quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Crônica de Reginauro Silva

O DIA EM QUE VERA CAIU
Reginauro Silva
Ontem foi comemorado o segundo ano de nascimento do meu sobrinho Júlio, por parte do pai Cláudio César, que vem a ser filho de Reginalva, minha irmã universal que hoje mora em Portugal e amanhã poderá estar nos Estados Unidos. Ou na Grécia. Rege (com e, porque com i sou eu) é primogênita de dona Laura, viúva de seu Rebeldino, e fiquemos aqui na reposição da árvore genealógica.
Nesse minimundo de Almenara de 1958, enquanto seu Rebelde bate prego no solado de mais um sapato moldado à mão e concebido com a ajuda do pé-de-ferro, dona Laura lava e passa para sustentar os quatro bruguelos que somos nós.
Nossa, é um mundão de roupas! A impressão é de que todas as famílias ricas de Vigia, atalaia avançada do Vale do Jequitinhonha, mandam suas peças todo dia, para dona Laura lavar, esfregar e torcer no lajedo do Velho Jequi; enxugar nos varais do quintal de abóboras, mangueiras, saruês, bananeiras, privada seca e galinhas; e passar na imensa mesa do alpendre que, em meados do ano, se transforma em bancada para a confecção de bolos e biscoitos de São João.
Enxuta a roupalha, aí é que entram os pirralhos Regi, Tião, Reinaura (ou Gachinha) e este Degas aqui.
O ferro é de brasa, do tamanho de um sapato 54, a tampa tão pesada que exige o esforço de dois meninos para abrir, geralmente Rege e Tião. A brasa é produzida a partir de uma montanha de carvão que acumulamos durante a seca e que ensopa toda nas aguadas, mas aí já é outro drama...
Revezando-nos em dupla, usamos toda a força muscular para fazer subir e descer este fole enorme, que vomita ventania sobre os tocos de madeira queimada, até transformar tudo em brasa. Não vou contar a dor que sinto quando, distraído, piso num carvão em fogo desses aqui, porque seria pedir muito sua condolência. E eu não gosto que ninguém tenha dó de mim.
O certo é que, em dia de passamento de roupas como hoje, andamos à Saci, pulando com um pé só - o outro dilacerado por uma brasa -, ou assoprando as mãos por motivo idem.
É claro que, para passar a limpo todas as vestimentas de Almenara, mãe Laura não tem tempo para outra coisa, muito menos olha recém-nascida. Quando não estou no fole, minha missão é segurar Vera, a quinta herdeira da fortuna dos Silva Rodrigues de Souza Gomes, da Capitania Hereditária de Pedra Grande e Pedra Azul.
- Depois que ela mamar, suspenda com a cabeça pra cima, na altura do ombro, e espere uns quinze minutos...
Foi esta a orientação que recebi de Rege para olhar Vera sempre que ela acabava de mamar. Faço tudo direitinho, cuidadoso como sou, e só a colocarei de novo no catre quando sentir aquele azedume subir pelos ares e o grunhido da maninha zunir a orelha do pequeno babá de 8 anos que tenho neste ano de primeira Copa do mundo vencida pelo Brasil e estrelada por outro menino, só que com que o dobro da minha idade: Pelé.
Não sei se foi a sofreguidão da ferida de brasa na palma da mão ou se foi vacilo mesmo. O certo é que desci os três degraus do batente com a sensação de que estavam mais leves os retalhos de pano que eu balançava suavemente no lado esquerdo do pescoço, sobre o peito e o tórax.
Quando me viu descendo a escadinha e a pequenina Vera estirada lá no chão, atrás dos meus calcanhares, Reinaura deu um berro tão grande que fez estatelar todos os olhos que acudiram vindos de toda parte da casa. Assustado, virei-me de relance e, só então, percebi que aquele pavor era pelo fato de eu ter deixado minha irmãzinha despencar-se no chão batido, ficando só os paninhos nas mãos. E como nenhum choro, nenhum grunhido, nenhum lamento advinha daquele corpinho inerte, tremi feito vara verde (ou seria Vera verde?) ao sentir que cometera o primeiro infanticídio de minha vida.
Mas, passado meio século, Vera está sã e salva, quietinha como naquele ano de Copa.

Até hoje não chora por nada deste mundo.Graças a Deus.
Reginauro Silva é cronista, jornalista. É de Almenara, mora em Montes Claros. Publica o http://reginauro.blogspot.com/ . Todas as terça-feiras escreve neste Blog.

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