Crônicas de Almenara
DESTROÇOS DE SÃO JOÃO
Reginauro Silva
Tragédia como a de ontem à noite vai ser difícil acontecer de novo na minha vida. Nos meus oito anos de idade, nunca vi nada igual. Aquele sangueiro, aquela gritaria, um corre-corre sem tamanho, meninos se misturando aos adultos, o povo todo desesperado e dona Mariquinha sufocada por uma multidão de mãos, enquanto a sua própria se despedaçava no ar, todos de dedos voando feito pipoca sobre a - de repente - interrompida festa de São João.
Na minha cabeça de menino ainda não está bem clara a ordem de prevalência entre São João, São Pedro e Santo Antônio. Pela dificuldade em entender qual deles chega primeiro e qual vai embora depois, chamo tudo de São João.
Dona Marli até que tentou explicar isso na escola, numa aula sobre folclore, mas nem folclore eu aprendi o que é ainda. Parece coisa de doido.
Então, chega o mês de junho, mãe e tia Dodó começam a fazer biscoitos, tia Mera manda a gente comprar folhas coloridas de celofone e cola, tio Turíbio encomenda varas de bambu a todos os donos de carros de boi de Almenara. Então, é São João.
Já já vamos nos atolar em tachos de canjica, panelas de paçoca, pacotes de amendoim e muita, muita batata quente.
- Sua batata está assando...
Quando dona Laura proferia essa sentença para um de nós, era pisa na certa. Antes de ser um acepipe de São João, a batata era prenúncio da surra de palmatórias que um dos Silva levaria para saber se comportar nas festas juninas que vinham chegando.
E não era para menos: nós éramos atentados demais!
Não sei bem de quem foi a ideia, mas é bem capaz que tenha sido minha. Pegamos no mangueiro de Maria Sapateiro uma cobra recém abatida debaixo de um mata-burro, colocamos num saco de estopa e escondemos atrás da privada seca lá do quintal, para deleite das moscas e dos morotós.
Reginauro Silva
Tragédia como a de ontem à noite vai ser difícil acontecer de novo na minha vida. Nos meus oito anos de idade, nunca vi nada igual. Aquele sangueiro, aquela gritaria, um corre-corre sem tamanho, meninos se misturando aos adultos, o povo todo desesperado e dona Mariquinha sufocada por uma multidão de mãos, enquanto a sua própria se despedaçava no ar, todos de dedos voando feito pipoca sobre a - de repente - interrompida festa de São João.
Na minha cabeça de menino ainda não está bem clara a ordem de prevalência entre São João, São Pedro e Santo Antônio. Pela dificuldade em entender qual deles chega primeiro e qual vai embora depois, chamo tudo de São João.
Dona Marli até que tentou explicar isso na escola, numa aula sobre folclore, mas nem folclore eu aprendi o que é ainda. Parece coisa de doido.
Então, chega o mês de junho, mãe e tia Dodó começam a fazer biscoitos, tia Mera manda a gente comprar folhas coloridas de celofone e cola, tio Turíbio encomenda varas de bambu a todos os donos de carros de boi de Almenara. Então, é São João.
Já já vamos nos atolar em tachos de canjica, panelas de paçoca, pacotes de amendoim e muita, muita batata quente.
- Sua batata está assando...
Quando dona Laura proferia essa sentença para um de nós, era pisa na certa. Antes de ser um acepipe de São João, a batata era prenúncio da surra de palmatórias que um dos Silva levaria para saber se comportar nas festas juninas que vinham chegando.
E não era para menos: nós éramos atentados demais!
Não sei bem de quem foi a ideia, mas é bem capaz que tenha sido minha. Pegamos no mangueiro de Maria Sapateiro uma cobra recém abatida debaixo de um mata-burro, colocamos num saco de estopa e escondemos atrás da privada seca lá do quintal, para deleite das moscas e dos morotós.
Achar o cordão até que não foi difícil, difícil foi amarrar o pescoço
daquela cobra que, mesmo morta, continuava matando a gente de medo, pois
sabíamos que o veneno continuava correndo em suas veias...
Amarramos a peçonhenta, colocamos lá no outro lado da rua e puxamos o cordão até o janelão de madeira que ornamentava a casa da Rua Belo Horizonte, bem no alto da igreja das irmãs, na subida da Hermano de Souza.
Naquela noite de São João parece que a população inteira de Vigia, antigo nome de Almenara, estava ali na casa de seu Rebeldino e dona Laura.
Na casa é figura de estilo, porque, na verdade, todo mundo se acotovelava no vão na rua de pedregulho, cada um se ajeitando como podia, acocorados, assentados em um banquinho de madeira ou estirados na calçada de terra, os que já tinham se abarrotado de quentão, cinzano, topa-tudo e cachaça com mel de abelha oropa que pai preparava.
Caldeirões imensos de canjica e quentão fervilhavam no fogaréu crepitante, por baixo dos quais queimavam espigas de milho e um milhão de batatas-doce trazidas de tudo quanto é lugar.
Fogos espocavam saudando São João, Santo Antônio e São Pedro – não sei bem a ordem, eu disse -, entre risos desbragados e saudações variadas, quando começamos a puxar, bem devagarinho, a cobra morta escondida no outro lado da fogueira.
Morta para nós que sabíamos da traquinagem porque, quando a bichona destampou sob o clarão dos fogos, da única luminária do passeio e das labaredas da fogueira, estava vivinha no medo, no terror e no pavor que se juntaram aos gritos lancinantes de guerra que varreram a Rua Belo Horizonte e ecoaram pelos desvãos noturnos do Vale do Jequi.
Foi um trabalhão reunir de novo os convivas ao redor do que sobrara da festa adrede preparada com tanto carinho, com tanto trabalho.
O que justificava, plenamente, cada palmada aplicada nas mãos calejadas dos autores daquela brincadeira sem gosto, para não dizer perversidade sem conta.
Quando, enfileirados, auto-denunciados, na costumeira pose de apanhar sem dó nem piedade, esperávamos o pior dos castigos, ecoou nos céus de Almenara uma explosão de tragédia maior que a ira dos olhos de todos os festeiros ainda esbaforidos pela pegadinha da cascavel.
Todas as atenções se voltaram para a mão direita de dona Mariquinha. Ou melhor, para o que sobrara da mão direita de dona Mariquinha, estraçalhada pela explosão dos três tiros de canhão na saída do estopim, espalhando pedaços de unhas e de dedos por todos os ares.
Enquanto, entre pasma e atônita, a platéia saía catando cotocos na vã esperança de um transplante ainda inexistente, aprendi outra palavra.
É que um mais sabido virou-se explicativo para a massa aterrorizada e traduziu a causa da desgraça infinita de dona Mariquinha:
- O foguete deu xabu...Xabu!
Nunca mais ouviria esta palavra na sequência dos tempos, tanto que até hoje não sei se é com esse, com cê-agá ou com xis mesmo.
Só sei que até hoje devo aquela surra pra dona Laura...
Amarramos a peçonhenta, colocamos lá no outro lado da rua e puxamos o cordão até o janelão de madeira que ornamentava a casa da Rua Belo Horizonte, bem no alto da igreja das irmãs, na subida da Hermano de Souza.
Naquela noite de São João parece que a população inteira de Vigia, antigo nome de Almenara, estava ali na casa de seu Rebeldino e dona Laura.
Na casa é figura de estilo, porque, na verdade, todo mundo se acotovelava no vão na rua de pedregulho, cada um se ajeitando como podia, acocorados, assentados em um banquinho de madeira ou estirados na calçada de terra, os que já tinham se abarrotado de quentão, cinzano, topa-tudo e cachaça com mel de abelha oropa que pai preparava.
Caldeirões imensos de canjica e quentão fervilhavam no fogaréu crepitante, por baixo dos quais queimavam espigas de milho e um milhão de batatas-doce trazidas de tudo quanto é lugar.
Fogos espocavam saudando São João, Santo Antônio e São Pedro – não sei bem a ordem, eu disse -, entre risos desbragados e saudações variadas, quando começamos a puxar, bem devagarinho, a cobra morta escondida no outro lado da fogueira.
Morta para nós que sabíamos da traquinagem porque, quando a bichona destampou sob o clarão dos fogos, da única luminária do passeio e das labaredas da fogueira, estava vivinha no medo, no terror e no pavor que se juntaram aos gritos lancinantes de guerra que varreram a Rua Belo Horizonte e ecoaram pelos desvãos noturnos do Vale do Jequi.
Foi um trabalhão reunir de novo os convivas ao redor do que sobrara da festa adrede preparada com tanto carinho, com tanto trabalho.
O que justificava, plenamente, cada palmada aplicada nas mãos calejadas dos autores daquela brincadeira sem gosto, para não dizer perversidade sem conta.
Quando, enfileirados, auto-denunciados, na costumeira pose de apanhar sem dó nem piedade, esperávamos o pior dos castigos, ecoou nos céus de Almenara uma explosão de tragédia maior que a ira dos olhos de todos os festeiros ainda esbaforidos pela pegadinha da cascavel.
Todas as atenções se voltaram para a mão direita de dona Mariquinha. Ou melhor, para o que sobrara da mão direita de dona Mariquinha, estraçalhada pela explosão dos três tiros de canhão na saída do estopim, espalhando pedaços de unhas e de dedos por todos os ares.
Enquanto, entre pasma e atônita, a platéia saía catando cotocos na vã esperança de um transplante ainda inexistente, aprendi outra palavra.
É que um mais sabido virou-se explicativo para a massa aterrorizada e traduziu a causa da desgraça infinita de dona Mariquinha:
- O foguete deu xabu...Xabu!
Nunca mais ouviria esta palavra na sequência dos tempos, tanto que até hoje não sei se é com esse, com cê-agá ou com xis mesmo.
Só sei que até hoje devo aquela surra pra dona Laura...
Reginauro Silva nasceu em Almenara. Jornalista, escritor, cronista e blogueiro. Morou em Montes Claros por mais de 40 anos. Faleceu neste mês de maio, aos 62 anos.
Quem quiser
se deliciar com sua veia satírica e sarcástica, vá lá no sítio eletrônico dele: www.reginauro.blogspot.com . É uma das páginas mais acessadas do Norte de Minas.
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