Elevação do custo de vida já obriga moradores do Jequitinhonha dependentes do programa do governo a recorrer à ajuda de conhecidos para complementar renda e comprar comida.
Itinga e Araçuaí – Com 13,97 milhões de cadastrados, o Bolsa Família – que envolve hoje a cifra de R$ 2,3 bilhões mensais e ajudou a retirar da linha de pobreza 36 milhões de brasileiros entre 2003 e 2013, como propaga o governo federal – começa a sofrer os efeitos negativos da política econômica do próprio Planalto. Os ataques do dragão da inflação já fazem estragos nos orçamentos de famílias que precisam da ajuda do governo para sobreviver, especialmente daquelas que vivem em áreas mais carentes, como o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, onde a falta de oportunidades para melhorar de vida amplia a dependência e reduz os índices de saída do programa, constatou a reportagem do Estado de Minas, que percorreu 10 cidades na região. Em boa parte das casas, o cartão do programa é guardado como o maior patrimônio familiar, mas, com o aumento do custo de vida – especialmente da conta de luz –, o sagrado dinheirinho recebido do governo já não dá mais para comprar comida para o mês inteiro.
Pelo Vale afora, beneficiários do programa repetem a mesma história: mesmo com o auxílio do governo, precisam agora recorrer à ajuda de parentes e conhecidos para não passar fome. É o caso de Teresa Fernandes Pessoa, de 59 anos, moradora de Itinga – um dos berços do programa de transferência de renda implantado ainda na primeira gestão do PT na Presidência da República. O município, que Luiz Inácio Lula da Silva visitou em 1993 – 10 anos antes de ser eleito – e onde conheceu Teresa, que dividia um cubículo com oito filhos – foi escolhido pelo ex-presidente como uma das plataformas de lançamento do Programa Fome Zero ao assumir seu primeiro mandato , em janeiro de 2003.
Da primeira leva do programa, a mulher que impressionou Lula por sua pobreza diz que o Bolsa Família “mudou bastante” sua vida, mas reclama da situação atual. As despesas de água e luz representam cerca da metade dos R$ 140 que recebe. A outra parte não é suficiente para comprar comida para o mês inteiro. Como não tem outra renda, o jeito é pedir alimentos para os outros: “Chego na casa de fulano e peço um pouquinho de arroz, um pouquinho de farinha. Na casa de outro, ganho um pouquinho de feijão. E a gente vai levando a vida”, conta Teresa. “Tem hora que nem chego a pedir. As pessoas veem a situação da gente e trazem (as coisas) pra gente. Mas, tem hora que a gente tem que pedir: ‘Ô, fulano, me arranja isso, que lá em casa não tem nada’”, completa.
Teresa recorda da promessa feita por Lula em 1993: “Ele pediu que eu rezasse porque, se fosse eleito, iria me dar uma casinha”. Até hoje, ela continua na mesma moradia apertada, de um cômodo só, separado apenas por meia parede. “Foi uma separação para a gente trocar de roupa”, explica . O pequeno espaço, que serve de sala, cozinha e quarto, é dividido hoje com um filho e dois netos. A mulher reclama do não cumprimento da promessa do ex-presidente. Mas, resignada, diz: “Peço a Deus que continue iluminando ele”.
Segundo relatório do Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome (MDS), atualmente há 2.426 beneficiários do Programa Bolsa Família em Itinga. Considerando a média de 3,1 de pessoas por domicílio, levantada na Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílios (Pnad 2013), o número de pessoas atingidas pelo programa na cidade chega a 7.520, o que corresponde à metade da população de Itinga (15.012 habitantes).
Drama que se repete
O drama vivido por Teresa não é único em Itinga. Segundo a secretária municipal de Ação Social, Deborah Ramalho Vieira, os pedidos de ajuda ao órgão são constantes. “Recebemos pessoas que alegam que sua única renda é do Bolsa Família, que não têm nada em casa nem dinheiro pra fazer a feira. Outros dizem que não têm nenhuma colher de arroz para fazer o almoço e alimentar o filho para mandá-lo à escola”, conta Deborah. “Recebemos constantemente pedidos variados de pessoas beneficiadas do Bolsa Família. Ultimamente, o que tem chegado mais é pedido de ajuda de custo para o pagamento da conta de luz”, completa.
Em Araçuaí, a reportagem encontrou o mesmo problema. No Bairro São Jorge, uma das áreas mais carentes do município, a doméstica Maria José Lopes Pereira, de 30, reclama que os R$ 314 recebidos do Bolsa Família já não dão mais para o sustento, pois ela é mãe de quatro filhos e o companheiro, Marcelo, ganha pouco como trabalhador braçal. Para piorar, nem sempre ele encontra serviço. Ultimamente, a situação piorou muito, principalmente devido ao aumento da conta de luz, conta Maria José. Não é todo dia que há mantimentos em casa e, volta e meia, o fantasma da fome bate à porta, admite a doméstica. Aí, tem que recorrer à solidariedade alheia. “Vou falar a verdade: a gente passa necessidade sim e precisa pedir ajuda para outros”, afirma Maria José. A família mora num barracão de dois cômodos. Um deles é o quarto do casal, cozinha e sala ao mesmo tempo. A moradia não tem banheiro. “Usamos o da vizinha”, explica Maria José.
Numa estrada, perto de Baixa Quente (lugarejo de cerca de 50 casas), na zona rural de Araçuaí, a reportagem encontrou três mulheres carregando na cabeça vasilhas, que refletiam os raios do sol forte que predomina na região. Elas voltavam do Rio Calhauzinho, percorrendo a pé uma distância de 1.500 metros. Neuza Fernandes Rodrigues, de 54 anos, uma das mulheres, explica: “A gente tem que caminhar para lavar vasilhas no rio porque se lavar em casa não consegue pagar a conta de água. O que a gente ganha é muito pouco”. Os R$ 70 que recebe de ajuda do governo são a única renda certa da família de Neuza, mães de seis filhos já criados. Segundo ela, o marido, José Francisco Cardoso, trabalha como lavrador, roçando pastos, a R$ 40 por dia. Mas, como costuma ocorrer no Vale, a oferta de trabalho é escassa.
Outra integrante do trio de Baixa Quente, Adriana Fernandes, de 32, mãe de sete filhos, revela que recebe R$ 313 do programa governamental e agradece por isso: “Se não fosse o Bolsa Família, eu não sei como a gente iria sobreviver”. Por outro lado, reclama das condições do lugar onde mora, sobretudo, da falta de saneamento básico. A casa onde mora não tem banheiro e as necessidades são feitas no mato. “Banho, só de mangueira, no quintal”, completa. “Quero ir embora desse lugar. Vou me mudar para Belo Horizonte’, anuncia Adriana. Em Araçuaí, segundo dados do MDS, há 4.662 cadastrados no Bolsa Família, que, considerando a média de 3,1 moradores por domicílio, alcança 14.452 pessoas, o equivalente a 38,9% da população do município (37.220 habitantes).
Corrosão
A alta da inflação – cuja projeção para 2015 é de 8,3%, pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) – afeta os brasileiros em geral, aponta Nora Raquel Zygielszyper, professora de economia da Fundação Getúlio Vargas. Ela ressalta, entretanto, que entre os beneficiários do Bolsa Família ou mesmo quem ganha o salário mínimo “a redução do poder aquisitivo é dramática, pois impossibilita até que comprem comida suficiente para o mês”. Nora Zygielszyer lembra que o governo reajustou os benefícios do Bolsa Família em 10% em 2014, o que representou ganho real. Mas ressalta: “A escalada da inflação continuou e esse ganho já foi corroído”.
Atados à ajuda do programa
Falta de oportunidades crônica perpetua dependência de carentes no Jequitinhonha
Além enfrentar a corrosão da renda provocada pela inflação, os beneficiários do Bolsa Família no Vale do Jequitinhonha têm pouca chance de reduzir sua dependência da ajuda governamental. A falta de oportunidades é crônica na região – onde uma série de projetos de geração de emprego e renda fracassou nos últimos anos, como mostrou reportagem do Estado de Minas realizada em 10 cidades do Vale e publicada no último fim de semana – e praticamente tranca a porta de saída do programa. Levantamento feito pelo EM com base em dados do Ministério do Desenvolvimento Social e de Combate à Fome (MDS) sobre a revisão de benefícios revela que, no Jequitinhonha, o percentual de desligamento do Bolsa Família por quem obteve elevação de renda é de 2,3%, inferior à média nacional, de 3,2%, confirmando a perenização de uma pobreza apenas remediada. O índice de saída no Jequitinhonha é ainda mais distante da média de Minas Gerais, de 4,45%.
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Os baixos percentuais de desligamento do programa são verificados no Brasil inteiro, mas de forma mais acentuada nas´áreas mais pobres, confirma a professora Nora Raquel Zygielszyper, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Infelizmente, o programa não parece ter sido desenhado com a preocupação de ter uma porta de saída”, critica a especialista. Ela frisa, porém, que a ajuda financeira aos mais pobres é importante e necessária, mas, sem conjugação com projetos para gerar renda, “demonstra uma visão de curto prazo”. “O que se percebe no Vale do Jequitinhonha é resultado dessa política, que merece reparos”, afirma.
Para o professor Geraldo Antônio dos Reis, do Departamento de Economia da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), entretanto, é preciso levar em conta os impactos de outras políticas do governo sobre áreas menos desenvolvidas. Ele cita os efeitos positivos da valorização do salário mínimo. “Rendimentos de aposentados, pensionistas e servidores públicos municipais estão fortemente atrelados ao mínimo nesses locais”, lembra.
Contudo, o professor defende “mais arrojo nas políticas de infraestrutura”, inclusive em âmbito estadual. Como exemplo cita a pavimentação de rodovias estaduais que permitirão superar o histórico isolamento do Jequitinhonha e do Mucuri. “No que diz respeito à melhoria da rede viária, ogGoverno federal também poderá ter um papel essencial”, acrescenta.
Morador da cidade de Jequitinhonha, o mototaxista Olinto Antônio Viana acredita que a não pavimentação da BR-367 impede o crescimento da região e resume: “Aqui é o vale da miséria porque não existem condições de transporte. Se tivesse pelo menos estrada, poderia ter movimento. O povo poderia plantar colher e distribuir as mercadorias. O Governo só cobra impostos e deixa de fazer aquilo que presta. Essa região está esquecida.
Só 2.333 desligamentos
Dados do Ministério do Desenvolvimento Social e de Combate à Fome (MDS) referentes à revisão cadastral do Bolsa Família em todo o país apontam que 449.546 beneficiários saíram do programa após ter sua renda elevada. Eles representam 3,2% do bolo de 13,97 milhões beneficiados em todo o território nacional, de acordo com os números, atualizados em março. Dos que deixaram o programa, 238.493 informaram renda familiar superior a R$ 154,00 por pessoa – o valor máximo para receber a ajuda – e 211.055 não renovaram o cadastro. Também foram contabilizadas 197.704 famílias que deixaram de receber benefício básico por declarar ganhos acima do limite da extrema pobreza (R$ 77 per capita). Ainda segundo os dados do MDS, em Minas Gerais, 49 mil cadastrados no Bolsa Família informaram aumento de renda, o que correspondente a 4,45% do 1,1 milhão de benefícios pagos nos 853 municípios do estado, que somam R$ 173,4 milhões mensais.
Com base nos dados individuais dos 57 municípios do Vale do Jequitinhonha registrados pelo MDS, o Estado de Minas identificou a saída de 2.333 beneficiários do Bolsa Família na região, onde o programa alcança 97.654 domicílios. Considerada a média de 3,1 pessoas por casa apontada na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad 2013), o total de pessoas atingidas pelo programa chega a 302.702, contingente equivalente a 38,8% dos 785.182 habitantes do Vale.
Em algumas cidades a situação o índice de saída do programa é ainda mais baixo que a média de 2,3% da região. Em São Gonçalo do Rio Preto (3.180 moradores), por exemplo, somente quatro das 399 famílias que recebem o benefício foram convocadas para a revisão cadastral e nenhuma delas saiu do Bolsa Família. Mata Verde (8,36 mil habitantes) teve um índice de saída do programa de apenas 0,2% – três entre 1.222 famílias beneficiárias. Outras cidades que tiveram percentuais ínfimos de saída foram: Alvorada de Minas (0,4%), Felisburgo (0,5%), Serra Azul de Minas (0,6%), Joaíma (0,7%), Ponto dos Volantes (0,7%), Padre Paraíso (0,7%), Berilo (0,8%), José Gonçalves de Minas (0,8%) e Itinga (0,9%)..
Fonte: Estado de Minas
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