História de duas manifestações
Estudantes
e professores levaram muito mais gente às ruas que o bolsonarismo.
Risco de autogolpe caiu.
Mas, surpresa: a pauta das contrarreformas
não refluiu. Por que?
OUTRASPALAVRAS
por Antonio
Martins
Publicado
27/05/2019 às 21:08 - Atualizado 27/05/2019 às 21:25
Mar
de estudantes no centro do Rio, em 15/5. Ao fundo, a Candelária.
Certas
experiências só são vividas de fato quando se reflete sobre elas
e seu sentido. O Brasil vive, desde 15 de maio, o primeiro grande
desafio ao projeto de Jair Bolsonaro. Houve duas jornadas de
mobilização nacional mas ruas, convocadas por atores que ocupam
posições opostas na disputa pelos rimos do pais. Uma terceira está
marcada para daqui a três dias.
Em seu conjunto, elas projetam
saudáveis incertezas sobre um cenário que parecia desastroso. Além
disso, ajudam a enxergar melhor a disputa política complexa que
marca o Brasil desde a campanha eleitoral de 2018, vista
costumeiramente a partir de simplificações redutoras. Neste
cenário, começa a ficar clara a existência de três blocos de
forças, nitidamente distintas: ultracapitalismo, protofascismo e a
heterogênea oposição a ambos.
Esta última é a principal
protagonista dos solavancos – e de uma possível virada. Está
viva, ao contrário do que apostavam muitos analistas. Porém,
enfrenta dois limites. Não tem acesso a instrumentos de poder
relevantes. E não tem projeto claro, o que torna frágeis todos os
seus avanços. Precisa resolver esta lacuna, sob pena de desperdiçar
a potência de seus grandes atos, e de não se aproveitar das
brechas que começam a surgir — e tendem a se alargar rapidamente
— entre os dois projetos no governo.
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Saibamos
reconhecer nossos êxitos. Além de terem dado início à mudança
de cenário, as manifestações
dos estudantes e educadores em
15/5 foram, até agora, as mais robustas deste novo ciclo. O mapa
publicado por O
Globo reconhece
um primeiro
dado:
elas espalharam-se por 222 cidades, contra 156 do ato bolsonarista
do último domingo. Mas esta é apenas parte do quadro.
O protesto
contra o corte de verbas reuniu dezenas
de milhares de
pessoas em um número expressivo de capitais – Belém, Salvador,
Recife, Brasília, Belo Horizonte, Florianópolis, Porto Alegre –,
onde os bolsominions juntaram,
essencialmente, grupos nutridos para fotos. E os estudantes
despertaram também cidades médias, a exemplo de Juazeiro do
Norte-CE, Picos-PI, Mossoró-RN, Campinas, São Carlos e Sorocaba-SP
e dezenas de outras. Leve-se em conta outro fator: embora
dialogassem com diversos setores descontentes com as políticas do
governo, as manifestações eram específicas: seu objetivo era
protestar contra os cortes na
Educação; seu
público essencial era o dos atingidos pelo “contingenciamento”
de verbas.
Ontem,
um bolsonarismo acuado pretendeu dar o troco reunindo toda a sua
tropa. Diante da queda brusca de popularidade do presidente e de
suas dificuldades crescentes no Congresso, a ideia era mostrar
potência máxima nas ruas. E não apenas contra a esquerda, que
liderara os protestos do dia 15.
O alvo imediato das
manifestações era o sistema político – e nisso,
ultracapitalistas e protofascistas se distanciaram como nunca.
Atacava-se o establishment, como
dizem Bolsonaro e Steve Bannon; aqueles que tornam o país
“ingovernável” (segundo o presidente, ao lançar o mote para as
manifestações), em especial, a mídia (com destaque para a Globo),
o STF (“presta atenção / a sua toga vai virar pano de chão”,
gritou-se ontem); o deputado Rodrigo Maia, e, por extensão, todo o
Congresso.
O
resultado foi frágil – exceto no Rio e em São Paulo, onde a
praia de Copacabana e a avenida Paulista reuniram dezenas de
milhares.
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Porém,
como aponta Gilberto Maringoni, uma coisa são os fatos; outra, a
narrativa que os atores políticos constroem a partir deles. Nas
páginas dos jornais e nos noticiários da TV, há hoje um notável
esforço de captura. Os ultracapitalistas querem apresentar as
manifestações não como foram – mas como um suposto “apoio
popular” às contrarreformas.
É o que sugere Pablo Ortellado,
articulista da Folha, com
base em “pesquisa” feita para “demonstrar” um resultado
fabricado pelo autor. Para ele, “surpreende”, mas “as pessoas
foram às ruas pelas reformas, especialmente (…) as mudanças na
Previdência”. Esqueça as manifestações de ódio, as faixas e
cartazes em favor de “intervenção militar”, a celebração do
decreto que estimula a população a usar fuzis, os ataques a
Marielle, o apoio ao governador que participa de raids no
“caveirão voador”. Os atos de ontem – desculpe se você não
percebeu – foram ações de nobres britânicos em defesa da “mão
invisível do mercado” e da Teoria das Vantagens Comparativas…
Ao
tentar capturar o ato dos protofascistas, a direita “civilizada”
flerta com eles. Dá-lhes legitimidade. Trata-os como tropa de
choque submissa e servil. Repete a operação que levou à eleição
de Bolsonaro. É sintomático: os atos de domingo foram tratados
como o fato político crucial. Ocuparam, por dias, as manchetes.
Mesmo quando contrárias, as notícias ajudavam a divulgá-los. Em
contrapartida, a mídia só enxergou o s protestos de 15/5 quando
emergiram nas ruas – e nada fala sobre os preparativos para 30/5.
Há,
agora, inclusive uma sofisticação. As TVs, sites e jornais visam o
deputado Rodrigo Maia. Mandam-lhe um recado quase explícito: é
preciso passar por cima dos ritos e aprovar logo a contrarreforma da
Previdência. As “ruas” estão alertas e é fácil jogar alguém
às feras…
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Esta
história de hipocrisias e capturas poderia sugerir que não há
alternativas, para a esquerda. Tudo estaria controlado. Ou os
ultracapitalistas, ou os protofascistas, ou ambos juntos, uns
capturando (e legitimando) os outros.
Tal
impressão é falsa. A própria possibilidade de enxergar claramente
as diferenças entre os dois grandes blocos no governo significa que
algo se moveu; que as primeiras brechas apareceram; que é,
portanto, possível alargá-las. E entra aqui um déficit: não será
possível fazê-lo sem apresentar um ponto de ruptura; uma
alternativa; um esboço, que
seja, de uma visão sobre como tirar o país do atoleiro.
Sem
isso, a esquerda permanecerá, eternamente, entre dois fogos. Poderá
apoiar-se na direita “civilizada” para fustigar os bolsominions.
Eventualmente, talvez junte-se a gente como o general Mourão,
quando se tratar de evitar as insanidades sobre atacar a Venezuela
(compartilhadas pelos lunáticos do bolsonarismo e pela Rede Globo).
Mas permanecerá, a própria esquerda, pendendo em direção a um ou
a outro lado; sem apresentar saída de profundidade; sem dialogar
autonomamente com a população.
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Elementos
de um novo projeto incluiriam pontos simples e concretos, capazes de
estabelecer diálogo com as angústias quotidianas da sociedade e de
colocar tanto ultracapitalistas quanto protofascistas na defensiva –
e obrigá-los a responder.
Em especial,
negar a ideia perversa segundo a qual só sairemos da crise com
sacrifícios, contenção, restrições, resignação, cabeça
baixa, espinha curvada e rabo entre as pernas.
Apontar o
caminho da solidariedade – os serviços públicos, a
redistribuição de riquezas, o estímulo à atividade criadora e
produtiva, o Comum, a democracia, a Constituição de 1988.
Desdobrar estes valores em políticas específicas. A elevação da
Bolsa Família e do salário mínimo. A anulação das tarifas
bancárias. O resgate do SUS. Um vasto programa de despoluição de
rios e saneamento. Um plano de expansão de transportes públicos,
que garanta a cada brasileiro o direito de ir e vir do trabalho para
casa em 40 minutos, no máximo, no prazo de dez anos. A urbanização
democrática das periferias. A descriminalização das drogas. O
direito ao aborto e à maternidade plenamente assistida. O plano de
Desmatamento Zero para a Amazônia e o Cerrado, com desenvolvimento
de atividades econômicas que preservem sua biodiversidade. A
restauração da malha ferroviária abandonada. Etc. Etc. Etc.
O
elenco é vasto, o esforço é desafiador e instigante. Indagado
numa esquina, o cidadão comum precisa saber que, além do projeto
dos protofascistas e dos ultracapitalistas para o país, há outro:
popular, igualitário, distributivo, humanizador, feminista,
pós-desenvolvimentista. Está na hora de ir além do negativismo e
do reativismo.
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