírus, derrotar o governo Bolsonaro e a necropolítica que o Estado capitalista impõe sobre os povos do Brasil e do mundo.
Fontes
LAMARÃO & URBINATI. Gripe Espanhola, In: , acesso em 11/05/2020.
BRASIL. SECRETARIA DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE. MINISTÉRIO DA SAÚDE; <https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/May/09/2020-05-06-BEE15-Boletim-do-COE.pdf> acesso em 11/05/2020.
PREFEITURA DE SÃO PAULO. CENTRO DE PESQUISA E MEMÓRIA TÉCNICA
Fonte: Outras Palavras

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