segunda-feira, 10 de maio de 2021

Ministério da Saúde fracassa na vacinação de quilombolas, sem-teto e outras populações prioritárias

Somente 1% dos quilombolas foram vacinados 

O plano inesperado do Brasil para vacinar os quilombolas, sem-teto e prisioneiros não acontece.

O quilombo de Santa Rita do Bracuí, outrora uma comunidade tradicional tranquila ao longo do Oceano Atlântico, foi invadido por especulação fundiária e moradia irregular. (Terrence McCoy/The Washington Post)

por Terrence McCoy  e Heloísa Traiano, no washingtonpost

 9 de maio de 2021 às 11:05

ANGRA DOS REIS, Brasil — Depois de uma vida inteira se sentindo invisível, a família foi informada de que de repente se tornaria uma das principais prioridades do Brasil. Quando o país começou a implementar vacinas contra o coronavírus no início deste ano, autoridades disseram que comunidades como a deles, fundadas por africanos que escaparam da escravidão, estariam entre as primeiras a receber vacinas.

Mas então semanas se passaram, as vacinas nunca chegaram e um dia no final do mês passado, o telefone tocou. A voz era fraca, mas as palavras eram claras: "Ele está morto."

"Pelo amor de Deus", respondeu Maria Lucia de Morais. "Como isso pode ter acontecido?"

Atrasos na implantação da vacinação deixaram sua prima de 70 anos indefesa contra o vírus que devastou o Brasil. Quatro dias após a internação, ele estava morto.

Agora, De Morais vê sua morte como resultado de mais uma promessa quebrada que o Brasil fez ao povo das históricas aldeias negras conhecidas como quilombos.

"Há uma lacuna entre o compromisso e a ação", disse De Morais. "Sentimos que não temos direitos a nada."

Maria Lucia de Morais, do centro, e sua família tiveram acesso prioritário a uma vacina contra o coronavírus. Meses depois, eles ainda estão esperando. (Terrence McCoy/The Washington Post)

No início deste ano, em reconhecimento às extraordinárias e históricas desigualdades registradas no Brasil, o governo federal lançou um plano de vacinação que priorizava as pessoas no que chamou de situações de "elevada vulnerabilidade social". Indígenas, moradores quilombo, desabrigados e encarcerados: Em uma reversão da hierarquia social cotidiana, eles se juntariam aos profissionais de saúde e aos idosos à frente da linha de vacinação.

Uma história de escravidão — e espaço

Mas meses após a campanha de vacinação sitiada do Brasil, e em meio a números recordes de mortes, o governo está lutando para manter esse compromisso. Cerca de 44 milhões de pessoas receberam pelo menos uma dose de vacina. Quase 11% dos brasileiros já receberam dois. Mas pesquisas mostram que apenas 1% dos moradores de quilombos foram totalmente vacinados. As taxas são mais altas nas aldeias indígenas, onde cerca de metade foi totalmente vacinada, mas são menores ainda entre pessoas desabrigadas e encarceradas. As prisões superlotadas do Brasil estão lotadas de cerca de 754 mil presos. Mas apenas 1.000 doses de vacina foram administradas ao que o governo chama de grupo prioritário.

Somente 1% dos moradores de quilombolas 

foram totalmente vacinados.

A lentidão na campanha tem subestimado as previsões que o governo fez em seu plano nacional de vacinação, que disse que alguns grupos vulneráveis eram tão pequenos que os funcionários não deveriam ter que escalonar as vacinas.

"É uma situação de caos", disse Felipe Freitas, pesquisador do Observatório de Crises de Direitos Humanos e Covid-19. "Falta vacinas, falta de planejamento, falta de logística e falta de equipes especializadas para levar as vacinas a esses grupos prioritários."

O Ministério da Saúde do Brasil, que criou e está realizando o plano nacional de vacinação do país, não respondeu aos repetidos pedidos de comentário.

As lutas enfatizaram a falha mais ampla do Brasil em proteger vacinas suficientes para controlar uma doença que já matou mais de 421 mil pessoas, o maior pedágio fora dos Estados Unidos. Em vez de comprar milhões de doses da Pfizer no ano passado, quando teve a chance, o governo federal comprou medicamentos ineficazes e fez apostas pesadas em doses de vacina que tem lutado para produzir ou importar em nível de massa. Quase todos os dias parece trazer outra previsão do governo de uma entrega de vacinas, apenas para que ela seja desatraída, atrasada ou completamente afundada.

A agente de saúde Ana Cássia Oliveira de Lima chega à comunidade Nossa Senhora do Livramento, ao longo do Rio Negro, para aplicar uma vacina coronavírus aos Ribeirinhos — moradores do rio. (Bruno Kelly/Reuters)

O resultado: Meses após a imunização do primeiro brasileiro, a vacinação continua sendo um jogo de espera enlouquecedor não só para a grande maioria dos brasileiros, mas para os muitos prometidos acesso prioritário. Isso, em um país que inoculava 10 milhões de pessoas contra a poliomielite em um único dia e ganhou aclamação internacional por seus programas de vacinação.

"Quando não há o suficiente da vacina, você não consegue atingir seus objetivos", disse Guilherme Werneck, epidemiologista que tem acompanhado grupos prioritários. "Você poderia vacinar de 1 a 2 milhões de pessoas por dia no Brasil, mas não há vacina para isso."

As falhas na vacinação dos vulneráveis expuseram sua marginalização histórica. Comunidades informais e empobrecidas sempre fizeram parte da paisagem brasileira — subindo montanhas, escondidas em florestas, muitas vezes além do alcance ou interesse das agências governamentais. Então, quando chegou a hora de começar a vacinar pessoas em comunidades de difícil acesso, dizem pesquisadores e defensores, o governo não tinha os dados necessários. Os povos das comunidades indígenas e quilombolas são muitas vezes transitórios, passando e saindo de ambientes rurais e urbanos. Encontrá-los, muito menos confirmar sua elegibilidade, tornou-se um desafio.

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"Pessoas com mais de 80 anos, por exemplo, são muito fáceis de encontrar", disse Werneck. "É um alvo muito específico, facilmente priorizado e fácil de confirmar a elegibilidade. Mas ir para outros subgrupos definidos por critérios diferentes - as coisas se tornam mais complicadas."

"Não há política para mapear essas populações, que não são muito grandes, mas estão muito espalhadas por áreas remotas", disse ele. "Ser priorizado no papel não significa a mesma coisa a ser priorizada na prática."

Na deslumbrante cidade oceânica de Angra dos Reis, a 160 km do Rio de Janeiro, na costa sudeste do Brasil, mais de 90% das pessoas com mais de 60 anos — cerca de 24 mil pessoas — receberam pelo menos uma dose de vacina. Mas apenas uma pequena fração da vibrante comunidade quilombola da cidade — 147 pessoas — foi imunizada.

O tamanho da comunidade não é claro. O governo federal estima que haja mais de 4.200 membros. Líderes comunitários dizem que são cerca de 600. A cidade não respondeu às perguntas enviadas por e-mail perguntando por que tem lutado para inocular o grupo prioritário.

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Na incerteza, o líder do quilombo Emerson Luís Ramos, 35, percebeu um padrão de discriminação: "Eles sempre tentaram negar nossa existência".

A história de sua comunidade, chamada quilombo de Santa Rita do Bracuí, é de escravidão e desapropriação. No final do século XIX, quando o Brasil se tornou o último país das Américas a acabar com a escravidão, um barão do café chamado José Joaquim de Souza Breves deixou para trás grandes extensões da terra ao longo da costa para os africanos que havia escravizado. Mas na década de 1970, em meio à frenética busca da ditadura militar para desenvolver o vasto país, uma nova rodovia abria seu território em dois, trazendo consigo especulações imobiliárias não regulamentadas e grilagem de terras.

O líder do quilombo Emerson Luís Ribeiro denuncia um padrão de discriminação: "Eles sempre tentaram negar nossa existência".

"Após um longo período de conflitos fundiários, os quilombos de Santa Rita do Bracuí perderam uma parte considerável do território de seus antepassados, sobretudo terras ao longo do mar", escreveu um procurador federal em sua recomendação no ano passado de que a comunidade recebesse os direitos da terra. "A lentidão do Estado só encorajou mais conflitos, o que foi inaceitável."

O líder do quilombo Emerson Luís Ramos foi de porta em porta para saber quantas pessoas em sua comunidade precisavam de uma vacina. (Terrence McCoy/The Washington Post)

Moradores do quilombo disseram que uma vez temiam que a inação do Estado lhes custasse suas terras. Agora eles temem que isso possa custar-lhes a vida.

Assim, Ramos, que recebeu a primeira dose da vacina AstraZeneca, mas não a segunda, entrou na comunidade para saber quantas pessoas precisam das vacinas.

"Estou fazendo o trabalho que o Estado deveria estar fazendo: colocar famílias no mapa, ir de porta em porta. É humilhante", disse ele. "É frustrante que, em 2021, estejamos vivendo assim. O Estado tem uma dívida histórica conosco."

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E agora sua jornada estava levando-o até outra colina íngreme e não pavimentada para visitar mais uma família. No topo da comunidade empobrecida, Maria Lucia de Morais e seu marido, Benedito Nunes de Morais, 56, saíram de sua casa de agachamento, colocaram máscaras e sentaram-se para olhar para o mar abaixo. Nenhum dos dois havia recebido uma dose da vacina, fonte de grande frustração.

"Os índios foram vacinados", disse Benedito. "Qual é a diferença entre um índio e alguém do quilombo?"

"Estou com medo", disse de Morais. "Tenho medo todos os dias."

"Estamos todos assustados", disse Ramos a ela. "Estamos vendo pessoas que estão morrendo que não precisavam morrer. Eu não sei quantos de nós mais podemos esperar”.

Fonte: https://www.washingtonpost.com/world/2021/05/09/coronavisus-brazil-vaccine-indigenous-quilombo/


 

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