sábado, 3 de setembro de 2016

O que diremos aos nossos jovens?


Deputado Estadual Durval Ângelo (PT-MG)


Recebi, na última quarta-feira (31.08.16), logo após a consumação do golpe, uma imagem que me chocou. Não apenas pela triste realidade que representava, mas por uma questão de proximidade afetiva. Meu filho postou uma foto do próprio título de eleitor rasgado em muitos pedaços. Não foi só ele. Muitas imagens semelhantes circularam nas redes sociais. Mas aquela me assustou singularmente, por conhecer bem a história de seu autor.


Nascido no período pós-ditadura militar, meu filho cresceu em tempos de democracia. Tempos em que as liberdades individuais e coletivas não eram censuradas. Nos quais eram inimagináveis violações explícitas aos direitos humanos, e particularmente, em que não se institucionalizara a tortura como método de repressão e contenção de movimentos sociais e manifestações legítimas. Sim, acostumara-se a uma democracia plena e vinha daí sua grande desilusão.
Não pude deixar de questionar: o que leva jovens que exerceram o primeiro ou segundo voto a um processo de descrença tão grande, a ponto de rasgarem seus títulos eleitorais? Ponderei que, talvez, o documento ali destruído tivesse um simbolismo maior do que a simples indignação. E refleti: em uma esfera mais ampliada, o que um título de eleitor simboliza? Cidadania, respondi. Era isso! Aquela foto me incomodava tanto, pelo simbólico que carregava: o da cidadania despedaçada.
Comecei a compreender o sentimento daqueles jovens. Afinal, se a minha geração, que já teve a cidadania negada de todas as formas durante o regime de exceção, estava desolada ao ver o Brasil revisitar essa triste página de sua história, imagine como não era difícil para quem sempre viveu em uma democracia! Muitos estão sendo apresentados pela primeira vez aos "tempos sombrios". "O que diremos aos nossos jovens?", indaguei-me.
Buscando explicações, deparei-me com a seguinte formulação do psicanalista Jacques Lacan: "O que é expulso do simbólico retorna no real". Ele se referia aos psicóticos, mas o conceito se aplica bem ao atual momento brasileiro. O que foi a farsa do impeachment da presidenta Dilma Rousseff senão um retorno trágico e patológico a uma realidade social e política de 40 ou 50 anos atrás?! Não sem motivos parcela da sociedade é, hoje, simpática a ideias e ideais ultraconservadores, como: volta da ditadura militar; validade da tortura para salvar vidas; escola sem pensamento crítico; homofobia; misoginia (ódio às mulheres); racismo; ódio aos pobres, especialmente nordestinos e imigrantes; criminalização dos movimentos sociais, entre tantos outros.
Voltando a Lacan, podemos dizer que os 14 anos de um governo de inclusão social mexeram com o simbólico brasileiro, ao colocarem em xeque realidades praticamente arraigadas em nossa tradição, como o preconceito e a desigualdade. Falo do simbólico na dimensão da cultura, do entendimento de si mesmo e dos outros. E neste sentido, talvez, o grande pecado desse projeto tenha sido não se preocupar em formar, conscientizar, provocar a reflexão para a construção de um novo sistema de valores. Com a lacuna deixada, o velho simbólico, que permanecia latente, retorna mais real do que nunca.
Fica o aprendizado. Sem mudanças culturais profundas, que substituam a noção de sucesso pela de felicidade, a ideia de massa de consumo de manobras políticas por indivíduos inteligentes e solidários, que alimentam a sociedade e são amparados por ela, qualquer projeto de justiça social naufragará. Esse é o real que temos pela frente e ele é cruel.
Que houve um golpe de Estado a maioria já sabe. A evidência está na decisão do Senado de não cassar os direitos políticos de Dilma Rousseff, ou seja, não foi dada a pena acessória. Isso mostra a vergonha dos que validaram o golpe. Processo semelhante aconteceu com o ex-presidente do Paraguai, Fernando Lugo, cassado em 2012 e eleito senador no ano seguinte.
A farsa ocorrida no Brasil foi denunciada nos quatro cantos do planeta. "Dilma é vítima de um 'golpe' encenado por seus adversários", disse o jornal francês Le Monde. Já o britânico The Guardian estampou: "Senadores conspiram para tirar Dilma e matar Lava Jato". Mesma linha seguida pelo The Washington Post, dos Estados Unidos: "Se uniram pela retirada de Dilma sabendo que seria injusta". Mas para parcela significativa da sociedade brasileira isso não importa. Tanto faz se não houve crime que justificasse a condenação. O que importa é resgatar o velho simbólico e voltar à zona de conforto.
De novo, me vem a pergunta: o que diremos aos nossos jovens? Digamos a eles, primeiro, que a luta pela democracia não terminou. Pelo contrário, está apenas recomeçando, como lembrou Dilma em seu pronunciamento, em um exemplo de resistência: "Espero que saibamos nos unir em defesa de causas comuns a todos os progressistas, independentemente de filiação partidária ou posição política. Proponho que lutemos, todos juntos, contra o retrocesso, contra a agenda conservadora, contra a extinção de direitos, pela soberania nacional e pelo restabelecimento pleno da democracia."
Por fim, digamos aos nossos jovens que neles reside nossa esperança de reconstrução. Ela está em cada adolescente, moça ou rapaz que sai às ruas e enfrenta a truculência policial em nome da liberdade e contra a retirada de direitos; está na organização de novos movimentos de resistência, como o Levante Popular da Juventude, na proposta alternativa de uma comunicação comprometida com a verdade, trazida pelo Mídia Ninja e nas bandeiras levantadas ontem e hoje pela União Nacional dos Estudantes (UNE). Está na garra, disposição e confiança de cada um deles.
Fonte: Brasil 247
Como cantou o grande Gonzaguinha, "Eu acredito é na rapaziada/ Que segue em frente e segura o rojão/ Eu ponho fé é na fé da moçada/ Que não foge da fera, enfrenta o leão/ Eu vou à luta com essa juventude/ Que não corre da raia a troco de nada/ Eu vou no bloco dessa mocidade/ Que não tá na saudade e constrói /A manhã desejada".

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