Brasília, a descolonização do Brasil
Emir Sader
Os países colonizados foram ocupados em função da exportação das matérias primas que interessavam às potências colonizadoras. Nosso nome não nasce de uma vocação ecológica precoce. Não. Nasce da arvore que produzia pintura para exportar à aristocracia européia, para que esta pudesse tingir seu vestuário. Foi assim, sucessivamente, com o açúcar, o café, a borracha. Da mesma forma, a periodização da nossa história em ciclos obedece à sucessão de produtos que interessavam aos colonizadores explorar do Brasil. Não éramos um país, com identidade e interesses próprios, não éramos uma sociedade, composta por pessoas com suas formas próprias de vida. Éramos um quintal das metrópoles européias, ansiosas para explorar nossas riquezas, utilizando trabalho escravo, no mais monstruoso e no mais sangrento saqueio da história da humanidade, que teve nas populações nativas e na população negra, suas maiores vítimas.
Como conseqüência da colonização, nosso território estava voltado para fora. Os epicentros econômicos do país estavam determinados pela exploração dos produtos que interessavam aos colonizadores e sua exportação. Interessavam as zonas de exploração e as estradas até a chegada aos portos, que enviavam nossas riquezas ao exterior. A ocupação do território esteve, durante séculos, marcada por esses ciclos de exportação e pelos portos – Recife, Salvador, Santos, Rio de Janeiro.
Era imposta ao país uma configuração voltada para fora, olhando para os dominadores – a Europa. Não havia praticamente comunicação entre regiões do país, somente na medida em que interessava ao processo exportador. Era ocupado o nosso litoral e zonas de produção exportadora, abandonando o imenso território de que o Brasil dispunha.
Foi assim até a crise de 1929. Com o governo de Getúlio, começa a reação, porque se dá inicio à construção de um Estado nacional no Brasil. Até ali o Estado se parecia à definição que Marx dava dele no Manifesto Comunista: um comitê executivo das classes dominantes. Não era um Estado que pretendia representar a todos os brasileiros, mas apenas os setores da elite brasileira, predominantemente os setores produtores para exportação e comercializadores, uma aliança primário-exportadora. (Com as elites de São Paulo e Minas dirigindo o país, no estilo de que tem saudade FHC, que apelou para uma nova aliança das elites desses estados, para tentar recuperar o controle perdido do Estado brasileiro.)
Foi só mais tarde, com a fundação de Brasília, que o país começou sua marcha para o interior, buscando apropriar-se do conjunto do nosso território, abandonado durante séculos. Esse foi o sentido de deslocar a capital do Rio belacap – para Brasília - a novacap.
Grande parte daqueles que hoje festejam Brasília e JK, foram compulsivos ativistas contra a nova capital e contra o governo federal daquele momento. De Carlos Lacerda – o corvo mor -, passando pelo Globo (jornal sem importância antes da ditadura), pela Folha (idem) e pelo Estadao, todos condenavam a corrupção do governo e da construção de Brasília. Se opunham ferozmente, desqualificavam o projeto de JK, incentivaram as duas tentativas de golpes militares durante o qüinqüênio de Juscelino. As matérias dos jornais falam por si só do menosprezo que a nova capital provocada nessa elite – antes e hoje, golpista e antinacional. (Nenhum desses jornais-partido têm coragem de reproduzir suas manchetes e editoriais sobre Brasília na comemoração dos 50 anos da nova capital.)
Não se valorizava nem a ocupação territorial, nem o desenho arquitetônico e urbanístico de Oscar Niemeyer e de Lucio Costa – ridicularizado pela direita, incluindo os heróicos candangos que foram construir a nova capital. O candidato da direita, Jânio Quadros, se valeu desse clima de denuncismo para se eleger com o símbolo da vassoura que limparia a corrupção – que, como se sabe, não apenas renunciou meses depois, como foi pego com conta milionária no exterior, revelando o farisaísmo do partido que o elegeu, a UDN, de Carlos Lacerda, o PSDB de então.
Mas Brasília foi concomitante com o processo de industrialização iniciado por Getúlio, que promoveu o maior ciclo de desenvolvimento econômico que o país já teve, de 1930 a 1950, que o transformou de um país agrícola em um país industrial, de um país rural em um país urbano, de um país voltado para fora em um país voltado para dentro, de um país litorâneo, olhando para fora, em um país ocupado territorialmente, de um país voltado apenas para a exportação em um país que se constrói desenvolvendo o mercado interno de consumo popular.
Esse o sentido profundo da construção de Brasília, construída para consolidar a descolonização do país. Por isso é desprezada e vilipendiada pelas elites dominantes, que têm saudade da época em que controlavam o Estado e o país, articuladas subservientemente às potências colonizadoras. Brasília faz parte da construção do Estado nacional brasileiro, da afirmação da soberania sobre o nosso território, da construção de um Estado para todos, para todas as regiões, para todos os brasileiros a não para as elites do centro-sul. Por isso Brasília representa a afirmação nacional, democrática e popular do Brasil, que a ditadura tentou descaracterizar, tornando-a o quartel general do regime militar, mas que a democratização devolveu ao povo brasileiro e à democracia.
Emir Sade é doutor em Ciência Política e professor aposentado da USP. Atualmente na Universidade Federal do Rio de Janeiro, dirige o Laboratório de Políticas Públicas. Publicou o livro "A vingança da História", entre outros. De orientação marxista, colabora com várias publicações, principalmente com www.cartamaior.com.br de onde foi extraído este texto.
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