Migração para trabalhar em canaviais deixa novas gerações
de 'órfãos de pai vivo' no Jequitinhonha
“Quando meu pai chegava no fim do ano, eu tinha vergonha de chegar perto dele. Era como se fosse um estranho”, conta Joelma Nunes da Silva, de 23 anos, moradora da comunidade de Muquém, na zona rural de Minas Novas, ao relatar como foi a (pouca) convivência dela durante toda a infância com o pai, José Soares Nunes, ex-cortador de cana. Ele morreu em 2014, de câncer, mas, na prática, pode-se dizer que ele deixou os seus 10 filhos “órfãos” há mais tempo. José passou a maior parte do tempo longe deles, nas usinas de açúcar e álcool de São Paulo, onde trabalhou durante 30 anos.
“Ele só vinha aqui praticamente para ‘fazer menino’ e depois voltava para a usina”, relata a lavradora Francisca Soares da Silva, a “dona Chiquinha”, de 54, viúva de José. “A vida aqui sempre foi muito difícil. Sempre tive que me virar sozinha com o marido longe”, reclama a mulher.
Joelma lembra que o pai viajava para o corte de cana em fevereiro e só costumava retornar em dezembro. “Viver sem o pai da gente é muito ruim. Quando chegava o Dia dos Pais, a gente parabenizava nossa mãe, pois ela era pai e mãe”, afirma a jovem. Ela também recorda que a família já passou necessidades. “Muitas vezes, quando meu pai estava fora, não tinha comida para todo mundo em casa. Os irmãos mais velhos ficavam sem comer para deixar para os mais novos.”
Francisca, que recebe R$ 180 do Programa Bolsa-Familia, comemora que, apesar de tanta dificuldade, hoje tem os filhos criados. Mas, num processo de herança para novas gerações, os netos dela também sofrem com a mesma condição de serem “órfãos de pais vivos”.
Homens da segunda geração da família, filhos e genros de dona Francisca, continuam saindo em busca do sustento em regiões distantes. Na casa, a reportagem encontrou somente mulheres e crianças pequenas, sem nenhum homem adulto.
Outra filha de Francisca, Wilma Nunes Soares, de 28, recorda como foi criada sem a presença do pai. Seus dois filhos pequenos – Lavínia, de 6, e Rafael, de 4 –, passam pela mesma situação. Conta que desde que se casou, há seis anos, o marido dela, Gumercindo Lopes de Souza, de 31, passa a maior parte do tempo fora, no trabalho duro nas usinas. Gumercindo viajou no início de março para o corte de cana no Paraná. Ao partir, ele não teve como se despedir da mulher e do filho Rafael, pois, na ocasião, Wilma estava em Diamantina, acompanhando o menino, que ficou internado durante 26 dias, com leishmaniose.
A mulher conta que o menino se recuperou e fica sempre perguntando pelo pai, que só deverá voltar para casa em outubro ou novembro. A saudade é diminuída pelos contatos pelo WhatsApp, feitos semanalmente. Para isso, Wilma tem que se deslocar a uma pequena distancia até a casa da mãe, onde pega o sinal de telefonia celular, embora muito fraco, razão pela qual os moradores da região recorrem somente ao aplicativo, sem o uso dos aparelhos para falar.
DESPEDIDA Na pequena escola municipal de Muquém, que tem uma única sala multisseriada (das séries iniciais ao quinto ano do ensino fundamental), a professora Nirla Sara Rodrigues, de 24, testemunha a ausência da figura paterna na vida dos alunos por causa da migração. “Somente as mães aparecem nas reuniões. Nem temos comemoração do Dia dos Pais”, observa. “Percebemos que as mães são muito sobrecarregadas. Os pais fazem falta na educação dos filhos”, afirma a professora.
Luan Leite Borges, de 10, do quinto período, é um dos alunos que se tornaram “órfãos da cana”. No último dia 6, seu pai, o lavrador Marivaldo Borges de Souza, de 39, deixou a família e para trabalhar no corte de cana na área de uma usina de açúcar e álcool no interior da Bahia.
A reportagem do EM testemunhou a emoção da despedida do canavieiro. “Eu nem queria ir para longe. A gente fica triste. Vou porque é preciso. Sabe como é, né? A gente que é pai tem que ter compromisso com a família”, afirmou Marivaldo, que completa 17 anos seguidos de “trabalho fora”.
Além de Luan, ele deixou para trás a filha Leidiane, de 16, e a mulher, Dalva Soares Leite, de 37. Só vai retornar em outubro ou novembro e até lá os contatos com a família serão poucos, por telefone. “Não uso ‘esses negócios’”, disse o trabalhador, referindo-se ao WhatsApp. Os trabalhadores recebem R$ 20 da empresa contratante para o lanche durante a viagem.
ROTINA CONHECIDA Em outro ponto da zona rural de Minas Novas, em Campinho de Cansanção, a realidade dos “órfãos da cana” é enfrentada na casa da lavradora Eva Nunes dos Santos, de 46. Eva tem seis filhos, dois com o primeiro marido, que trabalhava no corte de cana, já falecido. O atual, José Nunes da Silva, de 49, há mais de 20 anos deixa a família e vai em busca do sustento na atividade canavieira. Foi o que ele fez, também no dia 6, deixando na casa Eva com os filhos mais novos do casal: Camila Gabriela, de 12, e Ramon, de 5.
“Toda vez que meu pai sai, fica muito ruim. A casa fica mais vazia”, lamenta Camila. Eva diz que já se acostumou com a ausência do marido. “Mas toda vez que ele vai, dá aquele aperto no coração. Entrego pra Deus. A gente fica sem saber se vai reencontrar de novo, com medo de que aconteça alguma coisa ruim”, confessa a mulher.
Pauliano Alves dos Santos, de 27, filho de Eva com o primeiro marido, revela que seguiu o mesmo destino do pai e já trabalhou no corte de cana em outros estados durante seis anos. “Mas o serviço é pesado. Tive um problema no braço e nos últimos dois anos não consegui viajar mais. Está muito difícil porque aqui na região não consigo outro emprego”, reclamou o lavrador, que é casado e pai de um menino. (LR)
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