A alegria de um coroa
Armando Nogueira
Acordou bem cedinho. Estava louco para rever a sua cidade. Abriu a janela do apartamento e deu de cara com uma colossal manhã de sol, dessas que só mesmo o Rio de Janeiro é capaz de aprontar em pleno inverno. Pois a história que agora te conto, leitor, passou-se no recente mês de agosto.
Para não perder tempo, que as férias eram brevíssimas, o nosso amigo tomou uma xicrinha de café preto, enfiou no bolso uma pera, pra mais tarde, e saiu pelo Aterro do Flamengo, feliz da vida, de bermudas e tênis “Conga”.
Caminhava e distribuía seu contentamento entre as árvores do Aterro, boas amigas que ele já não via há dez anos, quando deixou o Rio para ir cuidar de uma fazendola no interior de Minas.
Pelas tantas, quis tomar sol. Despiu a camisa de malha, deitou na arquibancada do campinho de futebol de salão e assim ficou um tempão, entregue ao regozijo de merecido repouso. Tamanho era o sossego que até chegou a tirar uma soneca.
- Ei, moço! bom-dia!
Era a voz de um dos três garotos que chegavam com uma indisfarçável secura de bola.
- Quer fazer um racha com a gente? A gente joga dois-contra-dois.
Deitado estava e deitado respondeu, no embalo:
- Vamos lá, pelada é comigo mesmo!
Resoluto, levantou-se, sacudiu as pernas e foi logo entrando no campo. Um campo de barro. O dono da bola, um menino de seus quinze anos, fez a apresentação da turma:
- Eu sou o Marcio, esse aí é o Dico e aquele é o Leo.
Nem esperou que o coroa se identificasse. Queria mais era começar logo o racha.
- Olha aqui, vai ser eu e o Dico contra o senhor e o Leo.
Pela rapidez da escalação, o coroa sentiu que devia estar entrando numa fria: o bom de bola, ali, devia ser o Dico. Discretamente, deu uma olhada e viu que o Leo não tinha a menor pinta. De qualquer modo, chamou de lado o Leo e propôs uma chave: o Leo lá na frente, ele mais atrás. Antes, porém, um teste sem aparentar outra intenção a não ser aquecer o corpo: na verdade, queria mesmo era saber se o Leo era de bola, ou não. Tocou a bola na direção do Leo para ver que bicho dava. A bola beliscou a canela do Leo. O coroa chegou a pensar em desistir. Um sujeito de 61 anos, meio barrigudo, cheio de cabelos brancos:
- Meu Deus, o que é que estou fazendo aqui no meio desses meninos; uns meninões de quinze anos?
O diabo é que ele já tinha aceito o desafio. Não ficava bem correr da raia. Afinal de contas, não era a primeira, nem seria a última vez que a vida metia o nosso coroa em batalhas decisivas.
No meio do campo, o dono da bola vai cantando as regras do jogo: a partida é de cinco. Quem fizer cinco primeiro, ganha. Não vale gol direto. Não pode pegar a bola com a mão, só se já começar no gol de saída.
E como ninguém sequer pensou em jogar no gol, a partida começa com os quatro na linha. No centro do campo de terra batida, a bola de futebol de salão, por sinal que um tanto surrada.
A saída, lógico, é do Marcio. Marcio pro Dico, Dico pro Marcio, que tenta um drible. O coroa, vigilante, rouba a bola e contra-ataca. Procura o Leo. O Leo ficou lá atrás, paradão, sem saber pra que lado ir. O coroa então chuta do meio do campo. Gol!
- Não vale – grita o Marcio – eu avisei ao senhor que não vale gol direto. O senhor tem que passar a bola pro Leo! Ou o Leo pro senhor!
Gol anulado, começa tudo de novo. Saída com o Marcio. O coroa pede tempo. Cochicha uma tática no ouvido do Leo.
Bola em jogo. O Leo dispara e vai ficar plantado bem juntinho da baliza, como pediu o coroa.
Em dez minutos, o time do coroa já está ganhando de três a zero, três gols do Leo. O esquema funciona bem, mas o jogo é incessante, lá e cá. Agora mesmo, o Dico acaba de fazer o dele: três a um. E o Marcio delira com a reação.
Nova saída. O coroa arranca pelo meio dos dois, parece um foguete; vai em frente e entrega, mais uma vez, embaixo dos paus para o Leo fazer o quarto gol.
A essa altura, o coroa já passeia pelo campo, absoluto. Por sua vez, o time adversário já esta literalmente descadeirado.
- Vai, pereba – berra o Marcio, colérico, para o Dico – Vai nele! Você não disse que o coroa não é de nada? Toma a bola dele, palhaço!
A dissensão nas hostes inimigas é profunda. O Marcio e o Dico vão acabar saindo na porrada. Pelo menos é o que pressente o coroa, achando, por isso, que o melhor é liquidar logo essa conta.
Vamos, então, mais que depressa ao quinto e derradeiro gol dessa inesquecível partida. Porque inesquecível, leitor, já, já saberemos.
O Marcio faz um passe longo para o Dico. O demônio do coroa, como sempre, adivinha a jogada, corta o centro com o peito em pleno ar e, antes que a bola caia no chão, amortece na coxa direita. Da coxa, a bola escorre para o peito do pé e pronto: uma, duas, três… o homem começa uma sucessão de embaixadas; faz nove em plena corrida. Na décima, depõe a bola na linha do gol, bem em cima da linha:
- Taí, Leo, faz o quinto e acaba logo o jogo.
- O Marcio, uma fera, vai apanhar a bola e nem volta para dizer até logo. O Dico sai de fininho, mal dá um tchau. O Leo, não, o Leo dá um abraço legal no companheiro de time.
O coroa senta de novo na arquibancada, tira do bolso a pera, dá uma mordida triunfal e fica ruminando, em silêncio, o bendito fruto de uma bela vitória.
Os três meninos foram embora sem saber que deram uma certa alegria ao coroa Nilton Santos, também chamado “A Enciclopédia do Futebol”.
Armando Nogueira foi jornalista, cronista de futebol. Foi , por mais de 40 anos, um dos maiores comentaristas poéticos do futebol brasileiro. Faleceu neste ano de 2010.
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