quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Expedição Vale do Jequitinhonha: Vale que sai da terra

30 DE DEZEMBRO - SEXTA-FEIRA - 22:49


TERCEIRO DIA

Viagem por Carbonita, Peixe Cru, Campo Buriti e Turmalina 

Da terra vermelha do Vale saem estradas que ligam comunidades, saem autênticas obras de arte e saem moradores expulsos pelas barragens ou pela falta de oportunidades.
Um pouco de tudo isso – que aliás se repete diversas vezes por toda a região – foi o que marcou o nosso terceiro dia de Expedição pelo Vale do Jequitinhonha: 1) estrada de terra entre Carbonita e Turmalina e, mais a frente, entre a rodovia e Campo Buriti; 2) comunidade de Peixe Cru, que foi totalmente reconstruída pela CEMIG em virtude do alagamento da localidade original pela barragem da Usina de Irapé há mais de 10 anos; e 3) belíssimas produções artesanais feitas de barro pelas bravas mulheres de Campo Buriti, com destaque para a serena Dona Zezinha, que nos recebeu e cativou em seu “paraíso das artes”.
Povo que sai da terra
Comecemos o relato pela visita a Peixe Cru. Antes de entrar em Turmalina, seguimos cerca de 10km adiante até este povoado que foi totalmente reconstruído na margem da Rodovia MG-677, 16 km distante da antiga Peixe Cru - alagada pelas águas represadas da Usina de Irapé, há mais de 10 anos.
Quatro antigos moradores, que viviam na comunidade original e acompanharam todo processo de negociação, reconstrução e mudança, fizeram relatos que em certa medida confrontaram a nossa romântica suposição de que os atingidos sempre rechaçam as realocações. Segundo eles, praticamente toda a Peixe Cru acabou por apoiar a mudança, visto que a vida na antiga comunidade era muito mais sofrida, com acesso extremamente difícil a qualquer estrutura básica de saúde, educação e centro comercial. Agora, segundo o aposentado Francisco, se alguém passa mal, em cinco minutos já está em um hospital, enquanto antigamente tinham que carregar o doente em rede tal qual defunto por 12 km para chegar em um local passível de um carro buscar.
Por ironia do destino, com a estiagem dos últimos anos a represa recuou e a antiga comunidade foi desalagada. Segundo os moradores, quem vai até lá consegue ver os resquícios das construções destruídas. Como em praticamente todos locais, fomos muito bem acolhidos por esses históricos personagens – que inclusive foram retratados pelo documentário Sumidouro, de Cris Azzi.
Arte que sai da terra
Após almoçar e descansar um pouco no centro de Turmalina, fomos até Campo Buriti – 12 km de asfalto no sentido Capelinha e mais 5 km de estrada de chão - procurar pelas bonecas e outros artesanatos de barro nacionalmente conhecidos.
No povoado, visitamos inicialmente a Associação dos Artesãos de Coqueiro Campo, que reúne lindos trabalhos de barro de cerca de 40 artesãs. São bonecas, filtros, pratos, vasos, flores e objetos de decoração. Segundo a atendente Valdirene, as vendas são feitas principalmente naquela própria loja e eventualmente em feiras em outras cidades. Em certas épocas, como agora no final do ano, as vendas são boas, mas nunca suficiente para fazer com que as artesãs possam viver exclusivamente deste trabalho. Apenas uma ou outra não desempenha outro ofício para se manter.
Mas há uma artesã de Campo Buriti que depois de muitos anos de luta e de dificuldade conseguiu há alguns anos passar a se dedicar unicamente à produção artesanal. Dona Zezinha mora um pouco adiante da comunidade e tem uma casa que é muito mais do que uma casa: é um museu, um ateliê a céu aberto, uma exposição permanente e harmônica de bonecas, bichos e objetos de decoração de barros em meio a plantas, árvores e, como não podia deixar de faltar, um grande forno de barro para queima das peças.
Dona Zezinha e seu marido Ulisses nos receberam de forma tão emocionante, serena e prazerosa que mal consigo descrever. Como nos fez bem fechar o ano convivendo com uma história tão forte e inspiradora, de pessoas que enfrentaram uma infância e adolescência na roça com pouca comida, poucas perspectivas, sem luz elétrica, sem cama, mas que conseguiram através da arte – e com a reconhecida melhoria nacional a partir do final dos anos 1990 – superar as adversidades e hoje viver com tanta paz e produzindo tanta arte.
Essa virada na vida reflete-se nas vestimentas e na fisionomia das bonecas: Dona Zezinha diz levar para as bonecas muita coisa que ela gostaria de ter vestido ou usado, como um bonito vestido de renda de casamento. Quando casou com Ulisses, há 28 anos, ela não tinha sequer chinelos, e teve que pegar um vestido emprestado. Aliás, é também muito estimulante a amorosa e dedicada relação do casal: Ulisses, que no início do casamento teve que sair de casa sazonalmente para trabalhar fora, passou a ser o ‘dono da casa’, cuidado dos filhos hoje já grandes, enquanto Zezinha se dedicava à arte. Hoje, Ulisses é o responsável pela logística: é quem pega ou negocia o barro, quem põe as obras para queimar e secar e quem sabe os preços e comercializa as peças.

 Tomamos ainda um maravilhoso suco de acerola do quintal com biscoito espremido também feito por Zezinha. Não dava vontade sequer de ir embora. A paz, a serenidade, a vida, a arte daquele ambiente é cativante, mostra-nos como não é preciso de muito para conseguir alcançar seus sonhos e viver em tranquilidade.  
Fonte: OTEMPO / Blog Expedição Vale do Jequitinhonha

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