sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Ainda sobre o Nobel de Literatura.


Letra de Música - gênero textual

Letras de música são uma das formas textuais mais absorvidas cotidianamente pela maior parte da população mundial, em especial por jovens e adolescentes.
São construções textuais intencionais, por meio das quais se quer transmitir uma mensagem e se transmite. Não são apenas textos lúdicos. Carregam mensagens morais, sociais e políticas. São, desse modo, indutores de comportamentos e formadores de opinião. Estabelecem e consolidam novos valores, pensamentos e, possivelmente, fortalecem o senso comum mais que a maioria dos textos cotidianos. E, por fim, podem ser - e são - utilizadas como instrumento de dominação ideológica. Portanto, de modo algum, devem ser assimiladas sem compreensão crítica e sem a observação das gradações de qualidade artística, lexical, semântica, sonora e estrutural.
Quanto a letra de música ser considerada gênero textual não há mais o que se discutir. São incontáveis os casos em que uma letra de canção em nada se assemelha a uma crônica, por exemplo, como tentam argumentar alguns, que a primeira é apenas um prolongamento desta última.
Ainda assim, em variadas situações, letras de música contam histórias, constroem personagens e enredos, passeiam pela crônica e em outros momentos podem ser lidas como poemas. Em alguns casos, são mesmo poemas (de alguns dos nossos maiores poetas de todos os tempos) que foram musicados. Mas, num espectro mais amplo, extrapolam de muitas maneiras os gêneros citados. Por exemplo, podem ser radicalmente distintas de um poema, não apenas por sua, tantas vezes, específica divisão de partes, incluindo aí o refrão, a introdução, a coda, as pontes, como por esse gênero ser o reino absoluto das anáforas e onomatopeias.
São comuns os casos nas letras de canção em que a anáfora - de modo mais amplo, o que chamamos de refrain ou recorrência verbal - é a própria estrutura do texto, muito mais que na poesia. Se em outros gêneros a recorrência pode ser considerada um perigo para a boa fluência textual, nas letras de música geralmente constrói vórtices, mundos sonoros e semânticos, e tantas vezes leva a palavra, a expressão e o verso repetidos, a novos entendimentos gramaticais e semióticos.
Sobre as tão utilizadas onomatopeias, que em letras de canção ganham possibilidades muito além da mera imitação de sons, pode-se dizer que dependem de escolhas estéticas, sonoras, silábicas, sendo que, em gêneros artístico-literários, forma também pode ser conteúdo.
As métricas de letras de música, em princípio sempre inéditas, também são uma importante característica desse gênero por estarem indissociadamente ligadas a uma melodia e suas notas de durações preestabelecidas. Desse modo, ao contrário da maioria dos poemas modernos e suas formas livres, as métricas de uma letra de canção sempre são passíveis de identificação, mapeamento e análise, práticas que, sem dúvida, contribuem para o enriquecimento rítmico na produção de qualquer tipo de texto.
É também facilmente identificável neste gênero textual outro fenômeno exclusivo, reconhecido pelos trovadores provençais do século XII como "Motz el Son", que é o resultado sonoro da união da sílaba com a nota musical.

Existem ainda, entre outros fenômenos próprios deste gênero, as colagens de versos, de palavras ou mesmo de fragmentos, bem como variadas argumentações e estruturas não-lineares. E muito mais que em outros gêneros textuais, rivalizando apenas com a poesia, há a farta presença de linguagens subjetivas, em que o entendimento do texto fica por conta do leitor ou ouvinte.
Diferentemente da visão inaugurada a partir da pesquisa de Poética Musical, ainda que exista em dicionário o conceito de cacófato, o estudo de nossa língua não se aprofunda no assunto, em como e o quanto esses fenômenos podem afetar a qualidade de um texto em seus aspectos sonoros, rítmicos e até semânticos, assim como não existem técnicas e exercícios para se detectar sua ocorrência. O mesmo se pode dizer do conceito de "semicacófato", neologismo criado para tornar possível a aferição de um fenômeno que é ainda mais específico, mas tão evidente quanto o cacófato.
No caso das tipologias textuais - narrar, relatar, prescrever, expor e argumentar - previstas no estudo da língua portuguesa, neste trabalho ganham outras e mais ampliadas classificações. Por exemplo, dentro da tipologia narrar, aqui transversalizada com outras tipologias, constam as narrativas imagísticas, cênicas, relacionais, por colagens etc. Os tipos de linguagem também ganham organizações próprias, como linguagem coloquial, metafórica, analógica, subjetiva, entre outras.
Além das letras de canções possuírem inúmeros elementos propícios à formação de leitores e produtores de texto mais competentes, podendo ser uma efetiva ponte para esse fim - e muitos educadores vêm se dando conta desse potencial - podem também ser utilizadas na educação para se trabalhar aspectos fonológicos, lexicais, morfológicos, morfossintáticos, sintáticos, semânticos e estilísticos da língua, incluindo argumentação, concatenação de idéias, coesão e fenômenos como assonância, aliteração, personificação, paralelismo, polissemia, homonímia, antonímia semântica e lexical, anáfora, eco, antítese, substantivação, oximoro, ironia, homeoteleuto, modulações de timbre, deslocamentos fonossintáticos, paranomásia, hipérbole, eufemismo, pleonasmo e outros.
Tudo isso, num ambiente textual que valoriza a beleza, que dialoga com o tempo presente, tanto no aspecto semântico como no linguístico, e que faz parte, como nenhum outro gênero textual, do cotidiano do aluno. Um tipo de texto que esse aluno muitas vezes conhece de cor, mais que qualquer outro. E, em muitos casos, o único tipo de texto que lhe é afetivo, ao menos num primeiro momento.
Magno Mello

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