segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O SOTAQUE DAS MINEIRAS

O SOTAQUE DAS MINEIRAS
Carlos Drummond de Andrade

O sotaque das mineiras deveria ser ilegal, imoral ou engordar.
Porque, se tudo que é bom tem um desses horríveis efeitos colaterais, como éque o falar, sensual e lindo ficou de fora?
Porque, Deus, que sotaque!

Mineira devia nascer com tarja preta avisando: ouvi-la faz mal à saúde.
Se uma mineira, falando mansinho, me pedir para assinar um contratodoando tudo que tenho, sou capaz de perguntar: só isso? Assino achando que ela me faz um favor.

Eu sou suspeitíssimo. Confesso: esse sotaque me desarma.
Certa vez quase propus casamento a uma menina que me ligou por engano, só pelo sotaque.
Os mineiros têm um ódio mortal das palavras completas.
Preferem, sabe-se lá por que, abandoná-las no meio do caminho (não dizem:pode parar, dizem: "pó parar").

Os não-mineiros, ignorantes nas coisas de Minas, supõem, precipitada e levianamente, que os mineiros vivem - lingüisticamente falando – apenas de uais, trens e sôs.
Digo-lhes que não. Mineiro não fala que o sujeito é competente em tal ou qual atividade.
Fala que ele é bom de serviço.

Pouco importa que seja um juiz de direito, um jogador de futebol ou um ator de filme pornô.
Se der no couro - metaforicamente falando, claro - ele é bom de serviço.
Faz sentido...

Mineiras não usam o famosíssimo tudo bem. Sempre que duas mineiras se encontram, uma delas há de perguntar pra outra: "cê tá boa?" Para mim, isso é pleonasmo. Perguntar para uma mineira se ela tá boa é desnecessário.

Vamos supor que você esteja tendo um caso com uma mulher casada. Um amigo seu, se for mineiro, vai chegar e dizer: Mexe com isso não, sô (leia-se: sai dessa, é fria, etc).
O verbo "mexer", para os mineiros, tem os mais amplos significados. Quer dizer, por exemplo, trabalhar. Se lhe perguntarem com que você mexe, não fique ofendido. Querem saber o seu ofício.

Os mineiros também não gostam do verbo conseguir. Aqui ninguém consegue nada. Você não dá conta. Sôcê (se você) acha que não vai chegar a tempo, você liga e diz: Aqui, não vou dar conta de chegar na hora, não,sô.

Esse "aqui" é outro que só tem aqui.
É antecedente obrigatório, sob pena de punição pública, de qualquer frase. É mais usada, no entanto, quando você quer falar e não estão lhe dando muita atenção: é uma forma de dizer, "olá, me escutem, por favor". É a última instância antes de jogar um pão de queijo na cabeça do
interlocutor.

Mineiras não dizem "apaixonado por".
Dizem, sabe-se lá por que, "pêxonado com". Soa engraçado aos ouvidos forasteiros.
Ouve-se a toda hora: "Ah, eu pêxonei com ele...".
Ou: "sou doida com ele" (ele, no caso, pode ser você, um carro, um cachorro). Elas vivem apaixonadas "com" alguma coisa.

Que os mineiros não acabam as palavras, todo mundo sabe. É um tal de "bonitim", "fechadim", e por aí vai. Já me acostumei a ouvir: "E aí, vão?". Traduzo: "E aí, vamos?".

Não caia na besteira de esperar um "vamos" completo de uma mineira. Não ouvirá nunca. Eu preciso avisar à língua portuguesa que gosto muito dela, mas prefiro, com todo respeito, a mineira. Nada pessoal. Aqui certas regras não entram. São barradas pelas montanhas.

No supermercado, não faz muitas compras, ele compra "um tanto de côsa".
O supermercado não estará lotado, ele terá "um tanto de gente". Se a fila do caixa não anda, é porque está "agarrando" [aliás, "garrando"] lá na frente. Entendeu? Agarrar é agarrar, ora!

Se, saindo do supermercado, a mineirinha vir um mendigo e ficar com pena, suspirará: Ai, gente, que dó. É provável que a essa altura o leitor já esteja apaixonado pelas mineiras.

Não vem caçar confusão pro meu lado. Porque, devo dizer, mineiro não arruma briga, mineiro "caça confusão". Se você quiser dizer que tal sujeito é arruaceiro, é melhor falar, para se fazer entendido, que ele "vive caçando confusão".

Para uma mineira falar do meu desempenho sexual, o dizer que algo é muitíssimo bom vai dizer: "Ô, é sem noção". Entendeu, leitora? É sem noção! Você não tem, leitora, idéia do "tanto de bom" que é. Só não esqueça, por favor, o "Ô" no começo, porque sem ele não dá para dar noção do tanto que algo é sem noção, entendeu?

Capaz... Se você propõe algo e ela diz: capaz!!!
Vocês já ouviram esse "capaz"? É lindo.
Quer dizer o quê? Sei lá, quer dizer "ce acha que eu faço isso"? com algumas
toneladas de ironia...
Se você ameaçar casar com a Gisele Bundchen, ela dirá: "Ô dó dôcê".
Entendeu? Não? Deixa para lá.

É parecido com o "nem...". Já ouviu o "nem..."?
Completo ele fica:- Ah, nem...
O que significa? Significa, amigo leitor, que a mineira que o pronunciou não fará o que você propôs de jeito nenhum. Mas de jeito nenhum.

Você diz: "Meu amor, cê anima de comer um tropeiro no Mineirão?".
Resposta: "Nem..." Ainda não entendeu? Uai, nem é nem.

Leitor, você é meio burrinho ou é impressão?
A propósito, um mineiro não pergunta: "você não vai?".
A pergunta, mineiramente falando, seria: "cê não anima de ir"?
Tão simples. O resto do Brasil complica tudo.

É, ué, cês dão umas volta pra falar os trem...
Falando em "ei...".
As mineiras falam assim, usando, curiosamente, o "ei" no lugar do "oi".
Você liga, e elas atendem lindamente: "eiiii!!!", com muitos pontos de exclamação, a depender da saudade... Tem tantos outros...

O plural, então, é um problema. Um lindo problema, mas um problema.
Sou, não nego, suspeito. Minha inclinação é para perdoar, com louvor, os deslizes vocabulares das mineiras.

Aliás, deslizes nada. Só porque aqui a língua é outra, não quer dizer que a oficial esteja com a
razão. Se você, em conversa, falar: Ah, fui lá comprar umas coisas..
Ques côsa? - ela retrucará. O plural dá um pulo. Sai das coisas e vai para o que.

Ouvi de uma menina culta um "pelas metade", no lugar de "pela metade".
E se você acusar injustamente uma mineira, ela, chorosa, confidenciará:
Ele pôs a culpa "ni mim".

A conjugação dos verbos tem lá seus mistérios em Minas...
Ontem, uma senhora docemente me consolou: "prôcupa não, bobo!".
E meus ouvidos, já acostumados às ingênuas conjugações mineiras, nem se espantam. Talvez se espantassem se ouvissem um: "não se preocupe", ou algo assim.

A fórmula mineira é sintética. E diz tudo.
Até o "tchau" em Minas é personalizado.
Ninguém diz tchau pura e simplesmente.
Aqui se diz: "tchau procê", "tchau procês".
É útil deixar claro o destinatário do tchau.
Então..."

Um abraço bem apertado procê

Carlos Drummond de Andrade
Escritor, cronista e poeta mineiro de Itabira, o maior do país. Viveu quase toda sua vida no Rio de Janeiro, sempre falando de Minas.

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