Por Leonardo Avritzer*
Sem a ruptura com padrões clientelísticos e não transparentes, sem uma reorganização do Estado, não será possível patrocinar um processo de distribuição de renda e criar uma nova hegemonia política de esquerda no país.
Neste início de 2020, o Partido dos Trabalhadores completa 40 anos. Fundado inicialmente por um pequeno grupo de sindicalistas e de militantes de esquerda, o PT podia parecer uma aposta improvável naquele momento no qual a democratização brasileira ainda era frágil. Hoje, 40 anos após sua criação, é possível afirmar que nenhum outro partido influenciou tanto a história do nosso país.
O PT experimentou não apenas um crescimento exponencial neste período tendo chegado às prefeituras de importantes cidades do país como São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Fortaleza, como também governou estados importantes do país, como Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Bahia. Por fim, o PT chegou à presidência por meio da eleição de seu maior líder, Luiz Inácio Lula da Silva, e realizou um governo que transformou o Brasil em muitos sentidos, pela capacidade de associar crescimento econômico e políticas distributivas.
No entanto, a partir de 2013, o Brasil entra em uma crise econômica e política difícil de ser dissociada do PT. Esta crise, que criou o fenômeno do antipetismo, já é, ela própria, parte da história do Partido dos Trabalhadores. Por outro lado, a crise do Partido dos Trabalhadores não gerou uma proposta mais viável ou efetiva na esquerda brasileira e as ações políticas tomadas contra o Partido conduziram um grupo de extrema direita com concepções políticas e morais pré-modernas à presidência, com profundas consequências no padrão de vida da população pobre e no funcionamento da democracia brasileira.
O PT no nível local
O PT é uma criação excepcional em termos da história da democracia no Brasil. Diferente dos demais países do Cone Sul, o Brasil não tinha um partido de esquerda no início da sua democratização. A Argentina tinha os peronistas, o Chile os socialistas e comunistas e o Uruguai a Frente Ampla.
A verdadeira história do PT começa em 1988 quando o partido venceu as eleições para as prefeituras de São Paulo e Porto Alegre. As vitórias eleitorais de 1988 tiveram pelo menos três significados: em primeiro lugar, mostraram que o eleitorado estava disposto a considerar o PT apto para administrar importantes cidades do país deixando de considerá-lo um partido de fora do mainstream; em segundo lugar, a vitória eleitoral de 1988 permitiu aos prefeitos do PT iniciarem a implementação de políticas socais no nível local, políticas essas que tornariam o partido conhecido no nível nacional e internacional; por fim, o PT também se destacou no nível local por realizar administrações mais transparentes. Todos estes elementos conjuntamente permitiram a expansão da influência do PT entre o eleitorado do país, tal como mostra o gráfico 1 abaixo:
Percentagem de votos recebidos pelo Partido dos Trabalhadores nas eleições (1994 a 2006) para Presidente da República e Deputado Federal, e respectivas diferenças em pontos percentuais
Fonte: Terron e Soares, 2010
Vale a pena também abordar um segundo elemento, o organizacional, e como o PT respondeu a ele entre o final da década de 1980 e o início da década de 1990. O Brasil nunca foi um país no qual os partidos se pautaram pela questão da disciplina partidária. O PMDB cresceu durante a redemocratização mais como uma frente desorganizada do que como um partido. Nos seus primeiros anos, o PT se comportou como uma federação de tendências, mas principalmente depois que José Dirceu assumiu a secretaria executiva estabeleceu-se um grupo hegemônico, um sistema de maioria e de minoria e uma forma de burocratização que se mostrou exitosa nos primeiros anos, mas que está na raiz dos graves problemas éticos que surgiram posteriormente.
Assim, é possível afirmar que o PT se aproximou do novo século tendo resolvido duas grandes questões que em geral são enfrentadas por todos os partidos e especialmente por partidos de esquerda: em primeiro lugar, a questão de como transformar bandeiras políticas genéricas em políticas socais. As políticas sociais lançadas pelo PT nas novas prefeituras, como o orçamento participativo ou o Bolsa Família (lançado no Distrito Federal e em Campinas) funcionaram e chamaram a atenção do eleitorado. Ao mesmo tempo, a proposta de um funcionamento ordenado também permitiu ao partido maior eficácia política.
O PT não percebeu, no entanto, ao lançar a candidatura do seu presidente e principal líder, Luiz Inácio Lula da Silva, que não tinha resolvido dois outros problemas muito relevantes, a saber: não tinha uma proposta de como lidar com o Congresso Nacional e, especialmente, com a Câmara dos Deputados em uma situação de forte fragmentação política, e não tinha uma proposta de como atuar no setor de infraestrutura onde historicamente se deram e continuam se dando as grande apropriações privadas de recursos do Estado brasileiro.
O PT adotou soluções pragmáticas para esses dois problemas. No caso do Congresso, optou por seguir a trilha aberta por Fernando Henrique Cardoso e continuar com um processo de amplas alianças com os partidos de centro. No caso da infraestrutura, ele inicialmente tentou controlá-la a partir dos seus quadros, mas, tal como iremos ver mais a frente, ele não foi capaz de resistir às pressões do sistema político e dos seus quadros organizacionais para entrar nas áreas “não politizáveis” do estado brasileiro.
O PT na presidência (2002-2016)
A eleição de Lula para a presidência da República em 2002 inaugurou um novo ciclo na história do PT com continuidades e rupturas em relação ao ciclo anterior. Eu arriscaria propor duas dinâmicas distintas para interpretar o período: uma primeira vai do início do governo até aproximadamente 2008 e a segunda dinâmica vai da crise de 2008 até o impeachment de Dilma Rousseff.
Na primeira dinâmica o centro principal é a transposição para o nível federal de políticas sociais exitosas no nível local ou gestadas com comunidade de políticas (uso aqui o termo técnico proposto por John Kingdon). É assim que surgem esforços de ampliação das políticas de redução da pobreza que existiam de modo fragmentado e pouco eficaz no governo FHC. Os problemas técnicos específicos que existiram nesse momento foram enfrentados por burocracias petistas e de movimentos sociais específicos com capacidade técnica instaladas nos ministérios do Desenvolvimento Social, da Saúde e em outros locais.
O interessante em relação a esse primeiro momento é que ele já envolveu fortes enfrentamentos entre o chamado grupo burocrático partidário e o grupo técnico. A tentativa de apropriação do cadastro do Bolsa Família pelo grupo ligado ao ex-ministro José Dirceu criou um dos primeiros conflitos dentro do governo e terminou tendo quer ser arbitrado pelo próprio Lula. A tentativa de sanear o Ministério da Saúde encontrou obstáculos semelhantes.
No fundo já aparecia ali o primeiro dos dilemas que iriam marcar o período petista e que se coloca como questão para uma avaliação de longo prazo dos 40 anos do PT: a tensão entre a dinâmica organizativa de um partido centralizado e burocrático e uma dinâmica técnica e política de gestão do Estado.
Mas, o que marcou o primeiro período foi a possibilidade de apresentar à sociedade brasileira um conjunto de políticas públicas que funcionaram, movimentando dramaticamente a estrutura de classe no país retirando 22 milhões de pessoas da pobreza e criando estruturas de ascensão social especialmente através do acesso ao ensino superior. Aqui reside a principal contribuição do PT ao país ao longo dos seus 40 anos de existência: ter propiciado um processo de mobilização social e diminuição da pobreza que rompeu parcialmente com estruturas históricas de exclusão social e de acesso especial da elite ao Estado.
Os primeiros anos do governo Lula expressaram também pontos complexos e problemáticos que levariam à derrocada parcial do projeto petista e que se expressariam a partir de 2008 ou 2010. O primeiro desses pontos está diretamente ligado às formas ilegais de financiamento de campanhas e suas relações com o sistema de construção de maiorias no Congresso Nacional, no qual o chamado grupo organizativo burocrático se envolveu.
O Brasil teve uma forma de relação espúria entre grandes empreiteiras e o sistema político desde pelo menos o governo Juscelino Kubitscheck. Ali, durante a construção de Brasília foram acordadas trocas entre poder público e grandes empresas de engenharia que continuaram a valer por décadas. Ao mesmo tempo, desde os anos 1950 foram estabelecidas relações pouco transparentes entre a Petrobrás e Odebrecht, primeiro na Bahia, estado que concentrava as operações da Petrobrás, e a partir dos anos 1970 no nível nacional, quando a Odebrecht começa a construir o edifício sede da Petrobrás no Rio de Janeiro (vide o excelente livro de Pedro Henrique Pedreira Campos, Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura. Eduff, 2017).
Quando o sistema de troca de apoio político por cargos no Congresso Nacional se fortalece no início dos anos 1990, a relação entre Estado e empreiteiras também se fortalece, especialmente na área do petróleo. Quanto o PT chega à presidência e enfrenta o seu primeiro escândalo importante, o chamado “mensalão”, ele responde institucionalizando um sistema de financiamento semilegal que o tornou vulnerável, tal como a Operação Lava Jato iria comprovar quase uma década depois. Vale a pena lembrar que havia outra alternativa que aos trancos e barrancos acabou prevalecendo via decisões do STF e do Congresso Nacional, o financiamento público.
Assim, a década de governo do PT entre janeiro de 2003 e junho de 2013 se deu com resultados contraditórios. De um lado, foi possível implementar políticas sociais, melhorar a condição de vida da população retirando muitos milhões de pessoas da pobreza, implementando o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), e melhorando o acesso à educação e à habitação. Todas estas realizações não podem ser subestimadas, tal como o fazem os jornalistas econômicos dos grandes meios de comunicação.
Por outro lado, a baixa preocupação com a corrupção, a falta de uma proposta mais consistente para a área de infraestrutura que não flertasse com as empreiteiras e uma maneira mais transparente de gerir a Petrobrás foram calcanhares de Aquiles durante o conjunto do período, encerrado em Junho de 2013, acontecimento que permite avaliações contraditórias (vide, entre outras, a tese de doutoramento de Isabella Gonçalves Miranda, “Brasil em movimento: o fim da Nova República e a crise da esquerda brasileira”. UFMG, 2019).
Junho de 2013 representou incialmente uma tentativa de setores à esquerda do próprio governo de tensionar o governo Dilma Rousseff. No entanto, não podem existir quaisquer dúvidas de que setores à direita conseguiram adquirir a hegemonia dos protestos depois de algumas semanas. O resultado de junho de 2013, não entendido nem pelo governo Dilma Rousseff e nem pelo PT, foi a inviabilização tanto do método de formação de maiorias no Congresso quanto das amplas alianças eleitorais realizadas pelo PT.
Era necessário e possível realizar ali duas grandes operações simultâneas: instituir o financiamento público de campanha para conter uma forma promíscua de relação do governo do PT com as empreiteiras que a opinião pública havia rejeitado nas ruas em junho de 2013; era necessário desfazer a aliança com o PMDB que fazia água desde o ano anterior com o conflito em torno do novo código florestal e da emenda provisória dos portos. Ou seja, era possível uma arriscada mudança de trajetória, que poderia ter significado uma derrota eleitoral em 2014.
Hoje não existem dúvidas que este teria sido um mal menor. A direção tomada pelo governo Dilma foi contrária a esta perspectiva. A presidente enviou uma proposta mínima de reforma política para o Congresso que acabou rejeitada e que possibilitou uma volta ao piloto automático anterior: campanha com financiamento de empreiteiras e aliança como PMDB. O resto já é história. O impeachment, a operação Lava Jato, a prisão do ex-presidente Lula.
Nos seus 40 anos, o PT tem diversos feitos positivos para reivindicar, mas tem também um conjunto de mudanças ou de autocríticas a fazer. A reivindicação positiva foi a capacidade de governar o país para os mais pobres e impor limites mínimos a uma reprodução dos privilégios das elites. Entre todos estes feitos, a entrada da população de baixa renda na Universidade pública que não pode ser revertida e será a que irá ter mais impacto nos próximos anos.
Ainda assim, o PT para se recuperar da forte derrota que lhe foi infligida pelos setores de extrema direita no Brasil, precisará mostrar nos próximos anos que consegue governar sem estabelecer relações promíscuas com os grandes grupos econômicos no país e impor novos padrões de distribuição da renda. No que diz respeito a novas políticas sociais e novos padrões de renda, o PT necessita urgentemente repensar o padrão de financiamento do Estado e ter uma proposta original nesse quesito. Ao longo dos seus 14 anos na presidência o padrão regressivo da estrutura tributária brasileira não foi mudado e especialmente o assim chamado andar de cima (0,1% que habitam o topo da pirâmide de renda no país) aumentou sua distância em relação aos mais pobres (vide o excelente artigo de Marcelo Medeiros et al, “O Topo da Distribuição de Renda no Brasil” em www.scielo.br00100007&script=sci.
Assim, os 40 anos do PT permitem um balanço positivo no sentido da sua sobrevivência e de uma contribuição não desprezível para a redução da pobreza e a mobilidade social no país. Mas acendem um alerta: não é possível mais do mesmo e a autocrítica sobre o que passou, especialmente na Petrobrás, ainda não veio. O PT voltará a uma posição de poder na sociedade brasileira se ele entender que um projeto de esquerda no Brasil tem que associar distribuição de renda, mudança no padrão de organização do Estado e transparência.
A continuidade com padrões clientelísticos e não transparentes não é viável, assim como a possibilidade de patrocinar um processo de distribuição de renda sem uma profunda reorganização não corporativista do Estado brasileiro. Somente com estas medidas será poderá ser possível criar uma nova hegemonia política de esquerda no país.
Leonardo Avritzer é professor do Departamento de Ciência política da UFMG.
Membro do Comitê Científico do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares, Leonardo Avritizer é graduado em Ciências Sociais pela UFMG (1983), mestre em Ciência Política também pela UFMG (1987), e doutor em Sociologia Política na New School for Social Research (1993). Concluiu pós-doutorado pelo Massachusetts Institute of Technology (1998-1999) e (2003).
Autor de artigos e livros sobre ciência política como Impasses da Democracia no Brasil, A moralidade da democracia, A Inovação democrática do Brasil, entre outros.
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