segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Frei Chico e a religiosidade popular

O erudito holandês Frei Chico redescobriu Deus no Vale
Franciscano narra, sob a ótica do povo, aspectos da existência humana
A vida não deve ser separada da religiosidade.” Pode até soar piegas essa frase de frei Chico, missionário holandês que chegou ao Brasil em 1968 e iniciou longa pesquisa sobre a cultura popular no Vale do Jequitinhonha. Mas, na prática, não é difícil constatar como a humanidade se mantém distante desse objetivo.
O frade é exceção: aproximou-se dos mais humildes e, em vez de ver pobreza, encantou-se com a riqueza das manifestações de fé. O resultado desse processo deu origem ao livro Abecedário da religiosidade popular – Vida e religião no Brasil.
Com 8,5 mil verbetes, a obra sintetiza as conexões que o povo brasileiro estabelece com a fé. Com previsão de lançamento no ano que vem, o livro é o projeto de uma vida.
Logo que chegou a Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, frei Chico se encantou com a sonoridade das canções da cozinheira Filó, mesmo sem falar português. Não demorou a surgir a idéia de fundar um coral com sete mulheres da região.
Naquele grupo estava a artesã Maria Lira Marques. “Ela deu um destino à minha permanência no Brasil”, conta o franciscano, impressionado com a sabedoria da artista. “Tive a intuição de que aquilo era importante”, lembra o religioso – um erudito que fala, além do português e holandês, latim, grego, francês, alemão e inglês. Nem de longe aquele holandês culto imaginava o que encontraria num lugar tão pobre. “O contato com a Lira, que tem outra visão de mundo, me deu a diferença e me fez ver as coisas de outro jeito”, reforça.
Cultura popular e libertação
Seguidor da teologia da libertação e do socialismo, frei Chico não concordava com alguns aspectos dessas doutrinas, que tratavam a valorização da cultura popular como uma espécie de fuga. “Para os pobres, dia de festa religiosa não é fuga: é o dia da fartura, de roupa nova. O único momento em que se acredita na alternativa às desgraças do dia a dia”, afirma ele. Suas convicções e reflexões ganharam importante aliada: a obra do educador Paulo Freire, “que praticava o socialismo e valorizava a cultura popular”, lembra frei Chico.
Enquanto formava líderes na região de Araçuaí e aprendia com as manifestações populares, frei Chico ainda não sabia o que fazer com aquilo.
Autorizado pela Igreja a se dedicar exclusivamente aos estudos da religiosidade popular, a partir de 1978 o frade resolveu aprofundar seu relacionamento com os pobres. “Para falar em nome deles, deveria participar mais daquela vida. Saí de Araçuaí e fui morar na Colônia de Santa Isabel, em Betim, com a intenção de dar dignidade ao leproso. Dessas pesquisas nasceu a minha capacidade de avaliar”, revela. Inicialmente, pensou em escrever um manual da fé popular. Consciente de que não existe síntese possível para algo tão amplo, passou a se dedicar a projeto mais ambicioso: um dicionário.
Abecedário da religiosidade popular – Vida e religião no Brasil nasceu desse processo. Em 8,5 mil verbetes e 6,5 mil notas de rodapé, frei Chico narra, sob a ótica do povo, aspectos da existência humana – do nascimento, no parto, até o enterro, a morte. “Descobri que religião e fé começam ao pé da enxada, não no templo. O Deus vivo se encontra na vida”, resume. Maria Lira foi a guia dessa jornada: “Ela me abriu as portas. O povo não tinha por que acreditar que um religioso pudesse pensar diferente dos outros e valorizar suas manifestações”.
TERRA
A artista do Vale do Jequitinhonha foi fundamental para o dicionário, ao criar as pinturas em terra que o ilustram. Lira teve liberdade para inventar as iluminuras a partir de sua forte ligação com a temática abordada. Mas nem sempre as letras têm a ver com os desenhos. “Para o A, imaginei a criação do mundo, um Divino Espírito Santo pairando sobre as árvores. Fui nesse ritmo até chegar ao Z, que é o movimento dos sem-terra. Fiz uma nuvem de onde saem muitos corações, como se fosse chuva, e coloquei uma enxadinha na bandeira do MST.”
Não houve limitações para o trabalho de Lira. “Também retratei a umbanda e o congado, porque tudo está ligado pela religiosidade popular. Pesquisei muito, li inúmeros livros e não houve proibição de nada.”
Ela usou como pigmento a terra diluída em água e cola. “O sentido do dicionário é terra, é pé no chão, são as coisas do povo. Isso não foi difícil de sintetizar”, explica. Para a artesã, o dicionário tem grande importância. “Não há nenhum que mostre a riqueza do povo”, conclui.
Fonte: Portal Uai

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