Em entrevista ao Portal da UFJF - Universidade Federal de Juiz de Fora, a mineira de São João das Missões, no norte de Minas, doutoranda em antropologia na UFMG e líder indígena, Célia Xakriabá, afirma:
" Eu falo que nós estamos vivendo o primeiro momento de crise respiratória humanitária. Quem sobreviver a isso, vai ter que enfrentar uma outra crise, que é a das mudanças climáticas. O planeta vai ter febre, vai entrar em convulsão. Se não salvar a vida dos povos indígenas, se não se pensar em solidariedade realmente coletiva, vai também acabar com o maior balão de oxigênio, que são os povos indígenas que protegem".
Leia a entrevista na íntegra:
Antropóloga e doutoranda pela UFMG, Célia Xakriabá, líder indígena, teme extermínio de seu povo pela pandemia do coronavírus.
Covid-19: Célia Xakriabá alerta sobre risco de extermínio de indígenas.
27 DE MARÇO DE 2020
*Com colaboração do estudante do Bacharelado em Ciências Sociais da UFJF, Lucas Pêgas.
Com o avanço dos casos da Covid-19, provocada pelo novo coronavírus, lideranças indígenas alertam sobre os riscos de extermínio em massa dos povos originários. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil denuncia a ausência de um plano de contingência para surtos e epidemias, por parte do Governo Federal, que contemple as especificidades dessas populações.
“No meio deste momento delicado que estamos vivendo e sem nenhum apoio do Governo, a Funai [Fundação Nacional do Índio] altera os critérios de entrada nos territórios indígenas, sobretudo nos povos isolados. Isso representa uma grande ameaça”, aponta a doutoranda em Antropologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Célia Xakriabá.
Em entrevista ao Portal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a pesquisadora, professora e ativista indígena ressalta também a invisibilização dos corpos indígenas pela grande mídia; as especificidades dessas populações; a crise climática; e os modos de vida que reforçam o individualismo.
“Se não salvar a vida dos povos indígenas, se não se pensar em solidariedade realmente coletiva, vai também acabar com o maior balão de oxigênio, que são os povos indígenas que protegem”, afirma Xakriabá.
Confira a entrevista na íntegra:
Portal da UFJF – O Brasil registrou, no Sul do Estado da Bahia, o primeiro caso suspeito da doença Covid-19 entre indígenas na sexta-feira, dia 20.03. Em nota publicada três dias antes, em 17 de março, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) já denunciava outros riscos aos quais essas populações estão submetidas na atual conjuntura. Comente, por favor.
“Até o momento os corpos indígenas têm sido bastante invisibilizados nesse processo, o que nos preocupa muito” – Célia Xakriabá
Célia Xakriabá – É com muita preocupação que nós, povos indígenas, acompanhamos as informações sobre a pandemia. O primeiro caso suspeito no Sul da Bahia foi descartado, mas, antes disso, a Apib já tinha feito uma nota, cobrando dos órgãos oficiais um plano de contingenciamento, frente à pandemia, para as populações indígenas. Até o momento os corpos indígenas têm sido bastante invisibilizados nesse processo, o que nos preocupa muito. Alguns veículos de comunicação têm falado em grupos vulneráveis, como os aglomerados nas favelas e as populações de rua. Nós compartilhamos dessas preocupações, mas os povos indígenas estão numa condição de vulnerabilidade muito grande.
Portal da UFJF – Neste contexto de pandemia, ao se pensar em grupos de risco para o contágio, no caso dos povos indígenas, o senso comum pode reforçar uma visão de fragilidade imunológica dos indígenas, deixada pela história da invasão européia e dos diversos contatos entre europeus e ameríndios. Essa visão tem respaldo com a realidade no caso atual da Covid-19 que é uma doença ainda pouco conhecida?
“O Estado brasileiro está sendo conivente com esse extermínio nesta crise humanitária, e não tem lugar para os povos indígenas.
Célia Xakriabá – Nós temos dito que, para o Brasil, para a sociedade, para o mundo, isso pode ser novidade, mas para as populações indígenas não é. Nós conhecemos essa história, porque fomos vítimas dessa história no projeto de colonização. O extermínio em massa também pela epidemia viral que teve com os nossos povos indígenas, de forma criminosa, quando o Estado brasileiro, nesse processo violento de contato, enviava roupas contaminadas com sarampo, com vários tipos de doenças e também comidas contaminadas. Muitos dos nossos grupos indígenas até hoje no Brasil, por essa diversidade que chega a quase um milhão de indígenas, principalmente aqueles em situação de recém-contato, não têm imunidade para lidar com essas doenças novas. É frequente que até gripes comuns sejam um fator de risco para as comunidades indígenas. Em Minas Gerais, por exemplo, no ano passado, no caso dos Maxakali, teve óbitos de quatro crianças, por diarréia. Então, são grupos que diariamente já vêm enfrentando esse extermínio orquestrado do Estado brasileiro por essa ausência de política pública. Ano passado, enfrentamos seriamente também a ameaça da municipalização da Saúde. Percebemos que, ao não se posicionar com medidas contingenciais, o Estado brasileiro está sendo leviano e conivente com esse extermínio nesta crise humanitária, e que não tem lugar para os povos indígenas.
Portal da UFJF – Em meio à pandemia, a Fundação Nacional do Índio (Funai) publicou, em 17 de março, a Portaria 419/2020, alterando as regras de contato com os povos isolados. Avalie, por favor, as implicações da referida medida para a segurança dos povos indígenas.
“Temos preocupação redobrada com os povos isolados, porque pode significar o extermínio mesmo dessa população” – Célia Xakriabá
Célia Xakriabá – No meio deste momento delicado que estamos vivendo e sem nenhum apoio do Governo, a Funai altera os critérios de entrada nos territórios indígenas, sobretudo nos povos isolados. Isso representa uma grande ameaça. Nós percebemos, mais uma vez, o Estado brasileiro, quando não atua com medidas de proteção aos povos indígenas, atua de forma muito leviana e reforçando o que aconteceu no passado. Temos preocupação redobrada com os povos isolados, porque pode significar o extermínio mesmo dessa população. Nós percebemos que a pandemia é uma crise para a humanidade, mas sabemos que o Brasil não vai ser exterminado na sua totalidade. Já para nós, povos indígenas, representa uma ameaça real de extermínio.
Portal da UFJF – Outra questão não muito difundida entre os brancos – e que pode contribuir para dificultar o combate à uma pandemia no caso de contágio dentro de uma aldeia – são as especificidades culturais dos povos indígenas. A vida compartilhada nas aldeias e o fato de algumas habitações tradicionais não terem ventilação propícia para evitar a transmissão do coronavírus são um exemplo. Comente sobre essas especificidades citadas e outras, se houver, por favor.
“Um desafio muito grande para nós tem sido a questão da alimentação” – Célia Xakriabá
Célia Xakriabá – Nós temos uma especificidade muito grande. Se é um desafio para a população esse isolamento social, imagine para nós, povos indígenas, que vivemos nessa convivência e nesse compartilhamento coletivo. De repente, temos que restringir também essa convivência coletiva. As pessoas não indígenas têm perguntado o que podem fazer para colaborar. Fico feliz por essa solidariedade que essa convivência coletiva desperta no mundo, mas para nós, povos indígenas, isso não é novidade. Isso nos coloca frente a outro desafio. Percebemos que nesse momento há uma dificuldade muito grande em ter esse olhar, mesmo das pessoas que apoiam a questão indígena em outros cenários de luta. Nesse momento as pessoas estão muito limitadas ao seu território no contexto urbano. Nós temos tido dificuldade para impulsionar nossas campanhas de apoio. Um desafio muito grande para nós tem sido a questão da alimentação. Como nós [os Xakriabá] vivemos numa região semiárida do Brasil que tem sido mais árida do que nunca, mesmo que a população plante suas roças, a chuva varia muito e não dá pra colher o ano inteiro. Com a limitação atual para acessar a cidade como forma de monitoramento [de possíveis casos da Covid-19] mais segura e como não temos medidas de apoio do Governo, nós, as lideranças indígenas, temos essa preocupação.
Portal da UFJF – A Apib aponta problemas estruturais no atendimento à saúde das comunidades indígenas, que contam com cerca de 750 mil pessoas em todo o país. Além disso, a Associação denuncia a ausência de um plano de contingência para surtos e epidemias, por parte do Governo Federal, que contemple as especificidades dos povos indígenas, conforme determina a Constituição Federal. Comente, por favor.
“Nós estamos fazendo uma força tarefa no Congresso Nacional com a bancada da minoria, subsidiada pelo apoio da nota da Apib” – Célia Xakriabá
Célia Xakriabá –
Os municípios, a Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena], não estão em condição para lidar neste momento com a pandemia, uma vez que todas as formas oficiais de Governo, que direcionaram algum tipo de apoio frente à pandemia, não elaboraram um plano de contingenciamento para as comunidades indígenas. Nós, povos indígenas, estamos fazendo uma força tarefa no Congresso Nacional com a bancada da minoria, subsidiada pelo apoio da nota da Apib. Nós protocolamos um requerimento, junto com as deputadas Taliria Petrone (Psol-RJ) e Joênia Wapichana (Rede-RR), e estamos construindo um PL [Projeto de Lei], que terá autoria delas, para acionar o Ministério da Saúde, para que apresente um plano de contingenciamento para as populações indígenas. E agora também está acontecendo, no Congresso Nacional, uma Frente Parlamentar Mista dos Direitos dos Povos Indígenas, com participação de comissão da Secretaria de Saúde Indígena.
Portal da UFJF – Há outras questões que você considere importante acrescentar?
“É fundamental que a população brasileira ressoe a importância dos povos indígenas” – Célia Xakriabá
Célia Xakriabá – É fundamental que a população brasileira ressoe a importância dos povos indígenas. Hoje até escrevi sobre isso. As pessoas têm falado que não veem a hora de voltar ao normal. Eu falo que, em certa medida, essa normalidade me assusta, essa humanização seletiva. Se todo momento que estamos vivendo de crise humanitária não for para repensar os modos também dessa forma individualista, não vai servir de nada. Esse ensinamento de crise humanitária, mostra que todo o processo e essa estrutura de vida chegou ao seu limite. Se as pessoas não se sentem sensibilizadas neste momento com a situação dos povos indígenas, vão fazer um outro enfrentamento pior. Eu falo que nós estamos vivendo o primeiro momento de crise respiratória humanitária. Quem sobreviver a isso, vai ter que enfrentar uma outra crise, que é a das mudanças climáticas. O planeta vai ter febre, vai entrar em convulsão. Se não salvar a vida dos povos indígenas, se não se pensar em solidariedade realmente coletiva, vai também acabar com o maior balão de oxigênio, que são os povos indígenas que protegem. Então, as pessoas vão conhecer uma outra crise respiratória, vão ter que enfrentar essa outra crise respiratória, mas já não existirão mais os povos indígenas para ajudar nessa cura.
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