Educação no Campo: a luta dos esquecidos
Itaobim tem sido palco de polêmica que envolve o histórico problema da educação no Vale
Por Mateus Coutinho
Desde 2004 a Escola-Família Agrícola Bontempo(EFA Bontempo), uma escola criada e administrada pelos agricultores e movimentos sociais da região e que oferece ensino médio profissionalizante, está ameaçada de ser retirada de onde ela funciona. A Fundação Brasileira de Desenvolvimento (FBD), antiga apoiadora que, dentre outras ações, cedeu o terreno para a escola, está querendo a área de volta.
O polêmico processo se encontra na justiça, com grandes chances de ocorrer o despejo da EFA Bontempo. Em meio às disputas travadas, que chegaram até o Presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, quem sai mais prejudicada é a educação no campo, tão precária no Vale do Jequitinhonha.
Relação desgastada
Itaobim é uma cidade pequena, com pouco mais de 21 mil habitantes, cuja principal atividade econômica é a agricultura, principalmente a plantação de frutas. Com quase 25% de sua população no campo, dois rios cortando a cidade, clima favorável e solo fértil a cidade tem grande potencial para a fruticultura. A fruta mais produzida e exportada na região é a Manga.
Nos 135 hectares de fazendas que a produzem são colhidas anualmente 3,5 toneladas de manga. Não é por menos que a cidade tem o apelido de “Capital Mundial da Manga” e há até a anual “Festa da Manga”, que movimenta o município todo fim de ano. A produção agrícola do município (que também exporta muita banana) é caracterizada por ser majoritariamente familiar: 92% das propriedades agrícolas de Itaobim são de agricultura familiar de pequeno porte. Foi nesse cenário que surgiu a EFA Bontempo.
Os sindicatos e movimentos sociais da região, junto com a Fundação Brasileira de Desenvolvimento (FDB), presidida pelo padre Felice Bontempi, deram início, então, à escola em 1999, em um terreno cedido pela fundação. Para a administração da EFA foi criada a AEFAMBAJE- Associação das Escolas-Família Agrícola do Baixo e Médio Jequitinhonha. Durante um tempo a AEFAMBAJE e a FBD foram parceiros e o padre Felice Bontempi foi um dos principais captadores de recursos para a EFA Bontempo, tendo conseguido dinheiro de entidades filantrópicas na Itália.
Com o tempo essa relação foi se desgastando, desde a forma como estava sendo administrada a escola até discordâncias em relação ao uso do terreno- que a fundação cedeu em regime de comodato por tempo indeterminado, isto é, ela poderia reaver o terreno quando achasse necessário- e em 2004 houve a primeira tentativa de despejo. A partir daí as disputas foram para a justiça, com pedidos de reintegração de posse seguidos de liminares para tentar evitar as ações de despejo. As repercussões foram tão grandes que a questão chegou até o presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o desembargador Cláudio Costa, que propôs uma conciliação em segunda instância.
Mas a conciliação não foi alcançada e, mesmo com a escola funcionando lá até hoje, há grandes chances de acontecer o despejo, pois a EFA está ficando sem alternativas jurídicas de defesa. “O nosso sentimento agora é realmente de apelo para que os organismos públicos compreendam que há um serviço social prestado na escola”, explica o coordenador pedagógico da Associação Mineira de Escolas-Família Agrícolas (AMEFA), Idalino Firmino dos Santos, que acompanhou todo o processo. João Pereira, Prefeito de Itaobim, que também buscou a conciliação oferecendo um terreno para a escola, lamenta que o município possa perder a única escola profissionalizante que tem: “é lamentável que chegue uma escola e ela esteja com dificuldades por motivos de briga e desentendimentos. Uma escola que vem para beneficiar a região deveria estar a todo vapor, preocupada com a formação dos jovens”.
Demanda antiga
Apesar de toda a polêmica envolvida na EFA de Itaobim e todo o desgaste que isso gerou para os envolvidos- tanto os membros da EFA quando o padre não gostam de tocar no assunto, e mesmo o prefeito evita tomar algum partido na situação- um fato é certo: A demanda da região por uma educação profissionalizante voltada para o campo é inegável.
Nesse sentido a proposta das Escolas-Família Agrícolas que foi levada para Itaobim tem sido muito importante para a região, que não conta com escolas de nível técnico ou mesmo superior: “É importante porque cada técnico que se forma está entrando no mercado de trabalho alguém qualificado”, ressalta João Pereira.
Além da formação técnica, a proposta das Escolas-Família traz uma pedagogia diferenciada, voltada para a vida de quem vive e não quer sair do campo: A pedagogia da alternância. Datada do século XIX essa pedagogia surgiu na França e na Itália quando se discutia a possibilidade da escola funcionar no meio rural, seguindo a lógica da agricultura familiar: “A família camponesa não pode prescindir todo dia de um jovem porque o trabalho camponês é um trabalho familiar e a alternância tem um diálogo muito profundo com isso”, explica Maria Isabel Antunes, professora e coordenadora do Educampo- Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação no Campo, da UFMG.
Essa metodologia chegou ao Brasil em 1968 com a primeira EFA no Espírito Santo; em 1984 surgiu a EFA de Muriaé, a primeira de Minas, e em 1999 a Bontempo foi a pioneira no Vale do Jequitinhonha. Em 1993 foi a criada a AMEFA- Associação das Escolas-Familia Agrícolas de Minas Gerais, formada por todas as EFAs do Estado e que busca, dentre outros, assessorar e representar oficialmente as Escolas-Família Agrícolas, além de prestar capacitação aos professores e funcionários dessas escolas. Atualmente existem 18 EFAs no estado, sendo 6 no Vale do Jequitinhonha.
Escola e família
Na escola Bontempo, os alunos ficam 15 dias na escola e 15 em suas casas, onde também levam exercícios para estudar. Eles pagam uma mensalidade de 35 reais para custear a alimentação de 5 refeições diárias. No tempo que ficam na escola, além dos estudos e trabalhos que realizam, têm que aprender a conviver com os outros, experiência que os alunos levam pra toda a vida: “Minha formação na EFA Bontempo foi mais que uma relação de educação profissional, a relação humana também marcou, muito, talvez até mais que a profissional”, destaca Ana Júlia Gomes, ex-aluna da Bontempo que hoje faz o curso de Licenciatura em Educação no Campo da UFMG.
Maria Isabel explica que a proposta da educação no campo é pautada em 3 princípios: O protagonismo social, a qualidade do ensino e a sustentabilidade. E quando falam da escola os ex-alunos não deixam de mencionar esses pontos. José Francisco Gomes, também ex-aluno da EFA e companheiro de curso de Ana Júlia destaca como a vivência na escola ajuda a formar pessoas mais independentes: “A EFA não procura formar jovens para o mercado, mas sim jovens que saibam caminhar com as próprias pernas. São jovens capazes de lidar com outras pessoas e se relacionar bem, sem intrigas”.
E, muito mais do que terem essa formação diferenciada, os alunos acabam criando uma ligação com a escola, que também dá capacitação para as famílias dos estudantes. “Nos entendemos aqui como sujeitos coletivos, não estamos aqui [na UFMG] em nome de uma formação particular mas em nome de um grupo, de todo um contexto de famílias, pais e estudantes”, explica Mônica Rodrigues, ex-aluna da Bontempo e companheira de turma de José e Ana Júlia na UFMG. Ela lembra que muitos alunos, mesmo depois de saírem das Escolas-Família e conseguirem uma formação superior, acabam trabalhando na AMEFA ou nas próprias EFAs que estudaram.
Carência histórica
Essa ligação forte com as Escolas-Família também é reflexo de um problema marcante nas cidades pequenas do Jequitinhonha: a necessidade de ir para a cidade grande. Muitas pessoas diante da falta de possibilidades (de estudo ou trabalho) nas cidades do interior acabam arriscando a vida indo para as cidades grandes, mas com a EFA isso pode ser diferente: “Vimos que a EFA era uma oportunidade de não fazer como os outros e ir para a capital, uns se dão bem mas a maioria não se dá bem”, destaca Nadson Francisco de Oliveira, que foi da primeira turma da Bontempo e hoje estuda na UFMG junto com os outros ex-alunos mencionados.
Um problema social e também político: “Até hoje o Brasil não conseguiu implantar uma rede escolar no campo; o que temos hoje são escolas muito precárias e ofertas no máximo de primeira a quarta série. Se o jovem quiser fazer de 5° a 8° ou Ensino Médio ele tem que deslocar para a cidade”, ressalta Maria Isabel. E não apenas o Governo Federal, mas Estado e Município também deixam muito a desejar. No caso da EFA Bontempo, por exemplo, a prefeitura doa mil Reais por mês para a escola, além de fornecer um ônibus para o transporte dos alunos. O estado de Minas Gerais, por meio da Secretaria de Estado de Educação, doa uma bolsa anual aos alunos das EFAs que neste ano ficou em R$ 2.115 por aluno. Além disso, as Escolas-Família também buscam financiamento em programas do Governo Federal.
A Bontempo atende a 23 municípios e somente Itaobim presta alguma ajuda à escola e, ainda que os apoios municipais variem de EFA para EFA, no geral as escolas são reféns das posições políticas dos prefeitos: “Acontece muito da escola ter o apoio de um gestor até o fim do mandato dele e, acabado o mandato, entra outro que, se porventura não tiver afinidade com a escola, corta todo apoio”, explica Idalino. A doação feita pelo Estado, por sua vez, foi conseguida a partir da lei 14.614, que a AMEFA e seus apoiadores batalharam para ser aprovada em 2003.
Mas a educação é uma obrigação, tanto do Governo Estadual, quanto do Municipal e do Federal, e o que se tem na educação do campo são algumas parcerias e não uma política pública definida. “É o que está na Constituição: educação é direito do povo e dever do Estado, só que na prática não é isso que acontece. Temos que ficar correndo atrás o tempo todo para garantir o mínimo de respaldo do Estado”, ressalta Mônica Rodrigues.
E assim, com algumas iniciativas do poder público e apoiadores de diversos setores da sociedade, as EFAs vão seguindo sua luta por uma educação de qualidade no campo. O caso da Bontempo mostra que a batalha pode não ser fácil, mas independente do desfecho deste episódio os “esquecidos” do Vale vão continuar sua mobilização para, quem sabe um dia a educação no campo saia do esquecimento.
Fonte: UFMG/Polo Jequitinhonha
Nenhum comentário:
Postar um comentário