terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Geraizeiros do Vale das Cancelas resistem para viverem melhor


Geraizeiros do Vale Das Cancelas

As comunidades são vítimas da grilagem judicial - a prática de falsificar documentos e processos para tornar terras públicas em privadas. Foto: Gui Gomes

Famílias que viviam nas chamadas “terras livres” lutam para retomar áreas que foram judicialmente apropriadas por fazendas

Por Jessica Mota
Fotos Gui Gomes, do Vale das Cancelas (MG) 
27 de janeiro de 2018

Um fenômeno peculiar atinge o norte de Minas Gerais, lá onde vive o povo contado por Guimarães Rosa: a grilagem judicial. A prática de falsificar documentos e processos para transformar terras públicas em privadas, identificada no local pela pesquisadora Sandra Gonçalves Costa, da Universidade de São Paulo, remonta as décadas de 1920 e 1930. Foi quando elites locais, com acesso ao aparato jurídico e burocrático da recém-criada República brasileira, começaram a titular como privadas as “terras livres” dos Gerais. A prática se estendeu pelo século seguinte.

O uso da expressão “terras livres” diz muito. Eram livres as terras porque não tinham cercas e eram de uso comum das comunidades camponesas. Eram livres as comunidades que viviam em uma relação de interdependência umas com as outras e com o Cerrado. São as comunidades geraizeiras, que hoje decidiram retomar seus territórios. 

Nas chapadas, lugares mais altos, criam o gado e outros animais soltos. É onde também buscam frutos, plantas medicinais e caça. Nas margens dos pequenos cursos de água, plantam.

Na região do Vale das Cancelas, em 13 processos analisados, de um total de 36 referentes à divisão e demarcação nas terras da Comarca de Grão Mogol, a pesquisadora Sandra identificou mais de 1 milhão de hectares de terras públicas que se tornaram privadas.

Demorou ainda para que a expulsão batesse na porta da família de Lurdes da Costa, hoje com 55 anos. Ela lembra que uma empresa de reflorestamento estava atrás das suas terras. Era 1974, segundo conta. Foi durante o regime militar, entre as décadas de 1960 e 1980, que o governo de Minas Gerais, por meio de agências de incentivo, arrendou as terras de uso comum das comunidades geraizeiras para que empresas plantassem eucalipto com dinheiro público. Sob o nome de reflorestamento, as monoculturas destinavam-se para a produção de carvão para siderúrgicas, e estão presentes até hoje.
Com a pressão, Lurdes, os cinco irmãos e os pais saíram fugidos da região de Grão Mogol. Foram morar nas ruas de Montes Claros. Lá, o pai desapareceu. Ela se separou da mãe e dos irmãos – só os reencontrou em 1981. Invisíveis e fugindo da violência, geraizeiros e geraizeiras perderam os laços com a terra da qual viviam. Perderam a liberdade e a paz.
No caminho de buscar entender os porquês da sua história, Lurdes retornou em 2006 para os Gerais, onde montou seu barraco e uma pequena roça, com criação de animais. Quis retomar o modo de vida que foi obrigada a deixar na infância e lutar pelo seu direito à terra.

COMUNIDADES GERAIZEIRAS DO VALE DAS CANCELAS

  • Onde estão: norte de Minas Gerais
  • Atividades: criação de gado solto nos Gerais, roçado, coleta de alimentos e plantas medicinais no Cerrado
  • Por que lutam: pela retomada de seus territórios de uso tradicional, privatizados judicialmente
  • Ameaças: a grilagem, monocultura de eucalipto e empresas de energia
  • Como se organizam: ocupações das fazendas que se instalaram sobre seus territórios, movimentos sociais, como o Movimento dos Atingidos por Barragens, apoio da Comissão Pastoral da Terra e articulações com outras comunidades e atores políticos

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