segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Estudante negra, pobre e de escola pública fica em 1º lugar, em curso de Medicina da USP



"A casa-grande surta quando a senzala vira médica", provoca Bruna.

Arquivo pessoal
Bruna Sena, 17, comemora º lugar em medicina da USP de Ribeirão, o mais concorrido da Fuvest
Bruna Sena, 17, comemora o 1º lugar em medicina da USP de Ribeirão, o mais concorrido da Fuvest

É com uma frase provocativa estampada em uma rede social que Bruna Sena, 17, primeira colocada em medicina da USP de Ribeirão Preto, carreira mais concorrida da Fuvest-2017, comemora e passa um recado de sua conquista: "A casa-grande surta quando a senzala vira médica".

Negra, pobre, tímida, estudante de escola pública, criada apenas pela mãe, que ganha R$ 1.400 como operadora de caixa de supermercado, Bruna será a primeira da família a interromper o ciclo de ausência de formação superior em suas gerações. Fez em grande estilo, passando em uma das melhores faculdades médicas do país.

A mãe, Dinália Sena, 50, que sustenta a casa desde que Bruna tinha nove meses e o pai deixou o lar, está entre a alegria e o pavor. Tem medo que a filha seja hostilizada. "Por favor, coloque no jornal que tenho medo dos racistas. Ela vai ser o 1% negro e pobre no meio dos brancos e ricos da faculdade."

Já a filha mostra-se tranquila. Acredita que será bem recebida e tem na ponta da língua a defesa de sua raça, de cotas sociais e da necessidade de mais oportunidades para os negros no Brasil. "Claro que a ascensão social do negro incomoda, assim como incomoda quando o filho da empregada melhora de vida, passa na Fuvest. Não posso dizer que já sofri racismo, até porque não tinha maturidade e conhecimento para reconhecer atitudes racistas", diz a caloura.

"Alguns se esquecem do passado, que foram anos de escravidão e sofrimento para os negros. Os programas de cota são paliativos, mas precisam existir. Não há como concorrer de igual para igual quando não se tem oportunidade de vida iguais."

GEORGE ORWELL
Para enfrentar a concorrência de 75,58 candidatos do vaga, Bruna fez o básico: se preparou muito, ao longo de toda sua vida escolar. "Ela só tirava notas 9 ou 10. Uma vez, tirou um 7 e fui até a escola para saber o que tinha acontecido. Não dava para acreditar. Falei com o diretor e ele descobriu que tinham trocado a nota dela com um menino chamado Bruno", orgulha-se a mãe.

George Orwell, autor do clássico "A Revolução dos Bichos", fábula que conta a insurreição dos animais de uma granja contra seus donos, está entre os favoritos da garota, que também gosta de romance e comédia e é fã da série americana "Grey's Anatomy", um drama médico.

No último ano do ensino médio, que cursou pela manhã na escola estadual Santos Dumont, conseguiu uma bolsa de estudos em um cursinho popular tocado por estudantes da própria USP, para onde ia à noite. "Minha escola era boa, mas, infelizmente, tinha todas as dificuldades da educação pública, que não prepara o aluno para o vestibular. Falta conteúdo, preparo de alguns professores. Sem o cursinho, não iria conseguir."

Segundo Bruna, que mora em um conjunto habitacional na periferia de Ribeirão Preto, vários de seus colegas de escolas nem "nem sabem que a USP é pública e que existe vestibular para passar".

Com ajuda financeira de amigos e parentes, Bruna fazia kumon de matemática, mas o dinheiro não deu para seguir com o curso de inglês. "Tudo na nossa vida foi com muita luta, desde que ela nasceu, prematura de sete meses, e teve de ficar internada por 28 dias. Não tenho nenhum luxo, não faço minhas unhas, não arrumo meu cabelo. Tudo é para a educação dela", declara a mãe.
Ainda segundo Dinália, "alguns conhecidos ajudaram. Uma amiga minha sempre dava livros para ela. Uma vez, essa amiga colocou R$ 10 dentro de um livro para comprarmos comida e escreveu: 'Bruna, vence a vida, não deixe que ela te vença, estude'".
Arquivo pessoal
Bruna Sena, 17, estudou a vida toda em escola pública e é defensora das cotas sociais
Bruna Sena, 17, estudou a vida toda em escola pública e é defensora das cotas sociais

FUTURO
A opção pela medicina aconteceu há cerca de um ano, por influência de professores do cursinho popular que frequentou o CPM, ligado à própria Faculdade de Medicina da USP-Ribeirão. "Claro que não sei ainda qual especialidade pretendo seguir, mas sei que quero atender pessoas de baixa renda, que precisam de ajuda, que precisam de alguém para dar a mão e de saúde de qualidade", declara.

Engajada na defesa de causas sociais como o feminismo, o movimento negro e a liberdade de gênero, a adolescente orgulha-se do cabelo crespo e de sua origem, mas é restrita nas palavras sobre o pai, que não paga pensão e não a vê há anos. "Minha mãe ralou muito para que eu tivesse esse resultado e preciso honrar isso. Sou grata também a minha escola, ao cursinho. Do meu pai, nunca entendi o desprezo, me incomoda um pouco, mas agora é hora de comemorar e ser feliz." 

Surpresa
Apesar de ter superado todos os concorrentes, Bruna diz que não se deu conta que havia obtido a primeira colocação geral até dias depois das notas terem sido divulgadas e de ter sido recebida pelos veteranos da medicina.

"Foi uma corrente do bem. No primeiro dia saiu a lista e depois vinha a opção de olhar o desempenho. No primeiro dia eu apenas olhei e só dois dias depois, quando fui ver a classificação, que notei que tinha sido a primeira. Eu bati o olho, mas não tinha me tocado."
Agora, Bruna diz que deverá efetuar sua matrícula já nesta primeira semana. Ela diz que a família não poderia estar mais orgulhosa e espera que organizem uma festa para celebrar sua conquista, afinal de contas, ela é a primeira pessoa da família que irá cursar o ensino superior.
"Não achei nem que fosse passar da primeira fase, te juro. Minha mãe, coitada, não acreditou. Sou a primeira da família a fazer faculdade e não sei se vão fazer alguma comemoração aqui em casa, mas espero que sim", explica aos risos.
Bruna diz que fará sua matrícula até o fim da semana na USP (Foto: Bruna Sena / Arquivo Pessoal)
Bruna diz que se matriculará até o fim da semana
na USP (Foto: Bruna Sena / Arquivo Pessoal)
Escolha

Bruna diz que a admiração e eventual escolha por prestar medicina foi algo que ocorreu com o tempo e contato que ela mantinha com estudantes da área. Mas, para ela, prestar Fuvest e entrar na USP sempre foram seus principais objetivos há muito tempo.

"Eu comecei a querer medicina no começo do ano passado. Fui pegando admiração porque, como fiz um cursinho que funciona dentro da faculdade de medicina, a gente via os alunos, já que eles eram os professores, e fiquei admirada, mas sempre tive a ideia de prestar Fuvest, era meu foco desde o primeiro ano do ensino médio", diz.
Apesar disso, ela afirma que ainda não sabe em qual área deverá se especializar e conta que a decisão deverá ser tomada com o passar dos anos dentro do curso com o auxílio de professores e após ter contato com todas as áreas possíveis. "Ainda não sei no que vou me especializar, não tenho a menor noção. Primeiro vou fazer a matrícula on-line agora no dia 6, e só me apresentarei depois, no dia 13."
Bruna se formou no Ensino Médio em dezembro de 2016 e começará a faculdade de medicina aos 17 anos (Foto: Isabela Veloso / Arquivo Pessoal)
Bruna se formou no ensino médio em dezembro de
2016 (Foto: Isabela Veloso/Arquivo Pessoal)
Preocupação

Apesar de estar feliz com a aprovação e a realização do sonho de estudar na USP, Bruna confessa que está um pouco preocupada com eventuais casos de preconceito e possíveis assédios. Negra e vinda de família pobre, ela afirma que já pensou sobre o assunto, mas diz que o primeiro contato com veteranos do curso foi animador. Ela diz ter sido recebida com muita simpatia – e tinta.
"Eu fico um pouco preocupada, mas muitos veteranos falaram comigo e me disseram que se acontecer alguma coisa eu posso falar, denunciar. Tem o disque trote que podemos ligar e dizer se algo ocorrer. Fico um pouco preocupada, mas, pelo que vi, o pessoal é bem legal."
Fonte: Folha de S. Paulo e O Globo

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