Vício entre migrantes do campo leva crack às cidades pequenas
A dependência química entre os trabalhadores rurais - em especial canavieiros - chama atenção não só pelo vício no eito, como para o risco epidêmico da migração do crack
Por: Letícia Cruz, Rede Brasil Atual
Antes problema restrito às grandes cidades, boca de fumo já é realidade em pequenos municípios do interior do país (Foto: Marcello Casal/Agência Brasil)A dependência química entre os trabalhadores rurais - em especial canavieiros - chama atenção não só pelo vício no eito, como para o risco epidêmico da migração do crack
Por: Letícia Cruz, Rede Brasil Atual
São Paulo – Os problemas com o uso de crack e outras drogas entre migrantes nas lavouras não se encontram só no destino, nas colheitas e alojamentos. Com o vício, os trabalhadores rurais acabam por se tornar peças integrantes do círculo da disseminação das drogas até nas menores cidades do interior do país. Sem escolha, o trabalhador tem de migrar para buscar serviço por causa da falta de oportunidades no local de origem e, no retorno para a terra natal, leva consigo o crack.
Na lida da cana-de-açúcar, que apresenta grande incidência de usuários de drogas, especialmente de crack, os efeitos são perceptíveis: com grande fluxo de migrantes da cana, a região do Vale do Jequitinhonha (MG) assistiu o crescimento do tráfico de drogas aumentar em 120% entre janeiro de 2010 e setembro deste ano, segundo dados da Polícia Militar. Moradores dos pequenos municípios já convivem com realidade de violência e medo, antes não conhecida. De acordo com pesquisa feita pela Diocese de Araçuaí, a 678 quilômetros de Belo Horizonte (MG), em 2008 a região foi responsável pela migração de cerca de 100 mil trabalhadores para o corte de cana na região de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.
“Imagine comunidades pequenas do Maranhão e do Piauí, que nunca haviam lidado com isso, hoje sofrem com droga”, diz o padre Antônio Garcia Peres, coordenador da Pastoral do Migrante de Guariba, a 338 quilômetros da capital paulista. O estopim da dependência química nos canaviais representa a influência negativa da migração para as comunidades de origem, segundo ele. “Este povo vem (os trabalhadores) não porque gosta de aventura, de passear, de ficar longe de casa. É por pura e extrema necessidade. Lá (no lugar de origem) não existem condições e oportunidades para eles trabalharem no campo. Não tem escolha”, lamentou Garcia.
Aos poucos, o álcool está sendo substituído pelo crack. Pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), divulgada em novembro, em termos nacionais, revela que entre os 4,4 mil municípios objeto do trabalho, 89,4% enfrentam problemas com a circulação de drogas em seu território, enquanto 93,9% com o consumo. Acrescido à falta de controle das autoridades locais, o crack exerce maior impacto nos locais mais carentes, como os municípios do Jequitinhonha.
A reportagem da Rede Brasil Atual visitou em novembro a cidade de Guariba para ouvir relatos de canavieiros. As condições degradantes de trabalho no eito da cana-de-açúcar, somadas à remuneração baixa comparada ao esforço físico aplicado (fixo de um salário mínimo, podendo alcançar o dobro com a produção, medida por tonelada colhida) foram apontadas como principais alimentos para o vício, que pode ser visto à luz do dia. A União da Agroindústria Canavieira (Unica), rebateu as afirmações de que o vício tenha alguma relação com estímulo dos usineiros ao uso.
Maria Aparecida Moraes, professora de Sociologia da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), acredita que o vício serve como “analgésico” tanto para o trabalhador suportar a rotina extenuante de trabalho no campo como a falta de recursos das cidades. “Então, como nada é feito pelos governantes, não é segredo para ninguém que a perspectiva é de que o círculo continue”, frisa.
Elos ameaçados
Com vasta pesquisa sobre o assunto, Maria Aparecida colheu depoimentos de mães que admitiram sentir medo de que seus filhos retornassem das lavouras como dependentes químicos. "No Maranhão (um dos estados de origem destes migrantes), as mães temiam que seus filhos voltassem para casa viciados porque nas regiões do corte da cana tem muito disso", relata. Os que ficam da migração, os familiares, tocam a vida nas cidades durante todo o período da safra, aguardando o retorno dos parentes da lida.
"Eles (os trabalhadores rurais) se prendem à utopia de rever os entes queridos e de encontrar um trabalho na suas terras de origem", afirma a professora. Porém, o que chega em retorno é o caos que a droga traz, com a instalação do tráfico e das bocas de fumo. A publicação Vozes do Eito, de 2009, organizada pela Pastoral do Migrante de Guariba – livro do qual Maria participa –, traz depoimentos de canavieiros que viveram ou conviveram com essas dificuldades. Uma dessas vozes, não identificada, relata das dificuldades de lá e cá:
"Eu trabalho ao lado de um senhor de mais idade e fico observando seu esforço. Tem hora que ele geme, põe a língua pra fora e continua sua empreitada. E sabe por que ele faz tudo isso? Sua família é numerosa e ele tem uma filha que faz tratamento mental e necessita de vários remédios. Quando chove passamos muito apuro com a roupa de trabalho. A usina nos dá duas trocas de roupa e todos os dias a gente tem que lavar a que usou.
E se não seca a gente tem que por roupa úmida, pois eles não aceitam que a gente trabalhe sem o uniforme, a gente leva o gancho (suspensão temporária do trabalho). Já pensou se a gente pega gripe ou pneumonia por causa dessa exigência?
Estou me ajeitando de cortar cana crua; se a gente faz cem metros na parte da manhã, já deu para ganhar o dia, pois o valor do metro e da tonelada é maior que o da cana queimada. Volto para casa todo ralado no rosto e quebrado de canseira, mas é o jeito. Estava cortando cana e senti um estalo no peito, pensei que tivesse quebrado uma costela.
Só em casa é que fui perceber que o lado esquerdo do peito estava mais alto que o direito. O médico disse que preciso fazer cirurgia."
Publicada em: 13/12/2011
Fonte: www.redebrasilatual.com.br
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