Paulo Moreira Leite, no www.brasil247.com
Pessoas honestamente comovidas com a imagem de Aylan Shenu, 3 anos, o menino que morreu afogado quando sua família tentava fugir da guerra civil da Síria para chegar a costa da Turquia, devem precaver-se contra a torrente de explicações místicas, fatalismos históricos e outras falsificações típicas dessas horas.
Quando as responsabilidades por uma tragédia vergonhosa e colossal estão aí, à vista de todos, nada mais conveniente do que procurar argumentos irracionais e obscuros para aquilo que se define com o maior colapso humanitário depois da Segunda Guerra Mundial.
A guerra civil da Síria – de onde a família de Aylan tentava escapar, numa fuga aonde também pereceram a mãe e um irmão do menino – é resultado direto de uma ação militar iniciada em 2011, pelo governo dos Estados Unidos. A operação fez parte do esforço de Washington para derrubar a ditadura de Bashar Al Assad, derrotar seus aliados russos e chineses, e tomar posse, entre outras coisas, de reservas estimadas em trilhões de barris de gás e petróleo.
Escrevendo numa conjuntura anterior aos acordos entre Teerã e Washington sobre o programa nucelar do Irã, o diplomata Luiz Alberto Moniz Bandeira explicou que "a queda do regime sírio permitiria suprimir a presença da Rússia, onde ela mantém duas bases navais, cortar as vias de suprimento de armas para as organizações pró-xiitas Hisbollah, no Líbano, e Hamas, na Palestina, conter o avanço da China sobre as fontes de petróleo, isolar completamente e estrangular o Irã." Para Moniz Bandeira, o resultado dessa intervenção seria o estabelecimento de uma situação de controle, por parte dos Estados Unidos e de seus aliados europeus, de toda área do Mediterrâneo, revertendo uma situação que se modificou com as revoltas coloniais do século XX.
Sustentando uma unidade de adversários de Assad que incluem mercenários e terroristas, até hoje os EUA Unidos mantém uma guerra que dificilmente poderá ser vencida, mas da qual não podem se retirar sob o risco de um vexame . Isso explica o morticínio gradual, que aos poucos inviabiliza o país, do qual a família Shenu procurava escapar de qualquer maneira.
Motivo de indignação internacional dias depois de uma tragédia igualmente vergonhosa -- a morte por sufocamento de 71 imigrantes eslovacos no interior de um caminhão frigorífico no interior da Áustria -- a imagem de Aylan Shenu provocou uma reação de Ângela Merkel, a chanceler alemã. "Se a Europa falhar na questão dos refugiados, essa não será a Europa que sonhamos," disse ela.
Para sair do sonho para a realidade, no entanto, não bastam medidas de caráter humanitário, por mais que sejam inteiramente justificáveis diante da situação. Não se vislumbra o que a União Europeia possa fazer a caminho de uma solução ampla e duradoura – sem colocar em questão sua política econômica de austeridade, crescimento baixo, desemprego alto.
Hoje, 26,5 milhões de europeus estão desempregados, numa taxa média que bateu em 9,6% em abril, contra 5,4% nos Estados Unidos. Na Espanha, o desemprego é de 22,5% e passou de 10% na França. Localizado na região geográfica que abriga o maior PIB e o maior mercado consumidor do planeta, o colapso europeu explica a dificuldade política para se tomar, de uma hora para outra, qualquer medida que possa ser interpretada como excessivamente generosa em relação a estrangeiros – a menos que venham a ser acompanhadas de medidas de estímulo ao crescimento capazes de responder também às necessidades dos próprios europeus.
É uma hipótese tão remota que sequer se especula a respeito – como se comprovou com o castigo imposto ao primeiro-ministro Alexis Tsripas (25% de desemprego) forçado a abandonar qualquer Europa com a qual havia sonhado diante da intransigência de Angela Merkel.
A imagem de um menino morto, de pernas brancas, magras e finas, sendo transportado por um policial, comove e dói.
Mas vamos combinar que a hipocrisia também machuca.
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