segunda-feira, 1 de maio de 2017

Belchior: Muito mais que um rapaz latino-americano


Belchior não nos deixou. Ele é eterno. Não era apenas um rapaz latino-americano. Ele nos marcou como um poeta que cantou as nossas angústias e questionou nossos sonhos, que muitos amam o passado, negamos velhos preconceitos, mas seremos como “Nossos Pais”. Mesmo assim, "o novo sempre vem".

Hoje, 30.04, domingo, de manhã, junto com minha filha, Ana Lua, ouvíamos Belchior, repertório que ela escolheu. Comentávamos como suas canções atravessavam gerações. Nós dois, com diferença de 40 anos, curtindo e nos deliciando com suas mensagens  poéticas, provocantes, crônicas, irônicas, cortantes, instigantes.

De repente, mexendo no celular, ela, assustada, lê e quase sem querer, me diz: "Pai, Belchior morreu, esta madrugada". Engasguei. Já tinha colocado o prato pra hora do almoço. Fiquei calado, ela também.  Chorei baixinho, triste.

Fiquei pensando e assustado, como se ele não pudesse morrer, pois Belchior seria imortal.

Parece lugar comum, mas não é. Belchior marcou profundamente os jovens da década de 70, como eu.  Colocou um dedo nas feridas dos dramas existenciais de uma juventude que lutava contra a ditadura militar, que vivia experiências da “amizade colorida”, de mudanças de comportamento interpessoais, de transformações sociais, de projetar, sonhar e forjar o novo.

Cantava os dramas de “um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior”. Tocava nossos corações de forma crua e direta. Nos  cutucava com a música “Hora do Almoço”, vencedora do 4º Festival Universitário da MPB, dizendo:
No centro da sala, diante da mesa/No fundo do prato comida e tristeza
A gente se olha, se toca e se cala/E se desentende no instante em que fala
Medo, medo, medo, medo, medo, medo/Cada um guarda mais o seu segredo,
A sua mão fechada, a sua boca aberta,/O seu peito deserto, a sua mão parada,
Lacrada, selada, molhada de medo/Pai na cabeceira, é hora do almoço
Minha mãe me chama, é hora do almoço/ Minha irmã mais nova, negra cabeleira.
Minha avó me reclama: "É hora do almoço!".

Falava dos dramas familiares e das peias que nos amarravam, e, ao mesmo tempo, nos dava base para avançar nos sonhos de liberdade. E apresenta estranhamento, do fatalismo e da cobrança de compromissos com o statuo quo: “estes casos de família e de dinheiro eu nunca entendi bem”.

Belchior usava asas para voar e pra sonhar. Mas, se segurava nas raízes. Registrava uma vida feliz e idílica no interior de Sobral, do Ceará, como nós do Vale do Jequitinhonha. Na música “Galos, noites e quintais”, Belchior canta: 
Eu era alegre como um rio / Um bicho, um bando de pardais / Como um galo, quando havia/Quando havia galos, noites e quintais”.

O romantismo está presente em diversas canções, mas tornou-se muito conhecido com a música "Mucuripe", gravado por Elis Regina, Fagner e Roberto Carlos:
"As velas do Mucuripe vão sair para pescar/Vou mandar as minhas mágoas pras águas fundas do mar/Hoje à noite namorar/ sem ter medo da saudade/Sem vontade de casar/
Calça nova de riscado/Paletó de linho branco/Que até o mês passado
Lá no campo inda era flor/Sob o meu chapéu quebrado/Um sorriso ingênuo e franco/
De um rapaz novo encantado/Com vinte anos de amor/
Aquela estrela é dela/Vida, vento, vela, leva-me daqui".


Em “Coração Selvagem”, Belchior fala de pressa em viver, da juventude ansiosa dos seus tempos:
“O meu som, e a minha fúria e essa pressa de viver/ E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza/ E arriscar tudo de novo com paixão/Andar caminho errado pela simples alegria de ser/Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo.”

Como ninguém, falou dos jovens que vinham do interior e seus constrangimentos e estranhamentos na grande cidade:
´Em cada esquina que eu passava/um guarda me parava, pedia os meus documentos e depois/sorria, examinando o três-por-quatro da fotografia/e estranhando o nome do lugar de onde eu vinha./Pois o que pesa no norte, pela lei da gravidade/ disso Newton já sabia! Cai no sul grande cidade”, em Fotografia 3 x 4.

E completou, apontando uma identidade juvenil:
A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia/ e pela dor eu descobri o poder da alegria
e a certeza de que tenho coisas novas/coisas novas pra dizer/a minha história é talvez igual a tua, jovem que desceu do norte / que no sul viveu na rua/ e que andou desnorteado, como é comum no seu tempo/ e que ficou desapontado, como é comum no seu tempo/ e que ficou apaixonado e violento como, como você/ Eu sou como você”.

E se disse alucinado com o mundo urbano, em Alucinação:
" Eu não estou interessado em nenhuma teoria/ ............
.A minha alucinação é suportar o dia-a-dia/ E meu delírio é a experiência com coisas reais “. 
E concluía:
“Amar e mudar as coisas me interessa mais".

Um dos temas que mais incomodaram Belchior e a juventude da década de 70 era a construção do novo com uma forte negação do velho modo de viver. Foi uma geração que lutava contra a ditadura e por liberdades democráticas, ao mesmo tempo que experimentava comportamentos libertários nas relações pessoais.

Belchior falava de mudanças, do novo enrustido com o velho e a repetição de modos de viver, com uma necessidade permanente de rejuvenescer, em Velha Roupa Colorida:
 Você não sente nem vê / Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo 
Que uma nova mudança em breve vai acontecer / E o que há algum tempo era jovem novo / Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer”.

E é taxativo
“No presente a mente, o corpo é diferente /E o passado é uma roupa que não nos serve mais “.

E ainda afirma que pouco mudou, que vivemos "Como nossos pais":
“ Minha dor é perceber/ Que apesar de termos feito/ Tudo, tudo, tudo, tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos/  Como nossos pais.
Nossos ídolos ainda são os mesmos/ E as aparências, as aparências não enganam  não
Você diz que depois deles / Não apareceu mais ninguém.
Você pode até dizer que eu estou por fora/ Ou então que eu estou enganando
Mas é você que ama o passado e que não vê/ Que o novo sempre vem”.

Mas, a música que mais me tocou e , de certa forma, foi o meu hino, é A Palo Seco:
Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava

De olhos abertos lhe direi
Amigo eu me desesperava

Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 76
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente eu grito em português

Tenho 25 anos de sonho, de sangue
E de América do Sul
Por força deste destino
Um tango argentino
Me vai bem melhor que um blues
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 76
E eu quero é que esse canto torto feito faca
Corte a carne de vocês (2x)






Nenhum comentário:

Postar um comentário