segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Crise ética e médica: Os filhos do Dr. Mengele e a insurreição de Bruna Sena

Por Pedro Tierra*


O Dr. Joseph Mengele estudou medicina – e filosofia – na Universidade de Munique. Ficou conhecido no mundo inteiro como o “Anjo da Morte”, durante os julgamentos de Nuremberg, pela eficiência com que, como coronel-médico, conduziu seu trabalho em Auschwitz. Foi responsável pela execução de 400 mil pessoas, prisioneiras do regime nazista acusadas pelo crime de serem ciganos, gays, judeus, comunistas e deficientes físicos.

Joseph Mengele era discípulo do Dr. Ernst Rudin, pesquisador da área de genética, defensor da eugenia, para quem os médicos tinham o dever de eliminar “criaturas indesejáveis” como os deformados, os homossexuais, os comunistas e os judeus. Homem prudente, fugiu do seu laboratório, em Auschwitz, em janeiro de 1945, temendo que os soviéticos não tivessem sensibilidade para compreender o sentido humanitário de suas pesquisas...  Uma figura inspiradora.

É recente o espanto da sociedade brasileira diante de atitudes e manifestações de médicos em absoluto descompasso com os paradigmas da profissão assentados no juramento que fazem ao concluir sua formação. E cultivada na tradição desde Hipócrates, em torno do valor maior submetido aos seus cuidados: a vida humana. Todos recordam a surpreendente, inexplicável e inaceitável recepção oferecida por profissionais de saúde aos médicos cubanos que desembarcaram no aeroporto Pinto Martins, em Fortaleza, em 27 de agosto de 2013. Eles, os médicos cubanos, se dispunham a trabalhar precisamente nas áreas do interior do país e na periferia das grandes metrópoles onde médicos brasileiros se recusavam a oferecer seus serviços.

Nos últimos dias, fomos agredidos pela violação do sigilo de exames médicos que davam notícia do gravíssimo estado de saúde de Marisa Letícia, internada no Hospital Sírio-Libanês. Uma ex-operária tecelã, que por capricho do destino contra todas as expectativas das elites brasileiras, se tornou primeira-dama da República. Por oito anos. A Dra Gabriela Munhoz, responsável pela violação do sigilo, foi demitida imediatamente pela direção do Hospital. Um dia depois, o médico Dr. Richam Faissal El Houssain Ellakis foi demitido pela Unimed, por ter publicado um post no qual prescreve os passos para acelerar a morte ou – como ele próprio expressa – “abrir a pupila” de Marisa Letícia. Você entregaria seu filho, seu marido, sua mulher, seu amigo, sua amiga aos cuidados do Dr. Richam? O que espera o Conselho Federal de Medicina para cassar o diploma desse herdeiro do Dr. Mengele?

Não é ocioso perguntar sobre os critérios éticos ministrados nas escolas de medicina do Brasil. Que escola formou os Drs. Richam e Gabriela? Não me refiro aqui à faculdade a) ou b). Refiro-me a uma distorção que se produz na formação dos profissionais de saúde, no país, que os converteu em ministradores de pacotes tecnológicos impostos pela indústria farmacêutica e que, em nome das relações comerciais estabelecidas pelo mercado, aboliu a relação humana entre o profissional de saúde e a pessoa que o procura. 

A par desse fato, há um outro de igual gravidade. Na sociedade mais desigual do mundo – e que aparentemente se orgulha disso – os médicos estão deixando de ser uma corporação. Estão se convertendo numa casta social. Desde o processo de seleção para frequentar as escolas de medicina. O mais seletivo de todos. Neste ano de 2017, foram 75,58 concorrentes lutando por uma vaga na mais importante Universidade do país.


“Quando a senzala vira médica, a Casa Grande pira” postou Bruna Sena nas redes sociais. Negra. Pobre. Estudante da escola pública. Filha da operadora de caixa de supermercado Dinália Sena, que a sustenta sozinha com um salário de R$ 1.400,00 desde os nove anos. Bruna encarnou nesses dias sombrios uma espécie de insurreição da esperança ao ser aprovada em primeiro lugar na Fuvest, para medicina.

Da conversa que manteve com jornalistas destaco duas reflexões que revelam, a meu juízo, o perfil de Bruna: “Alguns se esquecem do passado, que foram anos de escravidão e sofrimento para os negros. Os programas de cotas são paliativos, mas precisam existir. Não há como concorrer de igual para igual quando não se tem oportunidades de vida iguais."  E, “claro que não sei ainda qual especialidade pretendo seguir, mas sei que quero atender pessoas de baixa renda, que precisam de ajuda, que precisam de alguém para dar a mão e de saúde de qualidade”.

Quero guarda-las para seguir convencido de que o sinal de humanidade que carregamos em nós permanece aceso no coração dessa menina. E pensar que a máquina feroz que Bruna Sena vai enfrentar ao longo de sua formação não derrotará esse ímpeto generoso que encarnou nela as transformações – ainda que tímidas – que ocorreram nos últimos anos, no Brasil, para a vida das jovens negras da periferia.

E possamos olhar friamente e comparar com a frase do Dr. Richam Ellakis sobre os últimos dias de Marisa Letícia: “Esses fdp vão embolizar ainda por cima. Tem que romper no procedimento. Daí já abre a pupila. E o capeta abraça ela.” Uma frase que poderia ter sido proferida pelo Dr. Joseph Mengele. Que, nunca é demais lembrar, morreu impune, depois de uma velhice pacífica, neste país chamado Brasil.

Pedro Tierra é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.

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