ENTERRANDO MEUS IRMÃOZINHOS
Reginauro Silva
Ontem, a história voltou a se repetir em Almenara, onde os pássaros piam mais sofregamente e as águas passam mais devagar por sobre as pedras multiformes do Rio Jequitinhonha.
Desta vez apareceram mais meninos e meninas, todos muito bem desarrumadinhos, as roupinhas puídas, porém, bem passadas e algumas, até, engomadas.
Em design, só não superavam a vestimenta recém-costurada para o bebê que dona Laura acabara de ganhar. E perder. Já nos acostumados a esse ritual.
Todo ano, pintou o mês de agosto, aproximou-se setembro, encerrado o ciclo do pequi, mais uma criancinha pra gente enterrar, que na nossa idade ainda não inventaram esse negócio de nascituro, natimorto, prematuro... É criancinha mesmo!
Que eu me lembre, levamos umas oito (mãe já teve 16) pro cemitério particular que construímos junto ao Lajedo das Lavadeiras. Um cemitério de areia, como os castelos de infância, só para nossos irmãozinhos.
E que a correnteza do Jequitinhonha carrega todo janeiro, e nós voltamos a cavar na passagem do dia dos pais. Já esperando o próximo freguesinho. Ou freguesinha.
De seus seis, sete, às vezes até nove meses.Passado o mal de sete dias, Reginalva, a primogênita, traz a notícia:- Nosso irmãozinho (ou irmãzinha) morreu de novo...
Quer dizer, não é de novo, porque todo ano vem um diferente, mas na nossa cabecinha é mais um que seria se não tivesse deixado de ser.
E lá vamos nós juntar a molecada no largo da igreja, todo mundo de olhos esbugalhados e curiosidade acesa, querendo saber como foi.
- Ora, como foi, é igualzinho aos anteriores: mãe começou a gemer, gemeu mais alto, mais alto e mais alto, sabe como é? Bem alto mesmo!
Aí, dona Izidora, a parteira, foi chamada às pressas por nosso pai Rebeldino, chegou espavorida. Regi botou a água pra ferver, ela juntou um punhado de folhas de mamona, matruz, erva doce, cansanção, sei lá-o-quê mais, eu, Tião e Reinaura levamos a baciona de água fervendo pro quarto, cabeças abaixadas pra não ver a cena só entreolhada de mãe de pernas abertas cobertas por uma coberta branca (tomando fôlego...), saímos correndo pro quintal, um grito rouco e prolongado ecoou em direção ao infinito, dona Izidora gritou nasceu, pai puxou longas baforadas no cigarro de palha, mais abobalhado do que nervoso, e nós?
Hein, e nós? Nós não sabíamos se chorávamos ou se sorríamos (mais fôlego...), um olhando pro outro desconfiado, ouvidos atentos à algazarra vinda do quarto, aguardando a sentença da parteira. Que não demorou muito:
- Morreu!
A caixa de sapatos já estava preparada, toda enfeitada por tiras coloridas de papel crepom. Dentro, um minúsculo travesseiro de boneca da futura Vera e a dita cuja roupinha costurada na véspera por dona Laura, no seu imorredouro sonho de ter um bebê de fato, sobrevivente como nós outros que estamos aqui para contar o causo, enchentes, impaludismos, cataporas e desnutrições depois.
O velório se formava numa velocidade extrema. Os meninos apareciam que nem formigas em açúcar derramado no chão da cozinha lá de casa. Um tanto. Mais que um tanto, um monte. Vinham meninos de todas as cores, de todas as raças, de todos os cantos da cidade. E uns varapaus de calça curta.
A sentinela prosseguia até o cair do sol, quando reiniciávamos o féretro rumo ao Lajedo das Lavadeiras. Cada um levando sua vela, cuja chama lutava bravamente contra a ventania beira-rio.
Um imenso buraco era aberto pelo maior de todos, onde depositávamos a caixinha de sapato com seu anjinho pagão de cabelos ralinhos. Todos tinham o direito de jogar um punhado de areia por sobre a tampa e, depois, era só amontoar as flores do cerrado, ramos e similares colhidos no cortejo e nas barrancas do Jequi.
Tristes, muito tristes, os sobreviventes se espalhavam, quase choramingando, cada qual contando no bolso suas bolinhas de gude...
Nenhum comentário:
Postar um comentário