segunda-feira, 30 de março de 2020

Como os ricos trouxeram do exterior e disseminaram coronavírus no Brasil


Os circuitos dos ricos e famosos 
que disseminaram o coronavírus 
no Brasil.

De Aspen a Itacaré, viajantes 

que trouxeram vírus do exterior 

estão na mira das autoridades sanitárias. 


Eliane Trindade, Folha de S.Paulo, 29.03.2020, às 19:11 h

É VIP o circuito que conta a chegada do coronavírus ao Brasil por meio de 
viajantes a bordo de jatinhos ou em voos internacionais de primeira classe ou executiva.
A disseminação da Covid-19 em terras brasileiras passa por eventos sociais
em points do litoral baiano, como Trancoso e Itacaré, e no tradicional Country
Club do Rio de Janeiro.
“O vírus foi trazido por uma elite viajada, veio de fora e se propagou muito
rápido em nossos círculos”, diz uma sócia do clube, que pede para não ser identificada.
Ela retornou de Paris em 27 de fevereiro, e concordou em dar entrevista à
Folha, desde que não fosse identificada. Entrou para o rol dos estimados
60 associados do Country que receberam resultado positivo do teste para
coronavírus nas últimas duas semanas.
Uma sequência de eventos da alta sociedade levou à espiral de contágios
entre membros de algumas das mais abastadas famílias brasileiras.
Um deles foi o noivado do príncipe dom Pedro Alberto de Orleans e Bragança,
31, e Alessandra Fragoso Pires, 26, na casa dos pais do noivo, na Gávea, para
70 seletos convidados, em 7 de março.
O mapa da pandemia da Covid-19 estava bem representado no almoço que
reuniu membros da família imperial, recém-chegados da Europa, como os
próprios pais do noivo.
O príncipe dom Alberto e a paisagista Maritza de Orleans e Bragança estiveram
em Londres, e confraternizaram com amigos vindos da Bélgica e Itália.
Naquele mesmo sábado, Marcella Minelli e Marcelo Bezerra de Menezes
faziam uma festa de casamento de sonhos no Txai Resort, no litoral sul
da Bahia.
Entre as centenas de convidados estava uma galera animada que acabara de
voltar de temporada de esqui em Aspen e de viagens no Carnaval para a Europa,
já em alerta máximo pela explosão de casos e mortes na Itália.

As duas celebrações ganharam o noticiário como epicentros da pandemia no
Brasil, assim como a comitiva do presidente Jair Bolsonaro, após evento em
Miami, com dezenas de infectados, entre nomes do primeiro escalão e
empresários.

A seguir, a reportagem da Folha liga cenários e carimbos no passaporte
para mostrar a ciranda de contágio a partir dos primeiros diagnósticos
da Covid-19 em Rio, São Paulo e Bahia.
É o relato também da abertura da temporada de caças às bruxas diante
do descumprimento de quarentena por incautos expostos ao novo vírus
em diferente latitudes.
Apreensões que desencadearam processos criminais por desobediência às
regras de isolamento social imposto pelas autoridades sanitárias.
Circuito fluminense
O coronavírus foi se espraiando desde o chamado circuito Elizabeth Arden
(Paris, Milão, Londres e Nova York) até Miguel Pereira, a 100 km da
capital fluminense, município que entra no mapa pela porta de serviço.
Deu no New York Times a morte da empregada doméstica Cleonice Gonçalves,
63, na terça-feira (17), primeiro óbito oficial pela Covid-19 no estado do Rio.
A funcionária fora contaminada pela patroa, moradora do Leblon, que
passara férias na Itália.
Para Carla Gonçalves, 42, irmã de Cleonice, o contágio foi uma fatalidade.
“Não houve intenção de contaminar. A patroa dela está bem debilitada e
triste. São 20 anos de convivência.”
Cleonice foi internada no final da tarde de segunda-feira, quando retornou
do Rio de táxi passando mal. Na terça, a patroa ligou às 9h para informar
que seu teste era positivo.
Às 13h, veio o óbito. “Os médicos ficaram admirados com a evolução do
quadro”, relata a irmã. “Infelizmente, as pessoas não estão levando o
coronavírus a sério, achando que é gripezinha.”
Em Niterói, poucas horas depois de a doméstica entrar para as
estatísticas, desenrolava-se um drama desencadeado por um contágio
em família.
Às 19h08, o advogado Paulo Figueiredo, 69, morria no Hospital Icaraí, onde
dera entrada com um quadro gripal preocupante por ser hipertenso e
diabético.
Segundo o boletim médico, “o paciente possuía história epidemiológica para
o Covid-19. ”Ele e a mulher tinham ido buscar o enteado no aeroporto do
Galeão, que vinha de Nova York com teste positivo para coronavírus.
Levou uns dias para a gripe abatê-lo. O advogado jogou basquete no Country
Club de Niterói, como fazia habitualmente. Quando os sintomas apareceram,
o quadro de Figueiredo evolui com insuficiência respiratória aguda e
entubação.
Do outro lado da ponte Rio-Niterói, morria na segunda-feira (23) a socialite
Mirna Bandeira de Mello, às vésperas de completar 72 anos, primeira vítima
do grupo de convidados do noivado do príncipe.
Tia do noivo, a apresentadora Márcia Peltier usou as redes sociais para
anunciar que seu teste para a Covid-19 também era positivo. Postou uma
foto de máscara e escreveu: “Já estava em isolamento social desde a
semana passada quando algumas pessoas da minha família também
testaram positivo”.  No caso, a irmão e o cunhado, pais dos noivo.
Com sintomas brandos, ela alertava para o fato de que outros amigos não
tiveram a mesma sorte, foram internados com pneumonia e estavam em UTI.
 A curva de infectados no Rio se expandia na mesma velocidade que os casos
do Country Club iam aumentando, após uma assembleia com 270 dos 850
associados, em 9 de março.
“Posso ter me infectado lá ou na viagem à Europa”, diz a sócia que já se
diz recuperada da Covid-19. “Fiz um mapinha na cabeça, acho que 
não contaminei ninguém.
”Ela está monitorando a turma do grupo de meditação. “Ninguém conseguiu
ainda fazer o teste”, lamenta. E indigna-se ao comentar a notícia de que o
ministro da Economia, Paulo Guedes, fora flagrado em uma caminhada no
calçadão em meio à escalada de novos casos na Cidade Maravilhosa.
Conexão Itacaré-São Paulo
Nas paradisíacas Maldivas, Marcella e Marcelo, os “Mazinhos”, passam a lua
de mel literalmente trancafiados no romântico bangalô de hotel, em
rigoroso esquema de quarentena imposto pelas autoridades sanitárias
local.
Passavam por avaliação médica à distância e tinham a temperatura
medida diariamente. Ainda que assintomáticos, o isolamento imposto
foi completo até o 14º dia: eles mesmos trocavam as roupas de 
cama e faziam refeições  isolados.
“Estamos 14 dias dentro do quarto, de quarentena, como todos deveriam
ficar também”, declarou a noiva, em vídeo, após avalanche de mensagens
ofensivas no Instagram.
As bodas dos Mazinhos se converteram em outro epicentro da pandemia no
país, à medida em que eram divulgados testes positivos da cantora
Preta Gil, contratada para fazer o show da festa, da atriz Fernanda Paes Lemes 
e da blogueira Gabriela Pugliesi, irmã da noiva.
A quarentena do trio de famosas, que soma mais de 16 milhões de
seguidores no Instagram, foi acompanhada como um Big Brother
Brasil do coronavírus.
Longe do escrutínio público, outros convidados foram fazendo exames
ao retornarem a São Paulo, numa lista de pelo menos 15 casos suspeitos
de contágio após compartilhamento de drinks, beijos e abraços 
na festança.
“Muita gente ficou na moita e deixou na conta do casamento, mas vários
 infectados tinham acabado de voltar de viagens à Europa e aos Estados
Unidos”, diz uma promoter paulistana.
A empresária Vera Minelli, 53, mãe da noiva, não procura culpados, enquanto
lida com o fato de que duas das suas três filhas estão com a doença (além
de Gabriela, a caçula Ornella também testou positivo).
“Não dou a mínima para as fofocas, minha preocupação está 100% na
saúde da minha família. Precisamos nos proteger e só espero passar tudo
isso para poder abraçar de novo minhas filhas", disse.
Vera concordou em falar com a Folha, ao contrário de Pugliesi e da
empresa organizadora do casamento, que optaram pelo silêncio diante
da polêmica.
Em resposta ao questionamento sobre os cuidados com as pessoas
contratadas para trabalhar no evento, a Boutiquede3 respondeu 
por mensagem direta via WhatsApp da empresa. “Não queremos 
mais nos envolver nesse assunto. Garantimos que, assim como 
todos os convidados foram avisados, o mesmo
fizemos com os funcionários que prestaram serviço. Todos receberam
apoio médico.”
A assessoria do Txai informou que após a confirmação do teste positivo
de um dos hóspedes, três funcionários apresentaram sintomas
 leve de gripe, fizeram testes, que deram negativo para coronavírus.
Até o sábado (27) não havia nenhum caso confirmado entre os moradores
de Itacaré. O motorista Anderson Felix que transportou os noivos até o
aeroporto questionou em comentário público no Instagram se o casal
estava infectado. “Fui afastado da empresa”, escreveu ele, em quarentena
imposta após a passagem dos “corona-ricos” pelo município 
baiano.​
Escala Porto Seguro-Fortaleza
De Itacaré, a linha de contágio chegou a Trancoso, outro reduto frequentado
por endinheirados.
​Foi para lá que o empresário cearense Cláudio Henrique Vieira do Vale,
conterrâneo da família do noivo, embarcou em seu jatinho com um grupo
de oito amigos para curtir um fim de semana prolongado na casa de veraneio
em um condomínio de luxo.
O programa, depois da festa em Itacaré e com uma escala em São Paulo,
virou caso de polícia. A Delegacia de Proteção ao Turista de Porto Seguro
 instaurou inquérito para apurar a denúncia de que o presidente da
CVPAR Finanças desrespeitou a quarentena, quando já havia recebido
resultado positivo do teste.
O governador Rui Costa (PT) pediu a responsabilização criminal do empresário
por “sua postura irresponsável”. Dos 10 baianos confirmados àquela altura,
pelo menos dois teriam sido infectados no contato com Vieira: o cozinheiro
da casa de veraneio e uma atendente do aeroporto de Porto Seguro.
“Não temos casos sustentados de contágio no município, todos os seis
confirmados até agora tiveram contato com pessoas que se contaminaram
 fora”, disse o secretário de Saúde, Kerrys Ruas, na quinta (26).

Ao ser informada do caso positivo para coronavírus na região, a
vigilância epidemiológica foi até a casa de Vieira coletar teste de
oito funcionários e oito hóspedes.
Cinco deles, no entanto, foram embora da Bahia antes de sair o resultado.
Dois testaram positivo quando já tinham retornado para Fortaleza (CE).
“Tanto os casos suspeitos quanto os contaminados foram embora sem o
nosso aval”, diz o secretário.
O empresário e a mulher estão cumprindo a determinação de distanciamento
social e permanecem na cidade. Procurado pela Folha, ele não quis dar
entrevista, mas encaminhou nota em que “repudia com veemência as
mentiras divulgadas a seu respeito”. “É desumano, inconsequente e
irracional imaginar que teria ignorado recomendações médicas 
quanto ao coronavírus, colocando em risco seus familiares e 
amigos.”
Segundo a nota, o resultado do teste saiu dia 14, quando ele já estava na Bahia.
Os hóspedes também afirmam que a viagem de volta ao Ceará foi permitida
pelas autoridade de saúde da Bahia e seguiram o protocolo de segurança.
“Todos tinham que fazer isolamento social e sabiam que podia contaminar
pessoas e deviam tomar medidas de precaução”, afirma Michele Souto,
promotora de justiça criminal de Porto Seguro.
O inquérito aberto em 20 de março tem 30 dias para averiguar se ouve dolo
por parte dos turistas que desembarcaram com o coronavírus na paradisíaca
costa do Descobrimento do Brasil.
Também está sob investigação no estado a conduta do médico baiano
Eduardo Ribeiro. Ao voltar de férias dos Estados Unidos em 8 de março,
o ginecologista retomou de imediato o trabalho em vários municípios
do interior da Bahia.
Dez dias depois, ele se sentiu mal e fez o teste, que deu positivo.
Desde então, colocou-se em quarentena.
“É inaceitável um médico com quadro gripal, nas atuais circunstância,
desobedeça medidas de saúde pública e assuma o risco de contagiar pessoas,
dentre as quais seus pacientes”, afirmou o procurador geral do Estado,
Paulo Moreno Carvalho.
A advogada do médico, Ilana Martins, rebate o discurso de criminalização.
“É uma situação nova, querem achar um culpado para o caos.
Até o momento não há nenhum contaminado nas cidades em que
ele atendeu.”
Ela faz parte de um dos mais conceituados escritórios de advocacia criminal
do país e consultou o colega, o criminalista Pierpaolo Bottini, que advoga em
vários processos da Lava Jato.
“Se o sujeito souber que está contaminado e não cumprir as determinações
pode incorrer em crime”, diz Bottini, ao analisar as consequências práticas
da Lei 13.979, aprovada em fevereiro diante da pandemia.
A legislação define parâmetros e critérios para quem descumprir o artigo
268 do Código Penal. É prevista pena de um mês a um ano de prisão mais
multa para quem “infringir determinação do poder público destinada a
impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.
O criminalista teme o uso do direito penal em momentos de histeria e em
meio aos desafios para o sistema de saúde em uma emergência sanitária
sem precedentes. Promotor de Defesa da Saúde na Comarca de Entre Rios,
a 140 km de Salvador, Paulo César Azevedo, está monitorando 
os pacientes atendidos pelo médico.
“Fizemos uma busca ativa e o isolamento delas. ”Segundo o promotor,
uma técnica de enfermagem e a dona da pousada que o médico 
se hospedou apresentaram sintomas de gripe e aguardam o 
resultado dos teste para  coronavírus.
Brasileiras que não frequentaram o circuito Paris, Nova York, Milão.
Nem fizeram check-in em aeroportos ou entraram na lista vip de
festas glamourosas. Todos passageiros da mesma agonia de viver em
tempos de pandemia. Tanto na alta sociedade, quanto nas 
periferias, na primeira classe ou na econômica. 
Patrões e empregados, no Brasil e no mundo.
Eliane Trindade
Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha.
É autora de “As Meninas da Esquina”.

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