segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Água, dona da vida. Revoltada, dona da morte.



Águas representam vida em todo o planeta da Mãe Terra. Chuvas são bênçãos do céu.

Quando os homens de "podres poderes" decidem intervenções, as águas também matam nas enchentes, no deslizamento de morros, no estouro de barragens, no envenenamento dos rios...

A revolta das águas

Eu sou a água.

Moro num pingo da lágrima que, devagar, cai da dor; nas gotas que brotam do corpo no trabalho ou na dança do encontro com outro ser humano; nas corredeiras revoltas que servem de pistas para esportes radicais; no repouso de lagos e lagoas que acalma a alma; no leito de ribeirões, pequenos e grandes rios; no fundo da terra, fertilizando e preparando o solo para a produção de alimentos; no lençol freático, bem lá no fundo para surgir em grotas, capões, veredas, pintando a natureza em piscinas naturais, de belos cartões postais; na imensidão do mar tranquilo ou revolto em tempestades. Moro também no ar, nas nuvens. E caio em forma de chuvas, como bênção dos céus.

Sou cantada em verso e prosa. O escritor mineiro Guimarães Rosa registrou que “perto de água, tudo é feliz”. E é mesmo. Basta me beber, me usar para banhar, para cozinhar, para venerar, para batizar. O cantor Guilherme Arantes, na música Planeta Água, me coloca como onipresente no planeta Terra. Estou em mais de 70% do corpo humano. E em alguns seres vivos chego a ocupar 98% como na água viva. Deve ser por isso que me homenagearam no nome do animal marinho.

Sou dona da vida, mas, nos dias de hoje, tem alguns seres humanos que me confundem com a morte, me acusam de causar tragédias, matar pessoas, bichos, destruir o meio ambiente e as construções humanas. Estou no noticiário como assassina, como dona da morte. Chega a cair uma lágrima de tamanha tristeza com essa injustiça.  

Os homens destruíram meu inteiro ambiente. Desmataram a terra. As árvores com suas folhas, galhos e tronco me recebiam quando eu caía das nuvens como chuvas. Amorteciam os meus pingos e os encaminhavam para o fundo da terra. Quem já andou por matas em tempos de chuvas sabe que há pouca formação de enxurrada ali. O  pouco que corre sobre a terra caminha tranquila, às vezes mais volumosa, no leito dos rios. Limpinhas, enxurradas cristalinas. Mas, nada que os homens, plantas e bichos possam assustar. As árvores são meu amortecedor, são o cabelo da terra. Jogue uma caneca d’água em uma careca e em uma cabeleira pra você ver a diferença. No chão desmatado eu caio em solo duro, corro pro rio, em enxurradas misturadas com terra, volumosas, e, até violentas. E encho os rios de terra e areia, assoreando seus leitos. Não dá tempo de eu infiltrar no solo, irrigar e tornar a terra mais fértil.

Em grandes plantações de monoculturas de eucalipto, café, banana, soja, feijão e milho, agrotóxicos são aplicados criminosamente para aumentar a produção e os lucros. Venenos ficam na superfície e infiltrados no solo. Quando caio nas chuvas, mesmo sem querer, esses venenos são carreados para o leito de rios. Os serviços de tratamento de água não conseguem isolar as substância tóxicas que estão no meu corpo líquido. Os serviços de distribuição de água levam os resíduos de venenos para as torneiras domésticas. A população me bebe e faz sua alimentação com o tempero dos agrotóxicos. Isso mata lentamente. Causa câncer, doenças neurológicas e fragilização das funções de diversos órgãos internos do corpo humano.

Os homens construíram cidades, cada vez mais perto das minhas moradias, ou, como nômade que sou, minhas passagens. Não há povoamento longe de mim. Construíram casas, prédios, ruas, avenidas, praças em volta da minha passarela, os rios.  Me represaram,  me levaram pelo cano para sair em suas torneiras, nas suas casas, ficando mais fácil beber, lavar e cozinhar. Fizeram também barragens para fazer açudes, produzir energia elétrica, para armazenar rejeitos de mineração.  Estou presente em todo tipo de produção. Em alguns lugares me prendem em grandes reservatórios, caixas, tambores, latões.
                                                                                                          Foto: Carlos Magno de Souza/Arquivo Hoje Em Dia
Agora, mais recentemente, nas médias e grandes cidades, me cobriram, reduziram minha passarela, o leito dos rios, construindo grandes corredores para passar os automóveis, caminhões e ônibus. E mais: vias públicas cobertas de asfalto, tudo impermeabilizado, não sobrando uma gretinha para eu poder entrar, me acomodar no ventre da Mãe Terra. Vou juntando, crescendo, correndo procurando um buraco pra entrar. Quando encontro um bueiro, tá entupido de lixo. Sigo em frente. Caio nos córregos e rios, estreitos, aprisionados. E tento escapar pelas frestas, fazendo esguichos na Praça da Estação, de BH, feito fontes luminosas fúnebres.  

Os pobres que não participaram das decisões sobre minha prisão constroem suas casas e seus comércios nas encostas dos morros, nas margens dos rios, onde tenho que passar. Foram empurrados pela especulação imobiliária para terrenos de grande vulnerabilidade, grande risco de deslizamentos. O preço absurdo dos lotes os colocaram em encostas ali, ameaçados de morte. E são suas famílias as principais vítimas. Me perdoem, eu não queria machucar as pessoas, ainda mais inocentes.

Nesse verão, dessa vez, ventos me empurraram nas nuvens para eu cair em Minas Gerais, no centro do poder, na região central, em um triste horizonte. 

Aqui foi palco de tragédias que mataram 19 pessoas em Mariana, a quatro anos, e 270 em Brumadinho, a um ano. Destruíram rios, plantações, me envenenaram e todo o meio ambiente. Morreram diretamente 289 pessoas, deixaram sem vida a ser vivida milhares de famílias. A assassina Vale quer me acusar de tais crimes, argumentando acidente natural. Não sou culpada, fui usada para obter vultuosos lucros. Até hoje, após quatro anos, repito, centenas de famílias atingidas pelo crime- tragédia de Mariana não foram indenizadas e vivem em situações precárias. Em mais de 800 barragens em Minas Gerais continuo aprisionada, querendo sair. E temo que mais vidas sejam ceifadas.

Justo hoje, 25 de janeiro, um ano após o crime trágico da Vale em Brumadinho, onde nenhum grandão foi acusado ou preso, a Rede Globo recebe R$ 316 milhões para divulgar o pedido de desculpas da Vale. Mas, ela, a empresa, não paga R$ 700 mil de indenização a cada família atingida pela morte dos seus parentes. Isso, a TV Globo não vai mostrar. 

Justo hoje, dia de choro e luto, sou acusada de provocar a morte de mais de 40 pessoas, em Minas Gerais, devido às fortes e constantes chuvas. Além de muita destruição de obras dos seres humanos que os donos dos “podres poderes” fizeram ou permitiram fazer: queda de barragens, destruição de estradas e pontes, invasão da casas e comércios, queda de barreiras em cima de barracos, carros boiando feito barcos, afogamentos... Os prefeitos e o governador dizem que foram outros gestores os culpados ou acidente natural, me apontando como co-autora de mais assassinatos.

Alguns irmãos e amigos ambientalistas me defendem, são solidários, embora solitários. Apontam as decisões equivocadas de obras para obter lucros fáceis para as empreiteiras que propõem construções faraônicas. Os ambientalistas também denunciam gestores públicos que procuram soluções eleitoreiras, imediatistas. Em vez de soluções, criam mais problemas. E eu é quem carrega a culpa.

Estou revoltada. Indignada com as mortes dos seres vivos que foram vítimas do meu mal jeito de pedir passagem, pisoteando pessoas em um estouro de acúmulo de milhares de milímetros de chuva que caíram, em poucos dias, concentradas nas regiões Central e Zona da Mata de Minas.  Sei que também contribuí para essa tragédia humana, mas eu não queria fazer isso, buscava a minha liberdade de andar pelos meus caminhos, de criar condições de vida plena. Sei que juntando meus milhões de pingos revoltosos levei a morte a dezenas de famílias mineiras, mas prometo, por toda a eternidade, ser significado de vida. Se os homens deixarem...

O dramaturgo alemão Bertolt Brecht, defensor dos oprimidos, me dá razão. Ele disse: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o oprimem”. E esse é um bom argumento para me livrar da injusta prisão, da acusação de assassina da vida. 

E também tenho como testemunha, Jesus. Eu sigo o seu princípio: “eu vim para que todos tenham vida”.
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A capixaba Sheilla Lobato, de Cachoeiro do Itapemirim, publicou nas redes sociais um poema sobre os destinos, caminhos e lamentos de um rio.

LAMENTO DE UM RIO...

Me perdoem por toda esta "bagunça"...
Eu só queria passar.
Eu não fui feito pra destruir...
Eu só queria passar.

Já fui esperança para os navegantes...
Rede cheia para pescadores...
Refresco para os banhistas em dias de intenso calor.
Hoje sou sinônimo de medo e dor...
Mas, eu só queria passar...

Me perdoem por suas casas
Por seus móveis e imóveis
Por seus animais
Por suas plantações...
Eu só queria passar.

Não sou seu inimigo
Não sou um vilão
Não nasci pra destruição...
Eu só queria passar.

Era o meu curso natural
Só estava seguindo meu destino
Mas, me violentaram,
Sufocaram minhas nascentes
Desmataram meu leito...
Quando eu só queria passar.

Encontrei tanta coisa estranha pelo caminho...
Que me fizeram transbordar...
Muros
Casas
Entulhos
Garrafas
Lixo
Pontes
Pedras
Paus...
Tentei desviar ...
Porque eu só queria passar.

Me perdoem por inundar sua história,
Me perdoem por manchar esta história...
Eu só estava  passando...

Seguindo o meu trajeto
Cumprindo o meu destino:
Passar....

Scheilla Lobato
#RioItapemirimES
#Cachoeiro
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Veja o video, de 1985, com a música "Chega de mágoa", criação coletiva de diversos músicos brasileiros, logo após grande enchente no nordeste do Brasil.
http://aguadonadavida.blogspot.com/2012/03/nosso-we-are-world-de-1985-continua.html

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