Discussão do PPAG expõe contrastes na agricultura familiar e reforça necessidade de sintonia do governo com a população.
ARLAN FRANÇA
A chegada da chuva em Itaobim (Vale do Jequitinhonha) no final da última sexta-feira (20/10/17), após mais de seis meses de uma seca castigante, como já é rotina na região, foi bastante comemorada nos instantes finais do encontro regional da Discussão Participativa do Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG) 2016-2019 – Revisão para 2018.
Na véspera, ainda tímida, uma garoa fina por apenas dois ou três minutos no início da noite, na zona rural do município, também conhecido como a “Terra da Manga”, já havia pedido licença para renovar as esperanças do sertanejo em uma trégua com a seca. A estiagem, pior a cada ano, compromete o futuro de milhares de agricultores familiares.
Discussões como a promovida pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) em Itaobim são importantes porque dão voz à sociedade para que sugira mudanças em programas e ações do Governo do Estado.
O objetivo, para simplificar, é diminuir o abismo que separa agricultores familiares como Lodília Mendes dos Santos, a Dona Lodilha, e Lourivaldo Pereira da Silva, o Seu Loura. Separados por apenas alguns quilômetros, nos dois lados da BR-367, a realidade vivida por eles mostra como o acesso à água, um dos desafios do PPAG, traça uma fronteira entre viver e sobreviver, entre dignidade e miséria.
Chuva - Moradores da zona rural de Itaobim, Dona Lodilha e Seu Loura percebem a volta da chuva de forma diferente. A primeira com desconfiança; o segundo, com otimismo.
A água que escorre pelo solo tem destino incerto na propriedade da agricultora no Assentamento Belo Vista, que, com a ajuda de um trator do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itaobim, construiu um barramento, espécie de cratera na parte alta do terreno, com o objetivo de tentar acumular água.
Feito às pressas poucos dias antes, o barramento só deve ser uma fonte de água na segunda temporada chuvosa, depois que ela se infiltrar mais profundamente no solo, se a chuva for consistente até março.
A cerca de dez quilômetros dali, a chuva também cai no leito do Rio Jequitinhonha, que já viu dias melhores – apesar de ainda largo e imponente, é quase uma lâmina d’água, com apenas um palmo de profundidade nos trechos mais assoreados. Mas dez quilômetros, no caso de Dona Lodilha, é longe demais.
“A luta aqui é só pra quem tem coragem. Quem não tem coragem não fica, não”, avisa Dona Lodilha, que, aos 60 anos, mora com os filhos no lote 10 do assentamento. Ao todo, 40 famílias estão no local desde 2012, quando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) regularizou a situação do acampamento.
A terra veio, mas a água, só de caminhão-pipa, uma vez por semana, ou da chuva, sabe-se lá quando. “A chuva é só num ano ou no outro. Se for esperar a água da chuva, a gente morre de sede”, sentencia.
Irrigação - Na outra ponta, a mesma chuva que cai no Rio Jequitinhonha vai garantir mais produtividade para as terras de Seu Loura, que, com muita dificuldade e algum apoio, conseguiu construir há dois anos um sistema de irrigação, ainda que rudimentar. Antes, mesmo com sua propriedade às margens do rio, ele também passava por dificuldades, como Dona Lodilha.
“Antes da água, a gente não podia nem plantar. Se plantava, não colhia”, conta Seu Loura, 75 anos. “A gente cortava esse mato e plantava em volta daquelas coivaras (método em que se põe fogo nos montes de vegetação cortada para adubar o terreno com as cinzas) e, ainda assim, não colhia porque não tinha chuva. Mas isso mudou depois que a gente pôs essa água”, conta.
Não à toa, a Discussão Participativa do PPAG pelo interior está sendo focada em dois temas: Água e Agricultura Familiar. No Vale do Jequitinhonha, tanto o agricultor que tem, quanto aquele que não tem, sabe que água vale ouro.
“Com água dá pra fazer, mas sem água, a gente não faz nada”, diz Seu Loura. “Se tem água, aqui a gente tem tudo. Nós temos uma riqueza nas mãos, mas sem água não temos nada. Sem água não podemos viver”, afirma Dona Lodilha.
Em vez de plantação, colher de pau e vasos de argila
A batida incessante do facão entalhando pedaços de madeira mostra bem que não há tempo a perder quando o assunto é sobreviver.
Enquanto Dona Lodilha contava parte da sua história, seus filhos e outros familiares cuidavam de fabricar colheres de pau, exemplar do tradicional artesanato do Vale do Jequitinhonha vendido ao preço médio de R$ 5, o que garante precariamente o sustento de muitas famílias enquanto a chuva não vem.
Dona Lodilha e uma filha também moldam e cozem (queimam em forno) todos os dias vasilhas de argila para vender entre R$ 6 e R$ 10 a intermediários que vão ganhar muito mais comercializando os produtos em outros locais. “Como fazer as coisas sem ter água? Se dependesse só da agricultura, a gente estava morto. A gente tira essa madeirinha e faz essa colherinha pra poder sobreviver”, diz.
A história de Dona Lodilha começou muito antes, em 2007, quando ela, o marido e os filhos foram se juntar naquele local a um acampamento de barracas de lona do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), depois assumido pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (Fetaemg).
“Nós sofremos. A gente morava na mata, não era isso que vocês estão vendo agora, não. Só tinha essa estrada aqui. A gente fez um barraco de lona e começou a morar. Nessa época tinha 105 famílias. Depois foi baixando porque o pessoal não aguentou”, conta.
Terra boa - O rosto da matriarca só se ilumina com um sorriso quando o assunto é o pedaço de terra de onde ela espera um dia tirar o sustento da família o ano todo, sem sobressaltos.
“O Incra comprou essa terra e deu pra nós. Antes era a luz, aí a luz chegou. Agora está faltando a água. Se a água chegar aqui, aí teremos tudo. Podemos fazer nossa plantação, o que for. Aqui a terra é muito boa. Se tivesse água para todo mundo, era bom. Você planta um pé de qualquer coisa e ele dá”, garante Dona Lodilha.
Feijão, abóbora, mandioca, milho e até melancia já brotaram nas terras de Dona Lodilha. “Ninguém está vendo porque não tem chuva”, justifica, diante do espanto por já ter colhido melancias naquele solo seco e endurecido. Jurema (espécie de leguminosa), palma (um cacto) para alimentar o gado (e, às vezes, pessoas) e cabaça para fazer artesanato também são opções mais resistentes.
Enquanto não chove para encher a cisterna (reservatório de captação da água que cai nos telhados), água para beber, cozinhar ou tomar banho, só a do caminhão-pipa, como era na época do acampamento de lona. Para lavar roupa, só caminhando dez quilômetros até o Rio Jequitinhonha.
Saúde - Em meio à seca no Vale do Jequitinhonha, a morte vira rotina e o luto, um luxo. Há pouco mais de um ano, Dona Lodilha perdeu o marido, Zemar, vítima de câncer no intestino, e, recentemente, uma neta. “Foi problema com essa doença de cachorro (leishmaniose). Faz um mês que ela morreu e já tem outra neta minha com a mesma doença”, resigna-se.
Nas contas dela também estão os filhos que morreram. “Foram 13, morreram quatro e ficaram nove. Morria assim, né, um com quatro anos, outro com seis dias, outro com nove dias...” Depois da água, atendimento em saúde é a principal reivindicação no Assentamento Bela Vista.
Do marido, ficou a lembrança de dois salmos da Bíblia pintados em um pedaço de madeira usado como janela em um dos casebres erguidos no terreno, assinados por Zemar, "um servo de Deus".
Ambos resumem bem um pouco da vida da família e vizinhos de Dona Lodilha, que, sem a ajuda dos homens, apelam para uma instância superior. “Há muitas casas para o homem que teme a Deus e ama e obedece ao Senhor, andando sempre em seu caminho (Salmo 128)” e “Esperarei com confiança pela ajuda. Ele se inclinou para mim e ouviu meu clamor (Salmo 40)”.
Água acabou com a sequidão e trouxe o verde de volta
Com propriedades de tamanho similar, em torno de 40 hectares, e com pouco apoio do poder público, a localização próxima a uma fonte perene de água fez toda a diferença para o sucesso recente de Seu Loura.
O terreno pertencente a três irmãos foi herdado dos pais e dá fundo para o Rio Jequitinhonha, o que facilitou a implantação de um sistema de irrigação simples, que funciona apenas no período noturno, que é mais barato. O custo do empreendimento foi cerca de R$ 40 mil, metade do valor obtido por meio de um empréstimo do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).
Isso não quer dizer que tudo foi fácil para Seu Loura. "Tirei esses R$ 20 mil e rendeu para começar um pouquinho, porque só o transformador foi R$ 14,5 mil. O resto eu tirei do ‘aposento’ (aposentadoria como trabalhador rural) e comendo mais pouco, se não eu não tinha isso", conta.
Com a ajuda do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itaobim, o mesmo que pressionou pela regularização das terras de Dona Lodilha, Seu Loura conseguiu que técnicos da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater) fizessem o projeto do sistema de irrigação em dois hectares.
Funcionamento - O tal transformador citado por Seu Loura garante energia para a bomba que tira água do Rio Jequitinhonha, que é então distribuída pelo terreno por uma rede de canos e aspersores.
Nos fundos da propriedade, uma pequena lagoa ainda guarda um pouco da água que caiu na última temporada chuvosa e, além de saciar a sede de algumas cabeças de gado, pode ser usada na plantação em caso de emergência.
Apesar dos cabelos brancos, Seu Loura já consegue tirar os olhos do hoje e pensar no amanhã. “Só não ganho mais do que a aposentadoria porque eu não aguento. Se eu fosse novo, a aposentadoria ficava pra trás. Mas com 75 anos eu tô fazendo muito, né”, conta.
Mas ele sabe que é a exceção à regra na agricultura familiar do Vale do Jequitinhonha e cobra mais ajuda do poder público para que todos tenham o que ele já conseguiu. “A pessoa não faz um serviço desses porque não tem condição. O que precisa é água pra todo mundo ter uma coisinha, porque, se um tem e outro não tem, eu não fico satisfeito”, diz.
Sindicalista prega soluções simples para problemas complexos
Chegada da chuva é festejada em encontro de Itaobim
Coube ao presidente da Comissão de Participação Popular da ALMG, deputado Doutor Jean Freire (PT), que coordenou o encontro de revisão do PPAG em Itaobim, comandar também as comemorações pela chegada da chuva à região.
Natural da cidade, ele sabe bem que o fato merecia uma reverência, quebrando o protocolo. Não chegou a ser uma dança da chuva, mas uma salva de palmas, seguidas de muitas fotos com os presentes para registrar a alegria do momento.
A expectativa é de que, com a benção da chuva, as discussões promovidas na cidade rendam bons frutos na forma dos programas e ações previstos no PPAG. O plano organiza os programas e ações que o governo estadual pretende desenvolver no período de quatro anos. Ele traz metas físicas e orçamentárias e as regiões a serem beneficiadas. E, por ser um plano de médio prazo, passa por revisões anuais que buscam torná-lo compatível com a Lei Orçamentária Anual.
A proposta de revisão do PPAG 2016-2019 para o exercício 2018 está contida no Projeto de Lei (PL) 4.665/17, de autoria do governador Fernando Pimentel, que já tramita na ALMG. As sugestões colhidas durante a revisão participativa serão recebidas pela Comissão de Participação Popular e podem ser transformadas em propostas de ação legislativa (PLEs), podendo ainda dar origem a emendas ao PPAG e ao Orçamento do Estado ou a pedidos de providências ao poder público.
O deputado Doutor Jean Freire reforça o protagonismo da sociedade nesse processo. "Quando reunimos as pessoas, elas vão dizer o que mais precisam. Nada mais democrático do que as pessoas definirem para onde vão os recursos e vigiar se estão sendo bem usados. Sabemos que nem tudo o que for decidido aqui se transformará em realidade, mas já é um primeiro passo", pondera.
Próximos passos - Após os encontros de Governador Valadares e Itaobim, haverá mais um evento de Discussão Participativa do PPAG no interior do Estado. Será no dia 10 de novembro, em Montes Claros, no Norte de Minas, outra região castigada pela crise hídrica.
As regiões Norte, Nordeste e Leste do Estado foram escolhidas para sediar os encontros regionais porque, além de conviver há alguns anos com a seca, têm o maior número de famílias do campo socialmente vulneráveis e com dificuldades de acesso a programas de fortalecimento da agricultura familiar.
Entre os dias 30 de outubro e 9 de novembro, haverá um encontro estadual, com as discussões ampliadas, na sede da ALMG, em Belo Horizonte.
Fonte: Assessoria de Comunicação da Assembléia Legislativa de Minas
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