Vai, ano velho!
Affonso Romano Sant'Anna Vai, ano velho, vai de vez,
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um,
à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.
Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum, pra trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,
a casa e o coração.
Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.
Vem, Ano Novo, vem veloz,
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nossso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso,
e sacia em nós a fome
- de utopia.
.....Vem na areia da ampulheta com a
.........semente que contivesse outra se-
.............mente que contivesse ou-
.................tra semente ou pérola
.....................na casca da ostra
..............................como se
....................................se
.............................outra se-
........................mente pudesse
................nascer do corpo e mente
.........ou do umbigo da gente como o ovo
...o Sol a gema do Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.
Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.
Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.
Entre flores de urânio
é permitido sonhar.
Affonso Romano de Sant'Anna é poeta, cronista e ensaista. Publicou diversos livros como A Mulher Madura, Que presente te dar, Intervalo Amoroso, Canibalismo amoroso, Que país é este? e outros poemas. Publica crônica todos os domingos, no jornal Estado de Minas. É de Belo Horizonte e vive no Rio de Janeiro, há 40 anos.
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