Novo Papa levanta especulações de mudanças da Igreja voltada para os pobres e países da América Latina, Ásia e África
Em Roma dizem que Bergoglio é um ponto de ruptura na história da Igreja porque corta o ciclo da Igreja eurocêntrica e abre o céu e a terra para a Igreja Universal, para a Igreja periférica que segue sendo mais fiel ao cristianismo do que as que estão nas sociedades opulentas do Ocidente. Momento de inflexão, de esperanças e também de dúvidas: o pastor pacífico e humilde que reina em Roma não se parece muito com o que lutava na Argentina contra o poder político que o incomodava.
Eduardo Febbro, na Carta Maior
Cidade do Vaticano – Jorge Bergoglio instalou seu papado com um par de gestos simples e um nome que converteu sua designação como sumo pontífice em um programa de governo da igreja: Francisco. Humildade, simplicidade, aparato zero. Tudo demasiado novo para julgar tão rápido, mas o Papa argentino cuja nomeação pôs fim a 13 séculos de dominação europeia nos papados cativou com seus primeiros gestos os vaticanistas mais céticos. Para o conjunto dos comentaristas e especialistas, sua eleição já é uma ousadia maior. Ferruccio Pinotti, autor de uma destaca investigação sobre o lobby religioso e financeiro, “Comunhão e Libertação, O lobby de deus”, disse ao jornal Página/12 que a chegada de Bergoglio é uma “revolução de grande alcance que rompe com a política aplicada desde João Paulo II”.
Ezio Mauro, diretor do jornal La Repubblica, vê no nome do novo papa a personificação da transformação global que se avizinha: “o sinal mais inequívoco da mudança é o nome, Francisco, um nome que nenhum papa jamais usou. O nome é como um projeto em si do qual o papa não poderá fugir. Seu primeiro ato consistiu em pedir a quem estava na Praça de São Pedro que o abençoasse. Este é o sinal de uma proposta para um caminho comum”. O caminho que Francisco empreendeu contrasta com o de seus antecessores. Nesta quinta-feira foi rezar na basílica Santa Maria em um simples Ford, ou seja, um automóvel menos luxuoso que o ScV 001 que a Santa Sé põe à disposição dos papas. Segundo revelou o porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, Bergoglio foi até a Casa do Clero onde residia, recolheu seus pertences e “pagou a conta para dar o exemplo”.
Recém ontem começaram a vazar algumas informações sobre as razões que desembocaram na eleição de Bergoglio. O cardeal francês Jean-Pierre Ricard contou à imprensa que os cardeais que se reuniram no Conclave estavam em busca de um Papa capaz de ser, ao mesmo tempo, um pastor e um homem cheio de espiritualidade: “penso que com o cardeal Bergoglio encontramos esse tipo de pessoa. É um homem com muito intelecto, mas também um homem de governo”. Se para a grande maioria dos observadores a indicação de Bergoglio foi uma surpresa, alguns conhecedores das entranhas vaticanas argumentam que a escolha responde a uma estratégia que vinha sendo elaborada há bastante tempo.
Ezio Mauro, o diretor de La Repubblica, comentou a respeito que “a igreja estava preparando desde algum tempo a ascensão de Bergoglio. Lembremos que no Conclave passado ele disputou a cadeira de Pedro com Bento XVI. Diante da coragem impotente de Bento XVI, esta eleição foi uma decisão de romper com o passado, uma mudança na geopolítica da fé. Bergoglio é o resultado da necessidade de virar a página em relação ao poder da cúria feito de múltiplos escândalos. Este papa romperá com a autoridade do poder e do dinheiro. Recordemos neste sentido todos os escândalos nos quais esteve envolvido o Banco do Vaticano, o IOR”. Ferruccio de Bortoli, o diretor do influente Corrieri dela Sera, pensa algo parecido: “abre-se um cenário completamente novo. É uma derrota da cúria, que agora está obrigada a se renovar. A igreja deu um sinal revolucionário, um sinal de unidade sem muita fumaça preta que marca a descontinuidade com a cúria romana. Francisco é um papa bondoso, mas é preciso destacar que a bondade anda de mãos dadas com a disciplina e o novo papa parece contar com as duas coisas”.
O cardeal francês Jean-Pierre Ricard revelou também que Bergoglio impressionou os demais cardeais durante as reuniões preparatórias ao Conclave. Segundo Ricard, Bergoglio disse a eles que a Igreja não podia encarnar Cristo realmente se se dedicasse unicamente a seus problemas “internos”. Sua missão consiste agora em se dirigir aos homens e mulheres que se afastaram dela. Os vaticanistas da imprensa italiana alegam também que o escândalo provocado pela publicação dos documentos secretos do papa Bento XVI, os Vatileaks, teve uma influência decisiva na escolha de Bergoglio e na derrota do setor italiano, ou seja, do arcebispo de Milão, Monsenhor Angelo Scola. A espantosa radiografia que surgiu daí, com o retrato de prelados corruptos, empenhados em violentas disputas de poder, mergulhados em obscuras questões financeiras ou supostas chantagens sexuais lançaram uma sombra irrecuperável sobre a ala italiana da cúria.
“Francisco continuará com a solidez doutrinária de Ratzinger, mas dará sinais fortes de abertura e de mudança”, assegura Ezio Mauro. Os sinais inaugurais dessa doutrina foram expostos na Capela Sistina durante a primeira missa do pontificado celebrada diante dos cardeais que o elegeram. Bergoglio disse aos cardeais que fossem “irrepreensíveis” ao mesmo tempo em que interpelou a igreja para que não esqueça suas “raízes” nem a “Jesus Cristo”, pois do contrário pode se tornar “uma ONG piedosa, mas não a Igreja”. Francisco pareceu dizer que a Igreja se esqueceu de seu próprio caminho e que isso explicava em parte a crise atual: “Nossa vida é um caminho e quando paramos as coisas não andam”, disse na Capela Sistina. O Papa também falou da necessidade de edificar a Igreja com “pedras fortes”, “vivas”, porque senão ocorrerá “o que acontece com as crianças na praia quando fazem castelos de areia”.
Que castelo construirá Francisco? Algumas respostas já estão nas imagens: sua divergência com o serviço de segurança do Vaticano, sua insistência em não se expor com roupas de ouro e detalhes ostensivos e um fato maior destacado pelo padre rebelde e escritor Paolo Farinella. Francisco pronunciou a palavra “povo” em sua primeira declaração na Praça de São Pedro. Farinella diz: “Depois de 35 anos, pela primeira vez, seu ouviu na praça de São Pedro, na boca de um Papa, a palavra “povo” que havia sido apagada dos documentos oficiais de João Paulo II e Bento XVI”.
Eleito Papa com a meta de terminar com os legados de seus predecessores e a cultura com a qual João Paulo II impregnou a igreja, Francisco não pode voltar a encarnar o “Papa político” e imitar João Paulo II em sua cruzada contra o comunismo. Suas posições de confrontação da Argentina contrastam com a imagem de humildade e sabedoria que emana nos meios de comunicação do Ocidente. Que Bergoglio tenha questionado e com termos muito violentos a aprovação da lei sobre o matrimônio igualitário não é um fato excepcional: é a linha da Igreja em todos os países do mundo. Há algumas semanas, a França aprovou uma lei semelhante e seus principais adversários foram os bispos e cardeais que organização a oposição desde as sombras.
O problema seria usar seu enorme poder simbólico como fez João Paulo II para ir contra os processos de mudança que ocorrem em vários países da América Latina. Aí, Bergoglio sairia da senda do pastor para voltar ao caminho do guerreiro político. “Que Deus os perdoe”, disse Bergoglio aos cardeais quando jantava com eles pela primeira vez depois de sua eleição. Os imperdoáveis estão mencionados nos dois grandes volumes do dossiê sobre Vatileaks que o aguardam em sua mesa de trabalho. Essa será sua grande prova de fogo.
Em Roma dizem que Bergoglio é um ponto de ruptura na história da Igreja porque corta o ciclo da Igreja eurocêntrica e abre o céu e a terra para a Igreja Universal, para a Igreja periférica que segue sendo mais fiel ao cristianismo do que as que estão nas sociedades opulentas do Ocidente. Momento de inflexão, de esperanças e também de dúvidas: o pastor pacífico e humilde que reina em Roma não se parece muito com o que lutava na Argentina contra o poder político que o incomodava. Todos os símbolos que circulam hoje na cidade papal e na Roma eterna são bons. Resta saber como será esse caminho no qual Francisco deverá silenciar as recordações de Bergoglio. Mãos limpas e cruzes limpas em uma igreja que esteve a ponto de derreter a arca da fé.
Tradução: Katarina Peixoto
Ezio Mauro, diretor do jornal La Repubblica, vê no nome do novo papa a personificação da transformação global que se avizinha: “o sinal mais inequívoco da mudança é o nome, Francisco, um nome que nenhum papa jamais usou. O nome é como um projeto em si do qual o papa não poderá fugir. Seu primeiro ato consistiu em pedir a quem estava na Praça de São Pedro que o abençoasse. Este é o sinal de uma proposta para um caminho comum”. O caminho que Francisco empreendeu contrasta com o de seus antecessores. Nesta quinta-feira foi rezar na basílica Santa Maria em um simples Ford, ou seja, um automóvel menos luxuoso que o ScV 001 que a Santa Sé põe à disposição dos papas. Segundo revelou o porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, Bergoglio foi até a Casa do Clero onde residia, recolheu seus pertences e “pagou a conta para dar o exemplo”.
Recém ontem começaram a vazar algumas informações sobre as razões que desembocaram na eleição de Bergoglio. O cardeal francês Jean-Pierre Ricard contou à imprensa que os cardeais que se reuniram no Conclave estavam em busca de um Papa capaz de ser, ao mesmo tempo, um pastor e um homem cheio de espiritualidade: “penso que com o cardeal Bergoglio encontramos esse tipo de pessoa. É um homem com muito intelecto, mas também um homem de governo”. Se para a grande maioria dos observadores a indicação de Bergoglio foi uma surpresa, alguns conhecedores das entranhas vaticanas argumentam que a escolha responde a uma estratégia que vinha sendo elaborada há bastante tempo.
Ezio Mauro, o diretor de La Repubblica, comentou a respeito que “a igreja estava preparando desde algum tempo a ascensão de Bergoglio. Lembremos que no Conclave passado ele disputou a cadeira de Pedro com Bento XVI. Diante da coragem impotente de Bento XVI, esta eleição foi uma decisão de romper com o passado, uma mudança na geopolítica da fé. Bergoglio é o resultado da necessidade de virar a página em relação ao poder da cúria feito de múltiplos escândalos. Este papa romperá com a autoridade do poder e do dinheiro. Recordemos neste sentido todos os escândalos nos quais esteve envolvido o Banco do Vaticano, o IOR”. Ferruccio de Bortoli, o diretor do influente Corrieri dela Sera, pensa algo parecido: “abre-se um cenário completamente novo. É uma derrota da cúria, que agora está obrigada a se renovar. A igreja deu um sinal revolucionário, um sinal de unidade sem muita fumaça preta que marca a descontinuidade com a cúria romana. Francisco é um papa bondoso, mas é preciso destacar que a bondade anda de mãos dadas com a disciplina e o novo papa parece contar com as duas coisas”.
O cardeal francês Jean-Pierre Ricard revelou também que Bergoglio impressionou os demais cardeais durante as reuniões preparatórias ao Conclave. Segundo Ricard, Bergoglio disse a eles que a Igreja não podia encarnar Cristo realmente se se dedicasse unicamente a seus problemas “internos”. Sua missão consiste agora em se dirigir aos homens e mulheres que se afastaram dela. Os vaticanistas da imprensa italiana alegam também que o escândalo provocado pela publicação dos documentos secretos do papa Bento XVI, os Vatileaks, teve uma influência decisiva na escolha de Bergoglio e na derrota do setor italiano, ou seja, do arcebispo de Milão, Monsenhor Angelo Scola. A espantosa radiografia que surgiu daí, com o retrato de prelados corruptos, empenhados em violentas disputas de poder, mergulhados em obscuras questões financeiras ou supostas chantagens sexuais lançaram uma sombra irrecuperável sobre a ala italiana da cúria.
“Francisco continuará com a solidez doutrinária de Ratzinger, mas dará sinais fortes de abertura e de mudança”, assegura Ezio Mauro. Os sinais inaugurais dessa doutrina foram expostos na Capela Sistina durante a primeira missa do pontificado celebrada diante dos cardeais que o elegeram. Bergoglio disse aos cardeais que fossem “irrepreensíveis” ao mesmo tempo em que interpelou a igreja para que não esqueça suas “raízes” nem a “Jesus Cristo”, pois do contrário pode se tornar “uma ONG piedosa, mas não a Igreja”. Francisco pareceu dizer que a Igreja se esqueceu de seu próprio caminho e que isso explicava em parte a crise atual: “Nossa vida é um caminho e quando paramos as coisas não andam”, disse na Capela Sistina. O Papa também falou da necessidade de edificar a Igreja com “pedras fortes”, “vivas”, porque senão ocorrerá “o que acontece com as crianças na praia quando fazem castelos de areia”.
Que castelo construirá Francisco? Algumas respostas já estão nas imagens: sua divergência com o serviço de segurança do Vaticano, sua insistência em não se expor com roupas de ouro e detalhes ostensivos e um fato maior destacado pelo padre rebelde e escritor Paolo Farinella. Francisco pronunciou a palavra “povo” em sua primeira declaração na Praça de São Pedro. Farinella diz: “Depois de 35 anos, pela primeira vez, seu ouviu na praça de São Pedro, na boca de um Papa, a palavra “povo” que havia sido apagada dos documentos oficiais de João Paulo II e Bento XVI”.
Eleito Papa com a meta de terminar com os legados de seus predecessores e a cultura com a qual João Paulo II impregnou a igreja, Francisco não pode voltar a encarnar o “Papa político” e imitar João Paulo II em sua cruzada contra o comunismo. Suas posições de confrontação da Argentina contrastam com a imagem de humildade e sabedoria que emana nos meios de comunicação do Ocidente. Que Bergoglio tenha questionado e com termos muito violentos a aprovação da lei sobre o matrimônio igualitário não é um fato excepcional: é a linha da Igreja em todos os países do mundo. Há algumas semanas, a França aprovou uma lei semelhante e seus principais adversários foram os bispos e cardeais que organização a oposição desde as sombras.
O problema seria usar seu enorme poder simbólico como fez João Paulo II para ir contra os processos de mudança que ocorrem em vários países da América Latina. Aí, Bergoglio sairia da senda do pastor para voltar ao caminho do guerreiro político. “Que Deus os perdoe”, disse Bergoglio aos cardeais quando jantava com eles pela primeira vez depois de sua eleição. Os imperdoáveis estão mencionados nos dois grandes volumes do dossiê sobre Vatileaks que o aguardam em sua mesa de trabalho. Essa será sua grande prova de fogo.
Em Roma dizem que Bergoglio é um ponto de ruptura na história da Igreja porque corta o ciclo da Igreja eurocêntrica e abre o céu e a terra para a Igreja Universal, para a Igreja periférica que segue sendo mais fiel ao cristianismo do que as que estão nas sociedades opulentas do Ocidente. Momento de inflexão, de esperanças e também de dúvidas: o pastor pacífico e humilde que reina em Roma não se parece muito com o que lutava na Argentina contra o poder político que o incomodava. Todos os símbolos que circulam hoje na cidade papal e na Roma eterna são bons. Resta saber como será esse caminho no qual Francisco deverá silenciar as recordações de Bergoglio. Mãos limpas e cruzes limpas em uma igreja que esteve a ponto de derreter a arca da fé.
Tradução: Katarina Peixoto
Publicado na cartamaior.com.br/, em 14.03.2013
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