Reginauro Silva nasceu em Almenara, mas morou mais de 40 anos em Montes Claros. Foi jornalista, escritor/cronista e blogueiro. Régis, como é conhecido pelos parentes e amigos, faleceu, aos 62 anos, nesta segunda-feira, 21.05.12, em Montes Claros, tendo sofrido um ataque cardíaco.
O Blog do Banu faz uma homenagem a este intelectual inquieto re-publicando algumas das suas crônicas que fala de sua infância e adolescência em Almenara. No final de 2009, Régis contribuiu com nosso Blog. No seu famoso blog A Província havia um link do Blog do Banu com o título: Saudades de Almenara. Embora roedor de pequi de Montes Claros, não esqueceu sua origem do Vale do Jequitinhonha.
MINHA PRIMEIRA MORTE
Reginauro Silva
Ontem amanheceu chovendo torrencialmente. Na verdade, não era uma chuva muito forte, mas como eu acabo de aprender esta palavra – torrencialmente -, então era esta a sensação vivida por este menino de 8 anos que sou eu.
A mesma coisa quando a moça do tempo da Globo diz que a temperatura em São Joaquim está 7 graus abaixo de zero, com sensação térmica de menos 17 graus.
O que explicaria a sensação de a criancinha que era eu estar com asma ou bronquite, sem estar. Pura malineza. Seria isso? Não importa esse vai e vem do tempo, pulando da chuva torrencial de Almenara para o frio congelado do Sul do país.
Relevante mesmo é dizer que tudo aconteceu por causa daquele temporal extemporâneo que mudou a paisagem da antiga Vigia do Vale desde as primeiras horas da manhã.
Na aula de Língua Pátria, dona Marli pediu para escrevermos sobre a chuva que caía lá fora, assustando aquelas pequenas criaturas do Grupo Escolar Conde D’Afonso Celso.
Escrevi bonitinho, mas, dias depois, me vi diante de uma humilhante correção de texto que jamais sairia da minha cabeça. Dona Marli passara um xis vermelho de todo tamanho sobre a palavra enchorrada, escrevendo na margem do papel almaço uma enxurrada que até hoje está arquivada aqui por dentro dos miolos.
Na volta para casa, me molhei tanto que, quando passei pela casa de Tia Mera, o próprio Tio Turíbio veio me receber com uma expressão também desconhecida por mim e que se tornaria inesquecível:
- Regin está molhado como um pintinho...
Acabaria ficando ali, brincando com os primos no depósito de cereais, enquanto dona Laura, Tia Mera, Tia Dodó e outras lavadeiras dos lajedos do Rio Jequitinhonha faziam biscoitos no puxadinho de teto cheio de goteiras e piso de terra encharcado.
É claro que todos os formatos daqueles biscoitos chamavam a atenção de nós, os meninos, mas nada encabulava tanto como aquele biscoitão enrolado em folha de bananeira que, depois de assado e desembrulhado, exibia uma cor tão indescritível como a aurora boreal.
Tenho a impressão de que as pessoas comiam aquele biscoitão mais pela cor do que pelo sabor. Cor como aquela só veria mais ou menos assemelhada nos lábios carnudos de minha penúltima namorada.
Aquele monte de bolos e biscoitos ia sendo armazenado para a festa de São João e nós só podíamos experimentar uns poucos no café da manhã, para amolecer o gosto do beiju, este sim espalhado em fartura provinciana sobre a gigantesca mesa do quintal.
De novo em casa, alojamo-nos na enorme varanda da Rua Hermano de Souza, para a tarefa diária de fazer caixas de sapato para seu Quias, o homem da sapataria onde pai trabalhava.
Vou tentar relembrar a posição em que nos encontrávamos: Seu Rebeldino de costas para a rua, cortando o papelão com uma faca tão afiada que deixava marcas em tantos quanto a manuseavam (quando não aleijados...).
Do seu lado direito, dona Laura mexia a cola e a distribuía em potinhos para Rege, Tião, Reinaura e eu, que Sueli, Vera, Toquinho e Raquel ainda não eram nascidas.
Nós quatro, emboladinhos por causa da tal sensação térmica e do vento daquela chuva torrencial lá do início, tremíamos feito vara verde a cada um dos milhões de trovões que estrondavam no céu escuro do Vale do Jequitinhonha.
Iluminando aquele salão de chão batido sem luz elétrica, um candeeiro dito fifó, com um alaranjado pavio alimentado a querosene. Não sei se nos incomodava mais a fumaça do pavio ou o cheiro do querosene. Mentira! Nós já nos acostumáramos tanto àquele aroma enegrecido que até dava vontade de lamber o candeeiro de vidro. Como lambíamos, de quando em vez, pra ninguém ver.
Foi tudo muito rápido.
Coisa de um milionésimo de milésimo de segundo.
Um clarão enorme que jamais veria em qualquer outro lugar do mundo cegou todo mundo e... uma explosão medonha parece que balançou as paredes de adobe e enchimento, rasgando o corredor e jogando longe a porta da cozinha.
Medo total. Todo mundo mudo. Olhos esbugalhados. Suor frio, cena congelada.
Tic... tic... tac... o barulho assustado da chuva . O coração batendo acelerado por dentro. Quase saindo do peito.
O raio passou por todos nós e foi abrir uma cratera no meio do chiqueiro, estraçalhando todos os porcos e indo parar lá no Japão.
Foi a primeira vez que morri de verdade.
Publicado no Blog do Banu em 07.12.2009
Ontem amanheceu chovendo torrencialmente. Na verdade, não era uma chuva muito forte, mas como eu acabo de aprender esta palavra – torrencialmente -, então era esta a sensação vivida por este menino de 8 anos que sou eu.
A mesma coisa quando a moça do tempo da Globo diz que a temperatura em São Joaquim está 7 graus abaixo de zero, com sensação térmica de menos 17 graus.
O que explicaria a sensação de a criancinha que era eu estar com asma ou bronquite, sem estar. Pura malineza. Seria isso? Não importa esse vai e vem do tempo, pulando da chuva torrencial de Almenara para o frio congelado do Sul do país.
Relevante mesmo é dizer que tudo aconteceu por causa daquele temporal extemporâneo que mudou a paisagem da antiga Vigia do Vale desde as primeiras horas da manhã.
Na aula de Língua Pátria, dona Marli pediu para escrevermos sobre a chuva que caía lá fora, assustando aquelas pequenas criaturas do Grupo Escolar Conde D’Afonso Celso.
Escrevi bonitinho, mas, dias depois, me vi diante de uma humilhante correção de texto que jamais sairia da minha cabeça. Dona Marli passara um xis vermelho de todo tamanho sobre a palavra enchorrada, escrevendo na margem do papel almaço uma enxurrada que até hoje está arquivada aqui por dentro dos miolos.
Na volta para casa, me molhei tanto que, quando passei pela casa de Tia Mera, o próprio Tio Turíbio veio me receber com uma expressão também desconhecida por mim e que se tornaria inesquecível:
- Regin está molhado como um pintinho...
Acabaria ficando ali, brincando com os primos no depósito de cereais, enquanto dona Laura, Tia Mera, Tia Dodó e outras lavadeiras dos lajedos do Rio Jequitinhonha faziam biscoitos no puxadinho de teto cheio de goteiras e piso de terra encharcado.
É claro que todos os formatos daqueles biscoitos chamavam a atenção de nós, os meninos, mas nada encabulava tanto como aquele biscoitão enrolado em folha de bananeira que, depois de assado e desembrulhado, exibia uma cor tão indescritível como a aurora boreal.
Tenho a impressão de que as pessoas comiam aquele biscoitão mais pela cor do que pelo sabor. Cor como aquela só veria mais ou menos assemelhada nos lábios carnudos de minha penúltima namorada.
Aquele monte de bolos e biscoitos ia sendo armazenado para a festa de São João e nós só podíamos experimentar uns poucos no café da manhã, para amolecer o gosto do beiju, este sim espalhado em fartura provinciana sobre a gigantesca mesa do quintal.
De novo em casa, alojamo-nos na enorme varanda da Rua Hermano de Souza, para a tarefa diária de fazer caixas de sapato para seu Quias, o homem da sapataria onde pai trabalhava.
Vou tentar relembrar a posição em que nos encontrávamos: Seu Rebeldino de costas para a rua, cortando o papelão com uma faca tão afiada que deixava marcas em tantos quanto a manuseavam (quando não aleijados...).
Do seu lado direito, dona Laura mexia a cola e a distribuía em potinhos para Rege, Tião, Reinaura e eu, que Sueli, Vera, Toquinho e Raquel ainda não eram nascidas.
Nós quatro, emboladinhos por causa da tal sensação térmica e do vento daquela chuva torrencial lá do início, tremíamos feito vara verde a cada um dos milhões de trovões que estrondavam no céu escuro do Vale do Jequitinhonha.
Iluminando aquele salão de chão batido sem luz elétrica, um candeeiro dito fifó, com um alaranjado pavio alimentado a querosene. Não sei se nos incomodava mais a fumaça do pavio ou o cheiro do querosene. Mentira! Nós já nos acostumáramos tanto àquele aroma enegrecido que até dava vontade de lamber o candeeiro de vidro. Como lambíamos, de quando em vez, pra ninguém ver.
Foi tudo muito rápido.
Coisa de um milionésimo de milésimo de segundo.
Um clarão enorme que jamais veria em qualquer outro lugar do mundo cegou todo mundo e... uma explosão medonha parece que balançou as paredes de adobe e enchimento, rasgando o corredor e jogando longe a porta da cozinha.
Medo total. Todo mundo mudo. Olhos esbugalhados. Suor frio, cena congelada.
Tic... tic... tac... o barulho assustado da chuva . O coração batendo acelerado por dentro. Quase saindo do peito.
O raio passou por todos nós e foi abrir uma cratera no meio do chiqueiro, estraçalhando todos os porcos e indo parar lá no Japão.
Foi a primeira vez que morri de verdade.
Publicado no Blog do Banu em 07.12.2009
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