sábado, 30 de janeiro de 2016

Brasília? Itaipu? Não. SUS é a maior obra da história do Brasil

Para recobrar o ânimo, lembre-se que esta terra meio atrapalhada foi 

pioneira, entre países grandes, a transformar saúde em direito fundamental.

Leandro Beguoci - BBC Brasil
Jaelson Lucas SMCS
Um dia, no começo dos anos 1990, minha mãe atendeu o telefone e soube que o
irmão mais velho estava com o coração por um fio. O rosto da minha mãe congelou,
e ficou assim por um tempo, numa expressão dura de impotência e tristeza.
 Meu tio  não tinha convênio médico.

Era uma situação tão difícil quanto previsível. No Jaraguá, bairro da periferia
 de São Paulo onde meu tio vivia, as pessoas morriam cedo. E não era só lá.
 Em Pirituba, onde meus avós e algumas tias moravam, a situação era a mesma.

Lembro bem das vizinhas que foram viúvas quase a vida inteira e das pessoas
 que tinham dois nomes – o segundo era uma homenagem a um irmão morto
 logo depois do parto. A morte estava por perto. Era só esperar um pouquinho
 que ela chegaria depois de uma gripe ou de uma festa de domingo.

Essas pessoas – pedreiros, eletricistas, donos de bar, sapateiros – não tinham 
renda o suficiente para bancar essa despesa nem um pedaço do Estado para
 pedir ajuda. Plano de saúde era coisa de funcionário público ou de região com
 muita fábrica, região desenvolvida, coisa do admirado ABC Paulista, onde vivia
 outra parte da família. Aquele pedaço industrial de São Paulo, na minha cabeça
 de criança, era intocado por velórios.
Para sorte da família do eixo Jaraguá-Pirituba, o Brasil criou o SUS (Sistema
 Único de Saúde) em 1988. Como lembra o doutor Drauzio Varella, "nós nos
 tornamos o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou
 oferecer  saúde para todos".

Tivemos essa coragem nos anos 1980. Naqueles anos difíceis, uma série de
heróis anônimos, de diferentes correntes políticas, criou um consenso.
 Não é uma questão de políticas do MDB ou da Arena, do PT, PSDB, PMDB
 ou DEM. O Brasil chegou à conclusão de que saúde era direito de todo mundo
e de que a conta deveria ser rateada entre a população – tanto que colocou isso
na Constituição.

Futuros engenheiros

Foi uma das obras mais grandiosas da nossa história – maior do que Brasília,
 maior do que Itaipu. Essas obras são importantes, claro. Mas a existência do
SUS permite que futuros engenheiros sobrevivam ao primeiro ano de vida.

Entre 1990 e 2015, o Brasil derrubou drasticamente a taxa de crianças que
 morrem com poucos anos de vida. Os médicos da família chegam a milhões
 de pessoas. 
A vacinação, o transplante de órgãos e o combate à Aids se transformaram
 em referências internacionais. Recentemente, foi uma médica do SUS quem
descobriu a relação entre zika vírus e microcefalia.

O SUS também salvou algumas vidas familiares. Meu tio com o coração frágil, 
graças ao sistema público, está vivo e bem até hoje – apesar da sua situação
 ainda ser preocupante.

O SUS é inspirado nos sistemas de saúde dos países da Europa Ocidental, como o 
NHS (National Health System) inglês. Admirado e respeitado, foi até homenageado
na abertura da Olimpíada de 2012, em Londres.

Para criar um sistema assim, é preciso que o país, em algum momento da sua história, 
tenha chegado a uma conclusão: saúde não é apenas responsabilidade individual. 
É direito das pessoas e, portanto, obrigação do Estado.

Parece um jogo de conceitos, mas não é. Nos EUA, sempre foi muito difícil criar 
um sistema público de saúde. Para muita gente, é uma interferência enorme do 
governo na vida das pessoas e esse problema é mais bem resolvido por operadoras 
privadas de saúde, com incentivos para competir e oferecer melhores serviços.

Isso tem consequências. As pessoas têm acesso a muitos medicamentos e 
tratamentos modernos nos EUA. Ao mesmo tempo, têm contas gigantescas 
para pagar e muitas famílias quebram – ou não tem acesso a serviços básicos. 
Na Europa ocidental, o tratamento é publico e gratuito. Pode ser mais demorado, 
nem sempre é de ponta, mas ninguém precisa se preocupar com contas 
milionárias.

Claro, há uma enorme zona cinza entre esses dois pontos, e é muito raro encontrar 
um país que seja apenas público ou apenas privado. Há variações sobre o tamanho 
do Estado tanto em investimento quanto em regulação – afinal, o que você vai fazer
 caso seu plano não te atenda? Não importa o modelo. Ele sempre pede escolhas, e 
elas não são fáceis. Não tem exatamente certo ou errado. Tem o que funciona e o 
que não funciona para cada país, de acordo com as escolhas que cada um faz em 
determinado momento da sua história.

Deficiências

O SUS é um avanço gigantesco, mas é impossível ignorar os casos de corrupção, 
o descaso com hospitais e postos de saúde, além da demora de meses para agendar 
consultas em muitos Estados e municípios. Na média, ainda temos menos médicos 
a disposição das pessoas do que a média dos países mais desenvolvidos do mundo – 
e ainda temos de ver Estados, como o Rio de Janeiro, em situação de calamidade.

Até a médica que descobriu o elo entre zika e microcefalia, na Paraíba, vive longe
 do paraíso – ela precisa de muito mais dinheiro para tocar suas pesquisas.

O complexo sistema de financiamento do SUS, dividido entre União, Estados e 
municípios, não ajuda. Muitos governadores e prefeitos não investem o mínimo 
necessário para o sistema funcionar. Na prática, os gastos de todos os governos 
com saúde não chegam a 4% do PIB. É pouco.

Se somarmos todos os gastos com saúde no Brasil, o setor privado é responsável 
por 60% dele. Os outros 40% são de dinheiro público. Porém, o setor privado
 atendeapenas 25% das pessoas. A maior parte dos brasileiros depende de um
 dinheiro escasso, picotado e, muitas vezes, mal administrado.

Para piorar, o setor privado está longe da sua melhor forma. Mesmo os brasileiros 
que podem pagar não estão seguros. As reclamações são gigantescas.
 Dados recentes revelam que cerca de 100 mil pessoas fizeram queixas formais dos
 serviços dos convênios em um ano.

Além disso, em muitos casos o setor privado repassa a conta ao governo. 
Os planos usam brechas jurídicas para mandar seus consumidores ao SUS,
 economizando alguns milhões em repasses a médicos e hospitais.
 Além da canibalização de recursos escassos, há uma malandragem desagradável.

A conta do SUS é difícil. Afinal, dinheiro público não é dinheiro gratuito – ele
 vem dos nossos impostos e das nossas escolhas. Saúde é uma questão de vida
 e morte – e mesmo o melhor plano não garante um tratamento caríssimo de
 câncer. Não há um consenso de que só Estado ou só o mercado possam resolver
 o problema. Saúde é um desafio gigantesco, concreto e imediato. Mas é uma
 questão que vale a pena encarar.

Nesse Brasil polarizado, muitas vezes em torno de questões vazias, é sempre
 bom lembrar dos tios que foram salvos pelo SUS e de quantos mais poderiam
 ter sido salvos, se o sistema fosse melhor.

Temos de ter orgulho das coisas que dão certo e espírito crítico para resolver,
 sem histeria, os nossos problemas. Um SUS poderoso não é bom apenas para
 quem usa o sistema público – ele também obriga o setor privado a puxar sua
régua lá pra cima.
Publicado no site www.cartamaior.com.br

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