Retrato de Teresa Pinheiro
Psicanalista trabalha com o tema desde que atendeu jovens com depressão nos anos 80
Se, durante o século XIX e começo do XX, a histeria era a forma mais evidente de sofrimento, no século XXI esse espaço foi tomado pela depressão.
Expressa na ausência de vontade e de projetos futuros, não é exagero chamá-la de epidemia. Em 2000, um relatório da Organização Mundial da Saúde já previa que 15% da força de trabalho mundial abandonaria seus postos por motivos relacionados à doença.
No Brasil, o número de quadros depressivos cresceu impressionantes 705% em 16 anos. O problema atinge principalmente a juventude.
Já em meados dos anos 80, a psicanalista e pesquisadora do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade da UFRJ, Teresa Pinheiro, 61 anos, viu o seu consultório ficar repleto de jovens deprimidos. Por telefone, a carioca conversou com Carta Educação sobre as raízes do problema na sociedade de consumo, na mudança da relação da sociedade com o tempo e sobre a importância de retomar o sentido do papel social como forma de combatê-la.
Carta Educação: Como podemos definir a depressão? Qual é a diferença, o limite, entre tristeza e depressão?
Teresa Pinheiro: Comparar com a tristeza facilita. A tristeza é um sentimento que você tem em razão de uma coisa muito objetiva: perder alguém, não poder realizar algum projeto que gostaria muito, se decepcionar com algo etc. A tristeza é uma coisa localizável, há um objeto que gera esse sentimento de tristeza. O que chamamos de depressão é algo mais ligado ao não desejo, não a um fato objetivo, mas a alguma coisa de um sentimento de não vontade, se a gente puder dizer assim. Não tenho vontade de nada, a vida parece não ter mais nenhum colorido, não há nada que atraia. São as depressões mais graves. As depressões não precisam ser tão graves, mas podem simplesmente estar expressas nessa ausência de projetos futuros e na ausência de vontade.
CE: A senhora escreveu no artigo “Depressão na contemporaneidade” que, se a histeria foi o modo de sofrimento mais evidente no fim do século XIX e início do XX, a depressão é, sem dúvida, a marca mais pregnante do fim do século XX e do nascimento do século XXI. A frase conversa com dados do Datasus, que revelam que o número de mortes relacionadas com a depressão aumentou 705% em 16 anos. Por que a depressão tornou-se o modo de sofrimento mais evidente no século XXI?
TP:  Acho que cada época, cada cultura, produz os seus sintomas. Quando a sexualidade era muito cheia de tabus e proibições, evidentemente que a histeria virou uma coisa prevalente, porque era o sintoma que de alguma maneira ia contra isso e apontava para a sexualidade. Tenho impressão que a depressão não é diferente. Ela é uma expressão de resistência a uma sociedade de consumo, a uma sociedade voltada para as performances: o homem de sucesso, o homem que é capaz de brilhar na sua carreira, quando tudo vira um grande acontecimento. E, por outro lado, o mundo dava referências muito estáveis para as pessoas. Você até poderia ir contra essas referências, mas existiam normas do que eram um bom pai, um bom filho, um bom trabalhador, o que era uma pessoa de bem, que hoje não se usa mais. Existiam referenciais morais, e da instituição familiar, sem dúvida, que pareciam muito estáveis e eram dados de fora para dentro. Isso é o que me interessa. O mundo hoje foi demolindo essas categorias e as referências passaram a ser internas: cada um decide o que é bom e o que é mau. Isso não está mais fora do sujeito, está dentro dele. E há uma dimensão de solidão, no mundo atual, em razão disso, e a ausência da ideia de bem comum, e, além disso, para quem está trabalhando com o adolescente, há uma ideia fundamental no mundo de hoje que é a ideia de utilidade.
CEComo assim?
TP: Com a ausência do bem comum, perdeu-se a noção de que você pode ser útil para alguma coisa. Você vive só para si, não tem um papel na sociedade. Você não é útil para o outro e não tem um papel social. Essa falta de noção de utilidade deprime muito. Tanto faz se você existir ou não, tanto faz tudo. Na hora que se lançam ideias comunitárias ou de bem comum, ou que se voltam a lançar ideias de que você pode ser útil para alguma coisa ou alguém, esses quadros depressivos, não todos, mas sobretudo na adolescência, melhoram muito. Acho que as manifestações de junho de 2013, com todos os problemas e críticas, deram ao jovem uma sensação de que ele pode ser útil e lutar por algo, ele pode ter um papel na sociedade. Acho que isso tinha sido banido completamente.
CE: Como podemos relacionar a questão desse narcisismo, da rede social, a senhora acha que contribuiu para as pessoas se sentirem mais isoladas ou tristes? 
TP: Eu não gosto dessa leitura. Acho muito preconceituosa com o instrumento. Esta é a nova forma de comunicação do mundo. Se a gente disser que ela é ruim, fica parecendo que existia uma boa antes. Não é verdade. Ela tem prós e contras. O jovem não tem de estar feliz só na rede social, ele tem de parecer feliz no colégio, nas festas etc. Não é só a rede social que produz, isso é um colorido da cultura. E acho que a internet deu ao jovem uma sensação de que ele pode atravessar fronteiras e isso dá mesmo a sensação de mais companhia, ainda que isso seja frágil ou falso. Ele faz uma rede de conhecidos que vai trazer um colorido multicultural. Acho muito interessante e acho que é diferente. A grande mudança que ninguém estava preparando nesses procedimentos tecnológicos é a relação com o tempo. A relação com o tempo mudou, mudou a forma de estar no mundo. E nessa forma de estar no mundo, que virou muito imediatista, a dificuldade de construir projetos futuros para a garotada ficou muito grande. Já era difícil, quando a gente era garoto, ter projetos de futuro. Um menino de 18 anos não consegue se imaginar com 80. Com essa mudança completa na relação com o tempo, fica anda mais difícil, pois tudo é muito imediato. A dificuldade de se costurar um projeto futuro implica nas características narcísicas de uma depressão. Isso a escola tenta suprir de alguma forma: ensinar o garoto a ter um projeto, a fazer uma pesquisa que começa em março e termina em dezembro, isso vai dando uma costura no tempo que dá a possibilidade de ele se projetar no futuro.
CE: A depressão tem crescido entre os jovens brasileiros? Por quê?
TP: É um fenômeno no mundo inteiro, não só no Brasil. É importante buscar respostas para isso. Implicar a juventude nas relações sociais daria a ela uma nova maneira de estar no mundo e, sem dúvida, haveria uma melhora grande na questão da depressão. A outra coisa é a valorização extrema que se fez da aquisição de objetos.
O mundo do consumo incutiu a ideia de que você é aquilo que você tem. E isso é muito ruim. Porque, se você não tem, você não é nada.
Temos problemas de uma sociedade de consumo que quer vender e vai imprimir esse tipo de pensamento. Acho que, sobretudo, implicar o jovem como um fator fundamental na sociedade, na escola, no bairro, na rua, dar-lhe a ideia de que ele pode fazer a diferença seria fundamental. Agora, isso é difícil. O mundo não caminha para isso, mas, sim, caminha para cada vez mais fazer o jovem desacreditar em tudo. Uma das coisas mais graves que se faz, no Brasil muito especificamente, essa desqualificação do político, de que a política é uma coisa suja, desacreditada, dá a sensação ao jovem de que tanto faz, não há nada a fazer. Nada fará a diferença. Então nada mudará. Isso é um discurso muito depressivo. A sociedade está produzindo um texto de descrença, de que não há nada a ser feito, tudo é uma porcaria. Isso é terrível. O que mudaria isso é se a gente apostar que as pessoas podem fazer a diferença e o jovem, sobretudo por ser jovem, por ter gás e ter a capacidade de se apaixonar por ideias, pode fazer a diferença.
CE: O tema da depressão chamou muita atenção recentemente, até pela morte do ator Robin Willians, que era comediante e se suicidou. A depressão é levada a sério ou é minimizada pela sociedade? 
TP: A depressão, dentro da área da saúde, vem sendo levada a sério já há algum tempo. O relatório da OMS de 2000 já previa uma epidemia, em 2020, de que 15% da população deixaria de trabalhar por conta da depressão. É altíssimo. Há um alerta no mundo de que a depressão está ganhando um tamanho muito grande. Ela pode estar, muitas vezes, vinculada ao uso de drogas entorpecentes. A questão da dependência química é muito difícil, as clínicas têm um índice de sucesso baixíssimo. Não se fala nisso justamente para não desanimar ninguém, mas o índice é baixo. Mas o grosso não necessariamente está vinculado ao álcool ou a entorpecentes, mas sim a uma enorme falta de sentido para a própria vida. Acho que tem a ver com você se sentir também uma coisa descartável. Existe algo terrível na sociedade de consumo: se você é aquilo que tem, o que você pensa, o que você acredita, é reduzido a nada. É uma coisa muito pesada. Acho até que a garotada está querendo dar as costas a isso. Acho que já estamos vendo uma queda dessa curva. Tomara, porque esse não pode ser o viés, entendeu? Você ser alguma coisa e não valer nada em comparação com o que você tem.
CE: A prescrição de medicamentos para o tratamento da depressão ainda é controversa, na área da saúde, entre psicólogos e psiquiatras?
TP: É bastante controversa. Primeiro, porque se medica exageradamente, sobretudo jovens e crianças estão sendo medicados para tudo de uma maneira absurda.
Outra coisa é que os antidepressivos fizeram muito sucesso no começo porque têm algum efeito no primeiro momento. Mas depois o efeito acaba.
Eu não tenho nada contra a medicação, acho que, em determinado momento, é necessário tirar o sujeito daquele estado em que ele está. É um nível de sofrimento enorme quando a depressão é grave. Mas o antidepressivo não fará efeito sozinho. Eu não acredito nisso. Tratar da depressão é difícil, mas lançar mão só do medicamento é inócuo. Acho que isso faz parte do imediatismo, da relação com o tempo e da sociedade do consumo. Se tomar um remédio me fizer sentir melhor amanhã, eu prefiro isso do que qualquer outra coisa. Só que acaba não dando certo. É muito complicado.
CEA senhora acha que, hoje, existe um certo medo do sofrimento? 
TP: Acho que sim. Mas não tenho dúvidas de que ninguém gosta de sofrer. Ninguém suporta a tristeza, por exemplo. Existe uma coisa de baixa tolerância à tristeza, de uma cultura de que a pior coisa do mundo é ficar ou ser triste. Porque a gente vem de uma cultura anterior em que o bonito era ser triste: as heroínas da ficção do início do século XX sofriam loucamente por amor. Isso a garotada não quer mais e eu acho que eles têm razão. Os jovens de hoje não têm nenhum apreço à ideia do sofrimento. Mas isso não pode se tornar uma baixa tolerância ao sofrimento, porque a gente vai sofrer. Não tem como passar pela vida sem sofrer.
CE: Esse jovem de classe média, que é mais protegido pela família ou pela escola, a senhora acha que tal comportamento contribui para essa baixa tolerância? 
TP: Sem dúvida, é uma coisa terrível. O medo que os pais têm da possibilidade de que seus filhos possam sofrer é uma coisa que dá a sensação à criança ou ao adolescente de que ele não suportará sofrer. É uma coisa tão ruim e os pais poupam os filhos de tal ordem, que, se eles tiverem de passar por isso, não vão aguentar. Quando você aceita que seu filho sofra, você dá a ele a credibilidade de que pode passar por aquilo, de que é possível suportar, ele não é feito de açúcar e não vai desmanchar. Ele vai sofrer, mas vai superar, aprender com aquilo e sair dessa situação melhor, sofrer faz parte da vida.
CEComo trabalhar o tema da depressão na escola?
TP: Acho que a escola tem de fazer mais coisas em grupo com seus alunos, que se mobilizem turmas inteiras e não apenas três ou quatro que tenham mais gás. Somos seres de sociedade e o terrível é que a sociedade de consumo, do sucesso, que exclui o perdedor, é uma sociedade em que não existem grupos. Mas isso faz parte da necessidade afetiva. A escola tem um papel fundamental e pode fazer isso de uma maneira incrível: implicar os alunos em coisas para eles mesmos.
Fonte: Revista Carta Capital, em 03.10.2014.