O ano do Cruzeiro: a divina comédia
*Ricardo de Faria
Todo rebaixamento decreta o fim de um projeto. O descenso é a morte de um time, que pode renascer ou não... Lembro-me do filósofo Montaigne, alertando que filosofar é aprender a morrer
Publicado em 15/12/2019 11:30 h
Logo após a fatídica partida que decretou o rebaixamento do Cruzeiro à Série B do Campeonato Brasileiro, veio à minha mente a frase que, segundo Dante Alighieri, consta nos portais do inferno: “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais!”. Agora é série B, com viagens longas e tortuosas, percorrer o Brasil sem a devida pompa, uma legião de adversários prontos a criar memes diários, times casca grossa com sangue no olho, campos de batalha onde o verde (ironicamente da esperança) parece que não é cuidado há séculos.
E tudo isso sem dinheiro nem para pagar a moedinha derradeira de Caronte, o barqueiro que conduz as almas dos recém-mortos sobre as águas do Hades, vulgarmente chamado de inferno, uma morada subterrânea, em outras palavras, a Segunda Divisão do mundo dos vivos.
Todo rebaixamento decreta o fim de um projeto. O descenso é a morte de um time, que pode renascer, ou não.... Lembro-me do filósofo Montaigne, alertando que filosofar é aprender a morrer. Sendo assim, diante do inferno que será a Série B, temos um oportuno momento de reflexão, daqueles que só o futebol poderia nos proporcionar, e nada mais propício do que a Divina comédia – um bom título para o ano do Cruzeiro em 2019.
O livro em questão nos coloca diante de grandes temas da humanidade, aqui adaptados para o universo da bola: existe vida após a queda? Quem encontraremos pelos caminhos tortuosos do subterrâneo? Teremos a redenção? Haverá misericórdia por parte daqueles que nos martirizam com memes e provocações? Nos perderemos no vale dos mortos por toda a eternidade? Essas e outras questões rondam a cabeça dos cruzeirenses neste difícil momento.
Dante propõe uma mudança radical ao escrever esse livro, pois a partir de agora é o homem (e não mais a divindade) que escolhe seus caminhos. Assim, a Divina comédia é, sobretudo, um livro sobre escolhas, diante das quais nos encontramos diariamente, que podem nos levar tanto ao inferno, morada inóspita e subterrânea, quanto ao paraíso, lugar privilegiado, entre os bons, nas alturas. Enfim, uma coisa é fato: é preciso conhecer o inferno para encontrar a redenção.
Assim, a redenção é uma escolha! Para tal jornada será preciso vencer os nove ciclos do inferno, apresentados por Dante. Qualquer semelhança à vida do time de Belo Horizonte não é mera coincidência. Primeiro ciclo: o limbo. Lugar dos não batizados. Estão à deriva. Não vão ao estádio, não torcem de verdade, correndo o risco de virar a casaca a qualquer momento. É preciso convertê-los! Segundo ciclo: luxuriosos. Mais do que nunca, é hora de engolir a seco a ideia de que time grande não cai. A realidade mostra o contrário. Superar isso é fundamental para uma reconstrução. Terceiro e quarto ciclos: gulosos e esbanjadores. Desculpem-me, mas alguns medalhões do time poderiam cair em qualquer um desses infernos e, às vezes, estar em mais de um. Por isso os coloco juntos.
São muitas festas, quando, na verdade, não se tinha nada a comemorar, muito dinheiro rolando, vida boa de mais. Salários astronômicos, valorização exacerbada de quem não produz, contratos a longo prazo (esse é o inferno mais comum entre os jogadores). Quinto ciclo: irados. Esse é o inferno em que os torcedores costumam cair. Não adianta quebrar o estádio. Aliás, não adianta mesmo! Além de perder mando de campo, é uma motivação desnecessária para uma sociedade que já sofre com a violência. Brigar com o amigo por causa da zoação, sair dos grupos de WhatsApp, xingar, nada disso vai trazer o time de volta ao paraíso. Sexto, sétimo, oitavo e nono ciclos: hereges, violentos, fraudadores e traidores.
Esse é um inferno muito frequentado por dirigentes, conselheiros e demais autocratas que, hereticamente, mancham o nome do sagrado futebol com o dinheiro impuro das transações espúrias! Que traem o sentimento do torcedor, colocando os interesses pessoais acima dos coletivos e que, levianamente, cometem crimes, levando o clube às páginas policiais em vez das páginas esportivas. É preciso que o futebol seja entregue a quem ele pertence, isto é, ao torcedor.
Enfim, toda redenção exige escolha, coragem, sacrifício e trabalho árduo. Não é possível ficar apenas na reclamação. É hora de encarar 2020 como a travessia do mundo dos mortos. Do contrário, é ficar perdido no vale das sombras sem nenhuma viva alma (literalmente) para direcionar. Pois, se Dante Alighieri fosse mineiro, como certeza nos avisaria que de bem-intencionados o inferno está cheio!
*Ricardo de Faria é filósofo
Fonte: www.superesportes.com.br
Fonte: www.superesportes.com.br
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