domingo, 18 de outubro de 2015

A crise é da elite

Uma crise peculiar


Dilma não é Lula e não lhe é possível, como ele, representar a convivência 
de interesses opostos. O desgaste é vertical.

Em nossa história política sempre tivemos crises. O Brasil não é exceção em relação
às democracias grandes e complexas, em que extraordinários são os momentos de
calmaria. Em todas, a vida política é caracterizada por antagonismos, conflitos e 
embates. Às vezes, por golpes e guerras. 

Nos dois períodos da história em que houve mais democracia, mais frequentes foram
as crises. Nos quase 20 anos que durou a República de 1945, vivemos inúmeras.
Em quantos países um tempo tão curto presenciou tantas coisas, do suicídio de um
presidente a um quase golpe parlamentar, de meia dúzia de quarteladas malsucedidas
a uma intervenção militar que implantou uma longa ditadura?

Após a redemocratização, as crises políticas e de imagem foram regra. Sarney só teve
tranquilidade nos breves meses de sucesso do Plano Cruzado. Collor governou pouco mais
de dois anos, em crise aguda permanente. Itamar foi questionado e ridicularizado pelos
que se diziam seus amigos, que nunca o deixaram exercer na plenitude o cargo.
Fernando Henrique enfrentou desde o início a antipatia da maioria da população,
foi tolerado por pragmatismo, enquanto parecia um competente gestor da economia,
afundou na impopularidade e termibou melancolicamente o mandato.

Seria equivocado imaginar que os períodos sem democracia foram tranquilos.
As oligarquias atravessaram a República Velha em equilíbrio instável, entrecortado
por insurreições e sublevações militares. No Estado Novo e na ditadura de 1964,
os grupos que controlavam o poder nunca foram harmônicos. Especialmente depois
de 1968, as facções militares, divididas de forma corporativa ou em torno a generais,
eram mais heterogêneas que os partidos atuais.Mais de uma vez, estiveram à beira
das chamadas vias de fato.

Excepcional foi a década de paz política iniciada em 2002, com a vitória de Lula,  e
terminada em 2012, no episódio do julgamento do "mensalão". Nesses dez anos, pela
primeira vez em nossa história, tivemos um longo período de baixa turbulência política,
em que houve apenas uma crise, ainda que grave, deflagrada pelas denúncias do
"mensalão". Mas ela foi rápida, durando menos de um semestre, findo o qual o presidente
marchou para uma reeleição consagradora e um segundo mandato aprovado quase
unanimemente.

A facilidade com que Lula venceu o desgate explica muito do que aconteceu
desde lá e ajuda a entender a especificidade da crise que Dilma Rousseff enfrenta hoje.

O primeiro efeito foi nas oposições. No Congresso e nos partidos, o sucesso de Lula teve
consequências paralisantes, ainda mais porque seu líderes nada sabiam do que era estar
fora do poder. Um pedaço expressivo do País, aquele que podia até admitir que Lula fazia
um bom governo, mas que não o quisera como candidato nem desejava a continuidade
da hegemonia petista, ficou órfão de representação.

Se as lideranças aceitavam dialogar, esses segmentos queriam enfrentamento. Em vez
da lerdeza dos políticos, tinham pressa. À "pax de Lula", reagiam com rancor. Coube
à "grande" imprensa explicitar a distância que havia entre os partidos e os sentimentos
oposicionistas difusos na sociedade. De bom grado, ela dispôs-se a ser a "verdadeira
oposição".

Em razão de seus atributos únicos, Lula conseguiu manter represados tais sentimentos
por uma década. Mas eles explodiram no começo de 2013 e foi sob seu signo que fizemos
a eleição seguinte.

Todas as nossas crises políticas até a atual, na democracia ou não, foram horizontais,
ocorrendo dentro do conjunto de categorias sociais que compõem a elite brasileira:
empresários, fazendeiros, oligarcas, militares, barões da comunicação, classes médias
abastadas, setores profissionais de prestígio etc. Em nenhuma delas o povo teve papel.
Como disse Sertório de Castro a propósito da Proclamação da República: "O povo
assistira bestializado aquelas transformações".

Dilma não é Lula e não lhe é possível representar, como ele, a convivência de interesses
opostos. A crise política que a atinge é vertical, como ficou evidente no modo como a
maioria da elite expressou seu inconformismo diante do resultado da eleição de 2014.
E não há pruridos democráticos que a detenham de tentar melar o jogo para devolver
o povo ao lugar de personagem secundário em nossa sociedade.

Marcos Coimbra na Revista CartaCapital. Marcos Coimbra é sociólogo e diretor da Vox Populi.

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