quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Brasil já possui projetos e tecnologias para irrigar Nordeste

Bolsonaro quer entregar riquezas em troca de bugigangas


Marcelo Camargo/Agência Brasil
Depois da constatação de que o país possui uma longa e até premiada experiência de combate à seca nordestina, o esforço de Jair Bolsonaro para importar tecnologia israelense lembra um dos piores momentos da história brasileira, ocorrido no século XVI, após o desembarque das caravelas de Pedro Álvares Cabral.
Como aprendemos nos livros de história, antes de se transformar numa operação de guerra e extermínio a colonização portuguesa atravessou uma etapa de sedução dos povos nativos, com a oferta de bugigangas -- espelhinhos, roupas, colares -- em troca do acesso a riqueza do país e a seu território. Capazes se atrair lideranças indígenas com uma troca que só beneficiava a Corte Portuguesa, os colonizadores abriram caminho para séculos de pilhagem e exploração, cujo saldo até hoje enfeita palácios e igrejas cobertas de ouro brasileiro em Lisboa.
Vexame devastador para uma candidatura que jamais ofereceu a população nordestina o tratamento devido, o episódio possui pelo menos um  agravante. Os chefes indígenas do século XVI que eram atraídos pelo ouro de tolo dos colonizadores pelo menos tentavam obter mercadorias que não eram capazes de produzir, enquanto Bolsonaro oferece o imenso mercado brasileiro para tecnologias que o país já produz ou tem condições de produzir. Com isso, o Brasil não só perde chance de gerar empregos e conhecimento próprio mas desperdiça investimentos já feitos. 
Na civilização do século XXI, quando grande parte da riqueza de um povo se traduz em pesquisa, inovação e conhecimento, a postura de Bolsonaro para importar tecnologia israelense -- como se o Brasil fosse um deserto de equipamentos, ideias e iniciativas -- chama atenção por vários aspectos, a começar pela pressa. Em 26 de dezembro, o presidente eleito anunciou uma viagem do ministro Marcos Pontes a Israel, para tratar de uma parceria "muito bem encaminhada" para a importação de tecnologias de irrigação e dessalinização. Na mensagem, Bolsonaro tratou o assunto com a velocidade das decisões urgentes, inquestionáveis e, acima de tudo, bem estudadas. Disse que durante a visita a Israel, a se realizar já no primeiro mês do governo,  Marcos Pontes seria ciceroneado por Ofir Akunis, ministro de Ciência e Tecnologia daquele pais. Também antecipou que, após a volta do ministro ao Brasil, aqui seria instalado um "projeto piloto" para "retirar água salobra de poço, dessalinizar, armazenar e distribuir para agricultura familiar, estendendo o projeto para mais localidades após testes e ajustes".  
Embora o twitter do presidente pareça  referir-se a um país sem qualquer conhecimento para enfrentar um drama que afeta diretamente um quarto da população, a realidade é outra. Há mais de três décadas o Brasil desenvolve técnicas variadas  de irrigação de solo e dessalinização da água para responder as necessidades diversas do território nordestino, que cobre uma área 70 vezes maior que o Estado de Israel, com grandes diferenças climáticas entre uma área e outra, que pedem soluções tecnológicas igualmente diversas. Engenheira do Instituto Militar de Engenharia, bolsista do Ciência sem Fronteiras, a brasileira Nadia Ayad já ganhou um prêmio internacional em função de pesquisas para dessalinização.
Numa ação de outra natureza, a gigantesca obra de engenharia que foi a Transposição do São Francisco é parte desse esforço e bem sucedida em relação aos objetivos fixados.
Em outra situação, as cisternas permitiram à região atravessar uma das piores secas da História -- sem o colapso social de outros tempos. No caso específico das tratativas com Israel, em três décadas foram instaladas entre 3500 a 4000 dessalinizadoras no nordeste brasileiro.  Em entrevista publicada pelo UOL, o professor Kleper Borges França, coordenador do Laboratório de Dessalinização na Universidade de Campina Grande, explicou:
"Temos a dessalinização por processos térmicos, por energia solar, através de destilação, por compressão de vapor, de membrana --que é a mais utilizada mundialmente--, que vêm sendo utilizadas em comunidades. E também temos novos caminhos, como a membrana cerâmica, que nós da Universidade Federal de Campina Grande desenvolvemos", diz. "Precisamos melhorar, óbvio. Mas o que precisamos é de mais investimento do governo federal e de órgãos de fomento para incentivar cientistas a desenvolver tecnologias e deixar de comprar membranas dos gringos, porque isso deixa mais caro o sistema".
Do ponto de vista diplomático, a dessalinização importada é parte de um pacote muito mais amplo. Inclui a decisão de transferir a embaixada brasileira para Jerusalém, medida que implica em assumir um lado num conflito externo ao país, contrariando mais de 70 anos de história brasileira e centenas de resoluções da ONU que determinam o retorno de Israel as fronteiras anteriores a Guerra dos Seis Dias, há meio século.
A prioridade assegurada às relações com o governo israelense tem pouca relação com a economia daquele  país, em 55o. lugar entre a maiores do mundo e uma população equivalente a do Ceará.

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