quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Memória afetiva da formação musical no Vale do Jequitinhonha

 


A "Deusa Música" ganha um relato de vida intenso e presente na história de uma mulher do Vale do Jequitinhonha. Rosélia Ferreira relata como a música a formou como cidadã e pessoa.   

Fios de memória: “Como querer Caetanear o que há de bom.”

Rosélia Ferreira*

Posso dizer que a música é a maior herança que une minha família de origem, e que a família que constituí leva essa herança a sério, em veias e vozes. Pra minha grande alegria, diga-se de passagem.

Há muito transformei em prece – bem ouvida - um trecho de "Vila de amor e lobos", do cantor João Bosco: “peço aqui pra ela estar sempre no meu lar...música música sempre no meu lar”. E assim, quase que diariamente, nosso lar é saudado com a musicalidade dos meus dois filhos e, em muitas ocasiões, minha copa/cozinha se transforma em palco de vozes e violões, onde jovens amigos músicos-compositores-cantadores reverenciam, incontestes, a Deusa Música.

E não por acaso esses colóquios musicais se transformam, muitas vezes, em debate. Sendo quase todos remanescentes do Vale do Jequitinhonha, a música do Vale transforma-se, com alguma frequência, em tema central desses debates. Não apenas a música dos artistas do Jequitinhonha, mas aquela que ganhou corpo e projeção nos palcos do Festivale, o pioneiro e mais importante festival de cultura popular do Vale do Jequitinhonha, e que, em 2019, realizou sua 36ª edição, dividida entre Belmonte e Serro. Uma inovação digna de nota e reconhecimento, como o é o próprio Festivale, que pela primeira vez viajou até a porção baiana do Vale, na foz do Rio.



Pois bem, e um dos aspectos que incitam esse debate diz respeito ao estilo da maioria das músicas selecionadas e premiadas no Festivale, cujas características são, ainda hoje, muito próximas ao que se fazia nas primeiras edições, lá pelo final do anos  setenta e início dos 80. A opinião que muitos de nós têm é que o evento é pouco permeável a qualquer mudança ou inovação na chamada música do Vale do Jequitinhonha.

E confesso que, após um período ausente dos Festivales, senti, ao retornar em 2009, na edição de Grão Mogol, uma pontada de decepção ao ouvir as novas músicas premiadas, que me soaram meio velhas e sem muito brilho; destoavam do vigor juvenil e maduro do evento. Porém venho tentando entender esse desconforto, contraposto à enorme satisfação e prazer que o Festivale, em seu conjunto, me provoca ainda hoje. Vivenciar a força e resistência da cultura popular do Vale, em suas mais diversas manifestações, não é pouca coisa. Mas a música...bem...

E um sinal de entendimento veio dia desses, quando me peguei mostrando aos meus filhos Pedro e Caio, e a Eliezer Gonçalves - um músico muito querido que se hospedou conosco na última semana – a música “That’s what I want”, da banda The Square Set, da África do Sul. Um enorme sucesso de 1969, a música me fez voltar e me ver, aos cinco anos, sentada na porta de casa, ouvindo não apenas esta, mas toda uma geração de roqueiros como Beatles, Rolling Stones, Led Zepellin,  Janes Joplin, Jimi Hendrix e toda a turma do Iê iê iê, como Roberto e Erasmo Carlos, que faziam furor e revolucionavam os costumes, mesmo em cidades tão pequenas e periféricas como Coronel Murta, situada no Médio Jequitinhonha, a quase 700 km da capital.

Na época, a televisão não tinha chegado por lá e as Rádios AM eram os grandes canais midiáticos a levar o mundo pra nossa cidade. Porém naquele momento minha escuta vinha de altofalantes instalados no telhado do mercado municipal, onde o querido Dizim mantinha um mini estúdio de som e transmitia, diariamente, sua paixão pela nova música. Que prazer!!! E ao longo dos dias vinha de rádios como a Jornal do Brasil, Mundial e Cultura da Bahia; chegava com Chico Buarque, Maria Bethânia, Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Jobim, Secos e Molhados, Mutantes, Raul Seixas, Taiguara, Milton Nascimento, O Terço e inumeráveis artistas que despontavam naquele momento, junto com os da velha guarda, como Nelson Gonçalves, Pixinguinha e ainda Dalva de Oliveira e Maysa, para citar poucos.

 Nesse caldeirão de ritmos e sons vinham também os ícones da chamada música brega, como Altemar Dutra, Odair José, Valdick Soriano, Paulo Sérgio... que nos alto falantes dos circos e parques de diversão que chegavam e saíam da cidade, eram os campeões de pedidos para corações apaixonados. Impossível esquecer de Paulinho da Viola, Agepê, Roberto Ribeiro, Martinho da Vila, Clara Nunes, Alcione, Benito de Paula e toda uma legião de sambistas que invadiram o rádio no início dos 70, e que estimularam as rodas de samba para muito além dos morros e da Lapa carioca. Sei bem o quanto elas ainda me pegam de jeito! Pois bem, íamos crescendo com toda essa gama de influências musicais, (e este texto seria um capítulo de livro, fôssemos citar todos os artistas que ouvíamos) somadas ainda às nossas cantigas de roda, nossos cantos de domínio público, ensinados pelos mais velhos e cantados em festejos e, especialmente, pelas lavadeiras de roupas, nas suas labutas diárias à beira do Jequitinhonha.



 A grande diferença é que essas cantigas eram coisa nossa, do interior, coisa menor, da ponta do fim do mundo. Na minha criancice, jamais podia imaginá-las tocando nas rádios; eram cantigas, não ganhavam status de música, na sua acepção popular. Mas na segunda metade da década de 1970 vimos, com surpresa e espanto, se consolidar os movimentos de organização da cultura popular do Vale do Jequitinhonha.

Ali, nossos modos de existência, moldados às margens das políticas públicas, ou com políticas equivocadas e excludentes; sob a seca e na carência de tecnologias modernas tinham, finalmente, conquistado lugares de escuta e de reconhecimento. De algum modo não éramos mais os filhos da ponta do fim do mundo, passivos receptáculos de culturas desenvolvidas, mas ganhávamos status de produtores de cultura; poderíamos finalmente romper o monólogo e ofertar, trocar produtos e valores, doar a arte que criávamos e a singularidade dos atores que éramos. O vale da miséria estava sendo reinventado.

O que era periférico podia ser universal, ganhando outra centralidade nas nossas existências. Ver nosso artesanato em barro e algodão, nossa literatura, teatro e especialmente, nossa música, ganharem valor e importância trouxe um sentido de identidade e de força até então inimagináveis! A poesia orgânica dos poetas Gonzaga Medeiros, Tadeu Martins e Cláudio Bento - para citar alguns - nos agitando o coração em saraus que poderiam varar noites. E muitas vezes varavam.



Na música, Os Trovadores do Vale traziam, em disco, nossas cantigas, que poderiam agora transformar-se em música. Para além do disco, a Mestra Lira Marques despontava altiva, pra mim, no livro Me Ajude a Levantar, de Castilim (Carlos Figueiredo), um dos idealizadores do Festivale, junto com o poeta Tadeu Martins, com Aurélio Silby e George Abner. Pouco antes havia chegado o Jornal Geraes, o debate acerca de um Vale que não mais queria viver à sombra. Um manifesto libertário que também se opunha à ditadura militar. O Vale era Minas Gerais, era o Brasil, o Vale era o mundo, em vida verso e viola, depois também em verde, este menos monocromático que os extensos eucaliptais de um verde amargo.

Mas antes de tudo isso, uma eu menina de sete anos, com enorme espanto, ouviu numa manhã que na noite anterior, no Planalto Clube, em Araçuaí, um padre pulava carnaval. Foi difícil não sair para um canto, a caraminholar o turbilhão mental: - quer dizer então que o carnaval, a festa da carne e do pecado, a alegria, o prazer, não eram coisas do demônio?? Gostar, desejar e fazer isso não nos levaria fatalmente ao fogo do inferno, como diziam nossos pais e avós?? Então a festa também era de Deus?? Apenas prenúncios da ebulição cultural que viria depois.

O holandês franciscano Frei Chico abria em mim, alguns portais. Em Araçuaí e região, mostrava a esse povo singular que eles eram os portais. E o Festivale veio como uma corrente agregadora de tudo isso. E vimos surgir outros músicos e compositores, que cantavam e poetavam nossas dores e alegrias, nossas artes e fazeres, nossos pensares e sentires, mais ao pé do ouvido, de um lugar que na alma, aberta ao mundo lá de fora, parecia um cantinho, uma periferia. O Festivale nos mostrou que não era. Era sim, nosso cartão de visitas, até então ofuscado, marginal.

A música de Paulinho Pedra Azul, Rubinho do Vale, Saulo Laranjeira, Carlos Farias e muitos, muitos outros que nos fizeram cantar em coro a cada festival, show, roda e festejo, é testemunha da nossa emoção. “Canta conta cantador, conta a história que eu pedi, dizem que o Jequi tem onha, conta as onhas do Jequi”. E Rubinho cantava, e cantávamos com indizível alegria - e ainda cantamos. E esse nosso jeito de ser e fazer, e nossa música regional pode então ganhar as ondas do rádio, a tv, as metrópoles. Ainda que em espaços específicos, ela estava lá, nesse mundão de deus. E felizmente no quesito música, internamente não operamos por exclusão, ainda que a memória seja seleção. Mas como disse Maria Bethânia, “música é perfume” – ela mesma memória.

 E de lá para cá pudemos ofertar aos nossos filhos, os novos ouvintes, não apenas a música urbana das nossas metrópoles, o rock’nroll inglês ou a invasora música estadunidense. Tínhamos a oferecer ainda o vigor da música nordestina, dos hermanos latinoamericanos e, ora vivas! A música do Vale do Jequitinhonha.

A musa música ficou mais rica, rica de nós, conosco. E percebo ser no contexto dessa riqueza e vigor que desejam cantar os novos músicos do Vale; que querem fazer ecoar sua musicalidade. Sob minha ótica – e de muitos deles – insistir em restringir a música do Vale do Jequitinhonha ao formato único e presumivelmente acabado, moldado nos anos 70/80, é miopia. Para quem duvida, sugiro o CD Lavando a Alma, que Paulinho Pedra Azul lançou em 2008. Uma obra prima contra o conservadorismo de quem só consegue ouvir Bem te vi, que ele lançou no início da carreira. Continua linda, mas ele fez mais, inovou sem se perder, ao contrário.

Do mesmo modo, é possível que ninguém ouse questionar a música inigualável da escola Clube da Esquina, tão mineiramente original quanto universal, e que estendeu sua influência para o mundo. E seus artistas jamais negaram as influências do rock, do jazz e do blues, além das sonoridades típicas dos tambores e montanhas das Minas Gerais. E quem, amante da música, se carnavais”. Que assim seja!

Talvez nossa música deseje, ela também, e sem compromisso algum, antropofagizar, dizer que sonha que “um dia a fúria desse front virá lapidar o sonho até gerar o som como querer caetanear o que há de bom”. Quiçá, como disse nosso raríssimo Djavan! É possível que Suassuna censuraria e que os conservadores torçam o nariz, mas “yes, ‘that’s what I want”.

Rosélia Ferreira – outubro/2020.

Rosélia Ferreira de Sousa é bacharel em História pela FEVALE/UEMG e Mestre  em Sociedade, Saúde e Ambiente pela UFVJM. Trabalhou por 30 anos como servidora do SUS - Sistema Único de Saúde, na Vigilância Sanitária da Superintendência Regional de Diamantina (Vale do Jequitinhonha). Nativa de Itaporé, Coronel Murta, no Médio Jequitinhonha, Rosélia, a Neguinha, mora há mais de duas décadas em Diamantina. É uma grande apreciadora da música (regional, brasileira e mundial), dos movimentos culturais de Diamantina e do Vale do Jequitinhonha. Sua casa é um fervedouro de musicalidade. 

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