quinta-feira, 4 de abril de 2013

Aricanduva e o espírito


Escritora registra emoção de contatos com personagens populares do Vale

Texto criado por Lara Firmino Araújo: professora, escritora e jornalista convidada pelo projeto Sons no Vale
Aricanduva e o espírito
A estrada para o Vale é estreita. Limpa a visão. Entro eu no Vale. Não para ver o exótico homem pobre do Vale do Jequitinhonha, mas para ver a mim. Egoísta mesmo o motivo da minha viagem. “Obrigada meus filhos, toma um cafezinho, perdão pelos modos, perdão…”, obrigada eu, Dona Raimunda, Seu Zezinho, Seu Hozanam, eu que agradeço, sou eu quem pede perdão pelos modos. Obrigada ao Henrique pelo convite e ao Inácio por ter me deixado ir… ainda bem que passei no teste e não acendo incensos todas as noites antes de dormir, mas bem que devia: no vale profundo que entrava, era de alma que eu queria saber mesmo, uma meditação profunda, deixando para trás o que de mim já não dizia mais nada. Eu precisei do Vale. De cada coisa que eles me disseram, que eu vi. Nem tirei foto, as casas, os verdes, as gentes que via serviam a um propósito meu, eram minhas, vibravam em mim já. Quando ventou muito e o cabelo do Henrique voava que nem o meu, e o livro sobre o Dalai Lama do Gil molhava um pouco, era em mim que pensava, era por mim que orava. Ir para o Vale era uma oração!
Quando seu Hozanam falou com a gente e o Inácio perguntou: “alguma dúvida gente?”… Eu tinha… Fala mais Seu Hozanam sobre a Folia das Almas, sobre as incelências, sobre a bruxa que morava com seus filhos lobisomens, sobre o moço com o Santo Antônio pregado no braço e que não morria nunca… Fala seu Hozanam, fala sobre céu e terra para mim, me deixa saber que há algo mais que isso aqui tão pouquinho que a gente vê, foi isso que vim buscar mesmo. Seu Hozanam falou: fiquei imaginando a Folia das Almas, todo mundo de branco, indo às fazendas cantar para o morto ir embora, eu morria lá, que cantassem por mim; a dona bruxa e seus filhos lobisomens, que eu jantasse lá na casa dela, sentasse na beira da porta e perguntasse que tipo de feitiço ela fazia, se podia fazer um para mim assim, para me deixar mais certinha da cabeça; com o moço do Santo Antônio falaria de Rosa para ele, sobre o pacto, sobre o pacto…
Seu Zezinho e o silêncio
Na casa do Seu Zezinho a estrada ia só se estreitando, era de terra agora, um cruzeiro, umas poucas casas, lírios… eu ficava da janela olhando, do mesmo jeito que fazia na capital, ficava de noitinha olhando do ônibus para aqueles prédios grandes só para ver quem acendia a luz dos apartamentos, parecia tão confortável lá dentro! “Entra gente, nossa, nem tava esperando, preparei nada, oh minha gente, me adesculpe…” seu Zezinho queria muito que a gente tomasse café e comesse biscoito, eu também queria, uma fome! Aí ele falava sobre o canto do caboclo, as coisas de outro mundo que via, vê ele via, mas não acreditava, não… e que arte para ele … “ôh, moço… o senhor me adesculpe… essa eu não sei não… mas…ôh moço….mas eu vou pesquisar…será se deve de ser um país longe, ou uma coisa errada que a gente faz…é isso mesmo?”, tanto intervalo para falar, tanto amor aí pela palavra, seu Zezinho queria falar coisa errada não…zelava pelo que saia da boca… È, seu Zezinho, é tipo isso aí, arte é um estado longe do normal mesmo, parece outro país, igual coisa de outro mundo, é tipo uma coisa errada também, a gente vê meio torto. Tem hora que não acredito também não. Mas que eu vejo, eu vejo! Quando sua sobrinha mesmo abriu a porta a vi toda bonita, queria fazer um filme só dela, umas pernas meu Deus! No filme assim eu ia querer contar dos homens que queriam aquela mulher bonita que luzia de preta, toda dura, e quem ela queria, quem era o pai do William Vitor…
Dona Raimunda e o alecrim
…Mas eu tinha que segurar o refletor enquanto Dona Raimunda dizia ter ficado morrida por um tempo e depois ter renascido… Na hora de ir embora ela me deu um abraço assim “fica com Deus, minha filha”, eu fiquei olhando no olho dela, achei que ela tivesse me dito mais do que aquilo, que me ensinava a dançar forró, que me benzia, que me deitava no colo e eu dizendo que ando tão cansada, dona Raimunda, sabe, fala com minha mãe aí no outro mundo… mas não deve ter dito nada disso não, é só a visão dupla, a que vê o que aqui, o além… coisa de arte, de outro mundo… acreditar eu não acredito não… mas, por via das dúvidas, ia pegar um ramo do alecrim que o Fossati ganhou para fazer um banho de limpeza. Aricanduva e o espírito!
* Os documentários realizados durante o Projeto Sons no Vale são uma produção de Zenólia Filmes.

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