As múltiplas configurações da nova família – homoafetivas, mosaico, de mães ou pais solteiros – provocam alterações que vão além da legislação e da nomeclatura. Os novos papéis e lugares que seus membros ocupam nesse emaranhado de combinações afetivas acabam por transformar a identidade das gerações futuras. Na maioria das vezes, para melhor. É o que afirma a psicanalista Giselle Groeninga. Segundo ela, a identidade é formada pelo conjunto de exemplos que temos de pessoas afetivamente importantes, em geral mãe e pai, e pela aprovação que se tem dessas pessoas. São os pais, ou as pessoas que exercem essa função, que passam para a criança os valores sociais. Se eles estão inseridos numa relação familiar que tem como característica a diversidade, a tendência é termos crianças mais “flexíveis”.
“Se essas pessoas estão agindo de forma mais livre, por exemplo em relação ao papel e função de pai e de mãe, de homem e de mulher, a consequência será a formação de pessoas mais flexíveis e, espera-se, com maior capacidade de empatia e com menos preconceitos”, diz, ponderando que não se pode desconsiderar que há também um movimento de retrocesso, com famílias mais rígidas, inclusive pelo grau de confusão e angústia que a mudança nos valores tem trazido.
No caso de famílias reconstituídas, isso é, com irmãos vindos do primeiro casamento da madrasta ou padrasto, a formação da personalidade dos filhos também apresenta um padrão diferente. Para Giselle, essas famílias requerem das crianças um “trabalho mental” maior, já que a identidade e a afetividade não estão diretamente ligadas ao parentesco. “A identidade é formada pela genética, pela inserção em linhagens familiares e pelo que se denomina de aspecto socioafetivo, ou parentalidade socioafetiva. Fica mais fácil quando esses três aspectos se concentram nas mesmas pessoas. O importante é que se mantenham os vínculos com os pais e se agreguem novas possibilidades. Em família, a ideia é somar, respeitando-se as funções exercidas de cada um”, analisa.
Giselle diz que, apesar de se afirmar que ninguém é insubstituível, quando se fala de pessoas com alto grau de envolvimento afetivo, nas relações familiares todos são insubstituíveis. “As funções paterna, materna e filial podem ser exercidas por outros. É importante, no caso de outros exercerem tais funções, que se reconheça a contribuição dos originais e se valorize a possibilidade atual.”
Para Maria Berenice Dias, vice-presidente do IBDFam, é preciso admitir que os filhos podem ter mais de um pai e uma mãe. “Será que o padrasto que o acompanhou uma criança a vida toda, não é também pai? Tenho visto muito essa situação: “Eu gosto do meu pai e do meu padrasto e tenho que escolher quem vai ao meu casamento. Vou me sentir muito mal porque ele me deu tudo”, completa.
Sem carinhos em público
Em casa, Rodrigo, de 18 anos, até ajuda na faxina, mas Wanderson, de 34, acha injusta a divisão de tarefas. “Eu cozinho, lavo e passo a roupa, arrumo a cama. Mas fazer o quê?”, resigna-se o mais velho, sorridente. Dois meses depois do primeiro casamento civil entre homens em Minas Gerais, Wanderson Carlos de Moura Rebonato e Rodrigo Diniz Rebonato Moura vivem dificuldades e alegrias típicas de qualquer casal, mas ainda não trocam afagos em público — sequer andam de mãos dadas. “Ele tem vergonha, mas eu não. Abraço no meio da rua”, diz Rodrigo, que está trabalhando como apanhador de café. “Aí, eu tiro a mão dele. Prefiro não nos expor”, justifica Wanderson, bordador. Os pais de Wanderson tratam Rodrigo com carinho, mas, católicos, nunca esconderam a insatisfação com o casamento, ao qual não compareceram. “Nunca tive coragem de tocar nesse assunto com eles. diz Wanderson.
Livres para as aventuras
Namoro com pai solteiro
Os meus filhos, o seu filho e a minha filha
Laços cada vez mais fortalecidos
Sandra Kiefer
Para especialistas do setor, os laços da família nunca estiveram tão fortes, apesar de terem sido amarrados de um jeito diferente. Segundo dados do Censo, os mineiros não vivem sós. Quase a metade da população (48,3%) está envolvida em algum tipo de união, formal ou informal. “As pessoas se perguntam se as crianças filhas de casamentos gays ou de segundos ou terceiros casamentos vão sofrer preconceitos. É claro que vão, assim como sofriam antes os filhos de pais separados”, alerta o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), com sede em Belo Horizonte.
A partir da experiência de Minas, estão surgindo decisões importantes no cenário nacional do direito de família, como a noção dos relacionamentos ligados pelo afeto e não pelas questões econômicas, como ocorria no passado com as famílias patriarcais. Da nova definição de família, defendida pelo IBDfam, deriva o conceito de uniões estáveis homoafetivas que, sem trocadilhos, acabou “pegando” para definir os casais gays.
“Novas estruturas de família estão em curso. O que não quer dizer que a família está em decadência. Pelo contrário. Ela nunca teve tanta importância quanto agora”, alerta o advogado, autor da primeira ação de abandono afetivo com decisão favorável em primeira instância no país a um filho que se sentiu desprezado pelo pai biológico na infância. Infelizmente, o cliente de Cunha teve o pedido negado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2004. Só em 2012, um pai, do interior de São Paulo, foi condenado a pagar indenização de R$ 200 mil por danos morais por ter deixado de prestar cuidados e assistência à filha, segundo decisão do STJ.
Pai de Ava, de 9 anos, o locutor e cantor Aggeo Simões tem pouca chance de vir a ser processado pela filha. Autor do blog Manual do Pai Solteiro, ele faz parte do grupo de um homem em cada 10 mulheres brasileiras capazes de cuidar sozinhas das crianças, sem a necessidade da ajuda do cônjuge. Na realidade, desde que Ava tinha 18 meses, ele e a mulher, a artista plástica Júnia Melillo, concordaram em compartilhar a guarda da filha. Em relação a viver em duas casas ao mesmo tempo, Ava interrompe a entrevista para protestar: “Eu já implorei para os dois ficarem juntos, como namorados. É que, na maior parte das vezes, minha mochila está na casa do outro e eu não consigo fazer o para casa. A professora já avisou que, da próxima vez, quem não fizer os deveres vai perder o recreio”, desabafa a garota, revirando os olhos e antevendo um futuro sem folgas. “Fora isso, está tudo bem!”, completa.
“Novas estruturas de família estão em curso. O que não quer dizer que a família está em decadência. Pelo contrário. Ela nunca teve tanta importância quanto agora”, alerta o advogado, autor da primeira ação de abandono afetivo com decisão favorável em primeira instância no país a um filho que se sentiu desprezado pelo pai biológico na infância. Infelizmente, o cliente de Cunha teve o pedido negado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2004. Só em 2012, um pai, do interior de São Paulo, foi condenado a pagar indenização de R$ 200 mil por danos morais por ter deixado de prestar cuidados e assistência à filha, segundo decisão do STJ.
Pai de Ava, de 9 anos, o locutor e cantor Aggeo Simões tem pouca chance de vir a ser processado pela filha. Autor do blog Manual do Pai Solteiro, ele faz parte do grupo de um homem em cada 10 mulheres brasileiras capazes de cuidar sozinhas das crianças, sem a necessidade da ajuda do cônjuge. Na realidade, desde que Ava tinha 18 meses, ele e a mulher, a artista plástica Júnia Melillo, concordaram em compartilhar a guarda da filha. Em relação a viver em duas casas ao mesmo tempo, Ava interrompe a entrevista para protestar: “Eu já implorei para os dois ficarem juntos, como namorados. É que, na maior parte das vezes, minha mochila está na casa do outro e eu não consigo fazer o para casa. A professora já avisou que, da próxima vez, quem não fizer os deveres vai perder o recreio”, desabafa a garota, revirando os olhos e antevendo um futuro sem folgas. “Fora isso, está tudo bem!”, completa.
Publicado no jornal Estado de Minas, domingo, 03.06.2012
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